“A saúde do meu doente será a minha primeira preocupação.”
Do Juramento de Hipócrates, versão de 1983
Não se pode servir dois senhores: ou bem se ama um e odeia o outro; ou se prefere este e se pretere aquele. Os dois senhores a quem Jesus, que estas palavras preferiu, se refere explicitamente são Deus e as Riquezas (Evangelho segundo Mateus 6:24). Paulo, o apóstolo, viria a escrever, na mesma linha, que o amor do dinheiro é a raiz de todos os males (I Epístola a Timóteo 6:1). Entre cristãos ou não, crentes professos ou não, o humanismo é o mínimo denominador comum de uma determinada concepção filosófica da vida que valoriza o Homem como o objecto de cuidado de si próprio. Entendamos humanismo em sentido lato, obviamente não o de época da História Europeia correspondente ao Renascimento em que o paradigma cultural e mental mudou para colocar, como na Antiguidade clássica, o Homem no centro das preocupações. A parábola do Bom Samaritano é pertinente neste sentido: o outro, quem quer ele seja, o próximo, que é um ser humano, merece, acima de tudo quanto o dinheiro possa comprar, a atenção de outro ser humano.
Estamos, pois, quanto a isto conversados e nisto todos os homens de boa vontade se podem entender: uma vida humana vale um universo, cada uma é um universo. Mais do que mil animais em vias de extinção, mais do que todo o dinheiro real ou virtual gerado no planeta.
Coisas tão óbvias estas, tão óbvia e tão antigas, coisas que são património da nossa civilização. E tanto — poder-se-á dizer — que espanta que seja necessário lembrá-las, defendê-las, teorizá-las. E contudo, considerá-las dado adquirido neste primeiro quartel do século XXI tem-se revelado, na melhor das hipóteses, ingénuo. Com efeito, aquilo a que assistimos é à revivescência de algo que não é novo — pois, a julgar pelos citações do Livro dos Livros —, mas que refloresce, de modo, quiçá, novo. Non noua sed noue. E por novo não se deve entender como bom, mas mais insidioso do que nunca.
Em Abril de há 50 anos (1968), Alexander Dubček enceta, da sua cadeira de Presidente da Checoslováquia, um programa que designou Socialismo de rosto humano. É da História o destino dessa tentativa de distender o regime comunista desse país, situado na órbita da União Soviética: a invasão pelos países vizinhos do Pacto de Varsóvia, aliança militar que agrupava os países comunistas da Europa Oriental. E a forçada renúncia ao cargo de Dubček, com a consequente reversão ao rígido estado status quo ante. Nesses tempos de Guerra Fria, a ideia de rosto humano estava mais bem associado ao Estado de Direito, democrático na política e sociedade e capitalista temperado com sólidas preocupações de justiça social, consideradas irrevogáveis e características do que se entendia como o modo de ser ocidental ou, mais propriamente, europeu. Neste sistema, os Estados intervinham como reguladores, investidores e prossecutores do bem-estar, da educação e da saúde para todos os cidadãos e em igualdade de circunstâncias. Um país, porém — qual nova aldeia gaulesa — neste bloco ocidental resistia ainda e sempre a este social-democracia ou democracia-cristã. Precisamente o país farol e autoproclamado líder do mundo livre: os Estados Unidos. A razão é que lá sempre se pensou que essa coisa de o Estado assumir tais funções era coisa socialista, ou pior, comunista. Essa nação estava imbuída na crença de que só a iniciativa privada e individual, sacrossanta, permitiria ao homem, qualquer um, realizar-se e, dessa realização, adviriam benefícios para a sociedade, ao criar empregos, inovar técnicas, apresentar novos produtos e serviços. Ruído o sistema comunista, restou o capitalista. Mas porque capitalismos há muitos, um houve que acabou por se sobrepor, engolir, os outros. E — indesejavelmente — foi o mais monstruoso que triunfou. Precisamente esse que nunca desapareceu de todo na América, que não é novo, mas ressurgido de novos modos e de novo. E é um capitalismo cujo rosto é mais nádegas, uma cloaca, e muitíssimo desumanas.
It finally happened: escreve com propriedade Walter Einenkel, no jornal Daily Kos, a propósito de um relatório de Salveen Richter, técnico do Goldman Sachs, de 10 de Abril sobre a indústria da biotecnologia para a saúde. Em termos gerais, o dito relatório contém a verificação de um facto digno de elogios, mas vem temperada com recomendação. Assim, “o potencial para fornecer curas através de uma só dose é um dos aspectos mais entusiasmantes da terapia genética”. Porém, questiona se curar pacientes é “um negócio sustentável”. Apesar dos bons resultados, isto ”poderá representar um desafio para os investigadores médicos do genoma que procuram um fluxo permanente de receitas”. Exemplo disso é a empresa Gilead Sciences, que produziu um tratamento eficaz em mais de 90 % para a hepatite C, mas cujas vendas têm vindo a decair desde 2015. Com efeito, nos EUA atingiram nesse ano 12,5 000 milhões de dólares (10 000 milhões de euros), contra os 4 000 milhões (3 000 milhões de euros) previstos para o ano em curso. Em contrapartida — observa o relatório —, cita o cancro como exemplo de patologia cuja incidência permanece estável (caso do cancro) e cujo “potencial de cura”, por isso mesmo, “coloca menos riscos para a sustentabilidade”. Do ponto de vista da indústria, por conseguinte, três são as alternativas possíveis:
- Visar mercados maiores, como o dos hemofílicos, que valem entre 9 a 10 000 milhões de dólares anuais em todo o mundo, e com taxas de crescimento de 6 a 7 % anuais.
- Inclinar-se para desordens com elevados níveis de incidência, como a atrofia muscular espinal, que afecta os neurónios da espinal medula, transtornando a capacidade para andar, comer e respirar.
- Uma permanente inovação e amplificação do portefólio de que tem a oferecer, com especial atenção para doenças hereditárias da retina, que resultam em formas genéticas da cegueira.
Visto assim, à vista desarmada, o signatário do relatório transmite fielmente o espírito reinante neste banco neoliberal, agência de emprego de ex-ilustres ocupantes de altos cargos no corpo burocrático da União Europeia, os quais, no exercício dos ditos cargos, souberam servir de prestadores de serviços e moços de recados à ideologia e interesses que esse banco corporiza. Estamos a falar, obviamente, de José Manuel Durão Barroso, mas também de José Luís Arnaut (como o primeiro, também este ex-dirigente do PSD). O que conta é a conta do deve e haver, o balanço dos encargos e benefícios, pois tudo é negócio e fazer dinheiro. De tal estrito ponto de vista, não é de admirar que até se nutra preferência por um mercado como o dos doentes com cancro, pois estes (ainda seguindo a mesma lógica), pelo menos, garantem um permanente e seguro de receitas. Pela mesma elementar lógica, se considera os hemofílicos um excelente público-alvo, pela simples razão e mesma razão: asseguram um retorno bem simpático.
Dito isto, e ainda na mesma lógica, pode suscitar-se uma questão simples, e com toda a propriedade, questão essa que antes estava mais no domínio do boato, da suspeita, mas que, a julgar pelas próprias palavras do relatório, parece dever ser, com toda a pertinência e naturalidade, suscitada: a indústria terapêutica visa o lucro, é um negócio como qualquer outro, tudo faz por manter a fidelização dos clientes. O que quer dizer isso mesmo que o leitor está a pensar: não procura curar, mas manter o tratamento, pois enquanto este durar o paciente-cliente vai continuar a comprar. Pudor e falinhas mansas estão ausentes de quem assim escreve, o absurdo, o torpe e o maligno estão assumidos sem constrangimentos.
Este espírito não está longe do daquele problema matemático que, segundo uma personagem feminina contava num jantar de sociedade do filme A Vida é bela de Roberto Benigni, as escolas nazis alemãs davam aos alunos da terceira classe para resolver:
Um louco custa ao Estado 4 marcos por dia; um aleijado 4,5 marcos; um epiléptico 3,5 marcos; considerando que a média é de 4 marcos por dia e que há 300 000 pacientes, quanto pouparia o Estado se estes indivíduos fossem eliminados?
A dita personagem, ao contar este problema com indignação, por se um tal problema, tão complexo, ser colocado a crianças de tão tenra idade! Obviamente que há uma não despicienda diferença entre o contexto representado no filme (o Estado totalitário nazi e fascista, que discriminava seres humanos segundo critérios étnicos, de raça, e de uma ideia de perfeição eugénica que excluía os doentes) e o Estado Goldman Sachs, que não é Estado, mas a eles se sobrepõe e impõe, uma supranacional capitalista que veio substituir a busca de uma internacional socialista. O Goldman Sachs discrimina-os por critérios de mercantilistas: qual o público e o serviço mais lucrativos a longo prazo? Outra diferença é que o autor do relatório já cresceu o suficiente para se pôr a si mesmo e resolver equações matemáticas de tal complexidade, como o demonstra com este exercício. Todavia, a ambos — ao nazismo e fascismo e a este capitalismo — subjazem a mesma consideração pela criatura humana em função de juízos igualmente utilitários: assim como para o nazismo somente certas vidas humanas eram dignas, para o goldmansachismo elas só têm importância se puderem aportar fluxos monetários; todas aquelas que não correspondam aos critérios, são descartáveis: podem ser pura e simplesmente eliminadas ou deixadas à morte por falta de tratamento médico — pois a indústria terapêutica as desprezava ou as terapias que lhes propõem, porque não lucrativas, lhes são propostas a preços impeditivos. Eis aonde a lógico goldmansachiana pode conduzir.
Mas não é tudo: uma lógica como esta pode, legitimamente, suscitar uma grave suspeita que, aliás, não é nova, mas que já anda desde há muitos anos nas bocas do mundo: será que a indústria farmacêutica mantém propositadamente os pacientes na dependência do que lhes fornece, dando-lhes apenas os meios para se irem tratando em vez de os curar? A exorbitada expectativa de fluxos de receitas e a preocupação de que estes sejam tão permanentes quanto possível, levando o relator a cotejar a patologia oncológica como referência, ultrapassam todo o sentido do pudor. Uma tal suspeita merecerá uma mínima consideração e alguma análise, ainda que como hipótese filosófica, ou deverá tão-somente ficar relegada para o museu arqueológico das teorias da conspiração?
Walter Einenkel faz o balanço do que se passa no seu país, os EUA. Alguns partidos políticos pensam que cabe ao governo, a par do investimento nas artes e na educação, promover a investigação científica e a inovação. A despeito disto, é geral o desinvestimento público do novo governo Trump nesta matéria, por crer que a iniciativa privada será capaz de inovar da melhor maneira possível a favor dos melhores resultados para a maioria da população. Todavia, Einenkel conclui:
A maioria de nós sabe que há mais hipóteses de o Pai Natal aparecer em nossa casa e nos levar a à Lua do que em a indústria privada fazer o que é certo para o mundo em detrimento de fazer o que é certo para os resultados da indústria privada.
Efectivamente, estas palavras resumem de forma brilhante, e como parece, a realidade das coisas.
Uma outra imagem fílmica ocorre para caracterizar o Goldman Sachs e o papel que este banco e outros grandes interesses financeiros têm desempenhado no mundo: dominam sobre as nações soberanas, influenciam os destinos destas apadrinhando determinados sectores políticos a eleger, inculcam políticas de privatizações selvagens a favor de poderosas redes de interesses e de desmantelamento das funções sociais e regulamento dos Estados, promovem cortes de salários, pensões, fazem aumentar a pobreza e a degradação da qualidade e dos serviços públicos em nome de resgates (artificias) das “dívidas soberanas” que o mais que fazem é encherem ainda aumentar a sua capacidade de recolha de dividendos e o “fluxo de receitas”. Parasitas, instalaram-se para dominar os hospedeiros e chupá-los até ao tutano, até ao sangue. A imagem fílmica é a do ser extraterrestre Aliens, monstro que deposita ovos dentro de um hospedeiro humano, dentro do qual o ovo brota em novo ser, sem que aquele se aperceba; aos poucos e à medida que o novo monstro cresce dentro do hospedeiro humano, vai devorando-o por dentro, sempre sem que ele disso se aperceba, mantendo-o vivo enquanto for do seu interesse, até que aquele deixa de ser ele próprio mas apenas o invólucro que o monstro usa para se mover no mundo dos outros potenciais hospedeiros, para falar e comunicar, para se alimentar. Até que se despe desse invólucro que é o corpo do hospedeiro humano e sai, exibindo-se em toda a sua monstruosidade e preparando-se para entrar na próxima vítima, repetindo-se o processo. Passo a grosseria da alegoria, é isto o Goldman Sachs, os bancos e os mercados neoliberais: abantesma visceralmente maligna e daninha. Assim saltam e têm saltado de país em país, de mercado em mercado, de sector em sector, até colonizarem tudo e tudo chuparem e devorarem por dentro, numa dinâmica de autoperpetuação e de insaciável e perpétua engorda de dinheiro.
Urge tratar da saúde a estes parasitas. Estes novos Mamon. Se quisermos ser fiéis à lógica utilitarista, apliquemo-lo igualmente aqui: o Goldman Sachs e outros (quem se não lembra do Lehman Brothers?) dão prejuízos monstruosos para a humanidade; há que eliminá-los. A saúde geral agradece.
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