“Todos os Estados existentes são corruptos” – Ralph Waldo Emerson
O PS é um partido de poder. De mão dada com o PSD, assim tem sido em Portugal desde o 25 de Abril. Mas o que significa ser um partido de poder? Significa que toma decisões relativas ao funcionamento do Estado, quer ao nível administrativo, legislativo, político, e económico, mas que tais decisões nunca são neutras. Existem pessoas que delas irão beneficiar, existirão outras que delas sofrerão o impacto, outras que, no final, não serão em nada afectadas. E se o poder for um poder legítimo, isto é, um poder conseguido através das regras institucionalizadas e aceites pela comunidade para o alcançar – no caso o sistema eleitoral vigente -, tais decisões passam a ser também elas legítimas, independentemente da sua bondade dos seus efeitos no bem-estar colectivo dos cidadãos.
O problema dos partidos de poder é que, no fim da linha, os partidos não existem enquanto ser pensante. O que existe, em cada momento, é um conjunto de dirigentes partidários a quem são acometidas determinadas funções e âmbito de decisão no aparelho do Estado, sendo eles que, em nome da legitimidade que ao partido foi conferida, vão subscrever e implementar um conjunto de opções, certas ou erradas, pouco importa, mas nunca neutras do ponto de vista de quem vai ganhar ou perder com elas.
Nesse contexto, existe sempre o risco de o poder, entregue eleitoralmente ao partido, resvalar para um exercício de poder pessoal do decisor político, por maior escrutínio interno que exista sobre os actos deste último. Este é um problema de todas as organizações sociais constituídas por seres humanos e é nesse problema que se insere sempre a temática da corrupção, já que, lembrando John Dalberg-Acton, “O poder tende a corromper, e o poder absoluto corrompe absolutamente, de modo que os grandes homens são quase sempre homens maus”.
Vem esta introdução a propósito do actual quadro político-mediático, onde os casos de Manuel Pinho e de José Sócrates tem tido clamorosa repercussão, e das piedosas tentativas dos partidos de poder branquearem a realidade do que acima expressei: não há inocentes, todos tem pedras no sapato, pois se as não tivessem não seriam partidos de poder. Aliás, a sucessão de casos que foram ocorrendo desde o 25 de Abril, é transversal a todos os partidos do chamado arco da governação, (PS, PSD, CDS), ou seja, todos aqueles partidos que exerceram o poder em Portugal desde essa altura.
A forma de mistificar o problema, e iludir o cidadão comum, é tentar fazer passar a ideia de que, a haver corrupção, ela não é uma inerência genética às instituições humanas, logo também às partidárias, e à forma de organização sócio-económica onde estas se inserem (leia-se capitalismo), mas sim a uma degenerescência individual do político cujo caso se analisa e discute: Sócrates é mau, o PS é puro; Miguel Macedo é venal, o PSD é níveo; Paulo Portas é oblíquo, o CDS é imaculado. Nada mais falso, mas é esta mensagem que os partidos de poder em todas as épocas tem propalado sempre que um qualquer caso aporta à comunicação social e/ou à Justiça. Até aqui, portanto, nada de novo.
Onde está, então, a novidade que se tem vindo a consubstanciar, de alguns anos a esta parte, e que os casos mais recentes evidenciam? Está no facto de os partidos terem passado a usar os casos como arma de combate na luta política, quando em épocas anteriores se abstinham de o fazer por todos eles terem telhados de vidro, podendo as munições disparadas fazer ricochete, rebentando nos seus próprios pés. A utilização dos casos passou a ser tanto mais utilizada quanto maior é o domínio que um dos lados da contenda tem sobre a comunicação social e sobre o aparelho de Justiça, pois é aí que o terreno da luta política suja passou a realizar-se. Ora, quer a comunicação social, quer a Justiça, enquanto instituições humanas que são, não deixam de ser também elas corruptíveis e venais, de acordo com as ideias que expressámos acima.
É, pois, esse o cenário de fundo do que se está a passar actualmente em Portugal. Uma Justiça povoada por personagens cinzentos ao serviço dos partidos de direita do espectro político, uma comunicação social falida povoada por jornalistas manipuladores que tenta sobreviver à custa das oportunas encenações pícaras que tenta passar como verdades, ao serviço de quem lhe possa fazer chegar uma misericordiosa bóia de salvação.
E seria sobre esse cenário que o partido que está debaixo de fogo, o PS, se deveria pronunciar e denunciar, mormente pela boca do seu secretário-geral e Primeiro-Ministro. É legítimo transmitir interrogatórios judiciais nas televisões? Costa nada tem a dizer? É legítimo as peças processuais circularem na comunicação social, e que o segredo de justiça nada valha, nunca ninguém sendo responsabilizado e punido? Costa nada tem a dizer? Como pode António Costa afirmar que “confia na nossa Justiça” e na sua independência, quando o seu governo, e ele próprio, estão a ser assados em lume brando, até que surja a altura oportuna de lhes ser dada a estocada final? Como não ver o absurdo de Pinho ser constituído arguido sem nunca ter sido ouvido nem chamado a depôr?! Como se poderá provar a alegada corrupção de Sócrates e de Pinho se vão ser julgados por uma Justiça que age desta forma? Se o árbitro está “comprado” como pode o resultado do derby ser limpo?
Tem-se ouvido falar muito, nos últimos dias, na promiscuidade entre o poder político e o poder económico. Mas, e a promiscuidade entre a Justiça e a comunicação social, não são merecedoras de parangonas? Costa poderia e deveria ter respondido à primeira com a segunda. Em vez disso, decidiu dar carta branca aos seus ventríloquos – César, Galamba e companhia -, para que imolassem Sócrates no festim báquico com a Direita se está a empaturrar, o que revela a inesperada existência de um PS enfraquecido e de um general em perda, tendo em conta os bons resultados da vertente económica e das sondagens em alta.
O que nos leva a perguntar, o que receia António Costa? Que bomba espera ele que a Direita tenha ainda debaixo do tapete para fazer rebentar na altura mais conveniente? É que os partidos, como qualquer organização humana, quando o espírito de grupo se quebra, vão desaguar, mais tarde ou mais cedo, na senda da inoperância e da desagregação.
Sacrificar à turba a cabeça de alguém que alcandorou o PS à única maioria absoluta da sua história, com base num julgamento apenas mediático em que a Justiça até ao momento, objectivamente, nada provou, é considerar Sócrates e o seu governo uma excrescência que é necessário extirpar do passado-recente socialista, desviando a vitalidade da organização para um debate que se supunha encerrado e que até aqui tinha sido conduzido com mestria.
José Sócrates, em quem nunca votei – declaração de interesses para que não me interpretem mal -, não merecia essa imolação, sobretudo tendo em conta a bandalheira com que a Justiça o tem tratado durante os últimos anos, e isto independentemente da sua culpabilidade ou inocência. É por isso mais que compreensível a sua reacção, desvinculando-se do PS.
Até ao momento, Sócrates não tinha tido a solidariedade do aparelho socialista – que por receio de contaminação foi deixando os agentes da Justiça em roda livre na prossecução da sua agenda atrabiliária -, mas também nenhuma condenação populista dos seus actos tinha sido avançada pelos dirigentes socialistas de topo. Terá sido só o caso de Pinho que alterou tudo, ou foi apenas uma oportunidade de ouro que alguém no aproveitou para separar as águas?
Diz o provérbio que a melhor defesa é o ataque, mas o PS, apostou numa defesa, aparentemente desnecessária e precipitada. Curiosamente, eventos deste tipo sucedem sempre nas vésperas dos congressos do PS, tal como sucedeu em Novembro de 2014, aquando da detenção de Sócrates no Aeroporto de Lisboa. São coincidências, dirão os menos dados a teorias da conspiração. Não são coincidências, digo eu.
Como já escrevi, parece que só António Costa é que ainda não percebeu que não é cabeça de Pinho, nem a de Sócrates, que a direita quer: é pura e simplesmente a dele e o poder que o PS detém com o apoio do BE e do PCP. E por isso transformar um congresso de aclamação e vitórias num congresso de penitência e culpas solapa, e de que forma, a dinâmica socialista.
Meu caro António Costa, o congresso pode não estar estragado mas já não será nunca aquilo que poderia ser, uma celebração dos sucessos da Geringonça e uma alavanca para as eleições de 2019. A Direita conseguiu o que queria. Desta vez, não vai haver SMS aos militantes que te salve, e ajude a encenar que nada se passou.
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