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Domingo, Julho 28, 2024

Uma visão Euro-Atlântica dos Açores

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

No amável convite que me dirigiu para participar nas celebrações do dia da Europa 2018, o Núcleo de Estudantes de Estudos Euro-Atlânticos sugeriu como tema central «Açores – 3 décadas de Integração Europeia: que conclusões e desafios?»

Recordo a comunicação que apresentei, há já dezoito anos, aqui na Universidade dos Açores, na comemoração do dia da Europa 2000, que denominei da reinvenção da Europa de George Marshall. Dizia então, inspirando-me numa conhecida expressão norte-americana, (manifest destiny) que o fado dos Açores era o de aproximar as culturas e os povos que o Atlântico separa.

E penso que, numa altura em que a opinião pública se encontra já submergida com a questão dos 5 a 7 pontos percentuais de corte previstos na política de coesão e agroambiental, ser de todo em todo necessário olhar um pouco mais longe e fugir à ditadura das previsões dos n por cento do PIB, do orçamento, do défice ou de qualquer outra abstracção em voga com que por vezes embotamos a capacidade de pensar no que está para além do imediato.

  1. Celebrar o 9 de Maio

A celebração do 9 de Maio como dia da Europa foi aprovada no Conselho Europeu de Milão de Junho de 1985, na sequência do relatório de “Pietro Adonnino”– representante de Bettino Craxi – e começou a ser celebrada no ano seguinte, já portanto com Portugal como membro de pleno direito da União Europeia.

Foi com efeito a 9 de Maio de 1950 que Robert Schuman, o Ministro dos Negócios Estrangeiros da França, leu num salão do Quay d’Orsay o convite formal à Alemanha para a constituição da primeira comunidade europeia, a comunidade do carvão e do aço, que haveria de ser consagrada menos de um ano depois no Tratado de Paris a 18 de Abril.

Cinco anos antes, a rendição da Alemanha tinha sido assinada a 7 de Maio em Reims, e no dia seguinte, na presença e em território controlado pelas forças soviéticas, em Berlim; de acordo com o fuso de Moscovo a 9 e não a 8 de Maio. Essa rendição significou o fim do teatro europeu da segunda guerra mundial.

Nesses cinco anos muitos foram os acontecimentos marcantes para a construção europeia, nomeadamente o nascimento da Organização para a Cooperação Económica Europeia a 16 de Abril de 1948, que vai administrar o Plano Marshall norte-americano, organização de que Portugal é membro fundador; o Tratado de Bruxelas de 17 de Março de 1948, precursor da OTAN; ou ainda o Conselho da Europa estabelecido pelo Tratado de Londres de 5 de Maio de 1949.

Toda essa construção não seria compreensível sem a influência decisiva norte-americana e uma nova concepção do sistema de relações internacionais. O plano Marshall é uma revolução no conceito até aí vigente da construção da paz, é a aplicação à Europa da visão federal americana.

Jean Monnet e Robert Schuman, considerados a justo título como pais fundadores da Europa, são profundamente atlantistas – Jean Monnet até pela sua vida profissional – e esse atlantismo é indissociável da construção europeia.

Embora com características específicas, a construção comunitária europeia integra-se na ordem internacional do pós-guerra, tanto na dimensão de defesa e segurança, como na dimensão comercial ou ainda na dimensão monetária e financeira decorrente dos acordos de Bretton Woods.

A primeira comunidade europeia assume a forma de um cartel em dois domínios vistos ainda como vitais, o carvão e o aço, e é dificilmente compaginável com a lógica da nova ordem internacional. A criação de uma união aduaneira em 1957, se bem que prevista no artigo 24 do GATT, levanta também reticências, nomeadamente no que respeita ao tratamento de territórios ultramarinos e à organização da política agrícola.

A primeira peça da nova ordem mundial a cair irá ser a do sistema de câmbios fixos baseada na conversão do dólar em ouro, que irá ser substituído, a partir de 1973, por um sistema de câmbios flutuantes baseado no dólar mas sem conversão em ouro. É a partir dessa época que começa a ser equacionada uma moeda única europeia e se inaugura uma política cambial europeia.

É também a partir dessa época que se começa a desenvolver a ideia da “Europa popular” ou da “Europa dos cidadãos” de que o relatório Adonnino supracitado é parte integrante. Projectos chave que continuam a ser essenciais na sustentação popular da construção europeia – como é o da abolição das fronteiras, a construção da cidadania europeia, simbologia europeia ou os programas de intercâmbio – nascem nesta altura.

O sistema de câmbios flexíveis de 1973 vai atravessar um período relativamente longo de crise – coincidente com a chamada crise do petróleo – e vai desembocar em meados da década de oitenta no ‘consenso de Washington’ que é mais conhecido nos meios que lhe são críticos como de período “neoliberal”.

No consenso de Washington, o equilíbrio das contas públicas substitui a preocupação com o equilíbrio das contas externas, e o controlo da inflação através da política monetária substitui a preocupação com as taxas de câmbio.

Na mesma altura, a construção europeia conhece um período especialmente auspicioso, com a ascensão de Jacques Delors à presidência da Comissão Europeia, com a aprovação do Acto Único Europeu, que lança simultaneamente uma reforma institucional, o mercado único europeu, a política de coesão europeia – de que a política para as regiões ultraperiféricas vai ser uma componente – e a política ambiental europeia.

No plano internacional vai-se assistir à transformação do GATT em Organização Mundial de Comércio e, com a queda das cortinas de ferro e de bambu, um formidável crescimento da integração económica mundial, que se faz sentir tanto dentro das fronteiras europeias – com os novos países membros da EU vindos da Europa central – como fora delas, com a presença do colosso chinês e de outros países asiáticos.

A União Económica e Monetária (UEM) aprovada pelo Tratado de Maastricht vai marcar profundamente a evolução europeia. A UEM reflecte a doutrina económica alemã pós-guerra conhecida por ‘ordoliberalism’ que se assemelha ao consenso de Washington excepto no ponto capital das taxas de câmbio que, como sabemos, são fixas na UEM.

Os vinte e dois anos que medeiam entre a integração de Portugal nas Comunidades Europeias e 2008 são marcados pelo crescimento económico e mais ainda pela significativa melhoria das condições de vida nos Açores.

Foram anos que corresponderam ao pleno de uma política europeia de coesão económica, social e territorial de que os Açores são um dos principais beneficiários.

O cenário internacional caracteriza-se igualmente por ser um dos períodos de maior crescimento e de melhoria de condições de vida – fundamentalmente na Ásia e em particular na China – aqui por efeito do sucesso do consenso de Washington e da integração no mercado mundial de uma vasta parte do mundo que se encontrava dele separado.

  1. A Europa e o Mundo perante a crise de 2008

Penso que há três observações fundamentais a fazer perante a crise. A primeira, é a de que se tratou de uma crise focada no mundo ocidental. Na República Popular da China, por exemplo, a ‘crise’ traduziu-se na passagem de uma taxa de crescimento de 14,4% em 2008 para 9.7% em 2009. No sentido preciso do termo, não existiu qualquer crise.

A segunda é a da deflação, fenómeno que tinha caracterizado a crise dos anos 30. Aqui, há que assinalar que a economia japonesa foi a precursora deste fenómeno, já desde os finais do século XX, e que ele se estendeu a todo o mundo ocidental e a algumas economias que, embora menos desenvolvidas, se encontram há mais tempo plenamente inseridas na ordem económica internacional, como a tailandesa.

A solução – quiçá provisória – para o problema foi encontrada na expansão monetária feita pelas autoridades monetárias por meio do que ficou designado como “quantitative easing”, que consiste na compra por estes de títulos de longa maturidade, públicos e privados. A eclosão de novas formas de moeda virtual baseadas na tecnologia ‘block chain’ a partir de 2008 vai ser também importante.

A terceira é a de que a crise foi particularmente violenta e prolongada na zona Euro, e que só terminou aqui com a adopção pelo Banco Central Europeu de uma agressiva política de “quantitative easing” desenvolvida por Mario Draghi, em clara oposição à ortodoxia doutrinária alemã e à letra do Tratado de Maastricht.

Do ponto de vista da China – e até certo ponto, da Índia e de outros importantes países no Sul e Sudeste Asiático, como o Vietname ou o Bangladesh – 2008 não foi um ponto de inflexão mas antes de continuação de um desenvolvimento económico e social (mas não necessariamente político) a um ritmo alucinante.

O Sul, sudeste e leste asiático, (que poderemos abreviar como o “Asian Indo-Pacific Rim” (AIPR) onde se concentrava já mais de metade da população mundial, adquire cada vez mais a posição de centro económico mundial, com a China a emergir como o mais poderoso país na maior parte dos domínios estratégicos e a aproximar-se a passos largos dos EUA nos domínios onde isso ainda não acontece.

Do ponto de vista desta área geográfica, o sucesso da ordem internacional consignada pelo “Consenso de Washington” foi impressionante. O mesmo não se pode dizer das outras regiões do mundo em desenvolvimento, a Ásia Ocidental e Central, a África e a América Latina onde, a par de alguns casos de sucesso, a nota dominante não é positiva.

Curiosamente, o país onde mais claramente a insatisfação com os resultados da ordem internacional vigente se vai manifestar é os EUA, ou seja, exactamente o país que se encontra no centro dessa mesma ordem.

O populismo – que tomamos aqui como um movimento plurifacetado que exprime uma revolta popular com a forma como as elites gerem os assuntos públicos – vai afirmar-se de formas muito diversas e não necessariamente em consequência de crises económicas, mas ele tem uma importância determinante nos EUA.

A insatisfação norte-americana radica na percepção de que o livre-câmbio levou a uma desindustrialização que afectou particularmente a classe trabalhadora e pôs em causa os interesses estratégicos do país.

O facto de o fim da convertibilidade do dólar em ouro em nada ter afectado o seu estatuto de principal moeda padrão do comércio e da finança, e este manter ou mesmo aumentar o seu valor, apesar dos continuados e enormes défices externos do país, não é visto pela nova administração americana como um trunfo, mas antes como uma fragilidade.

Era suposto que o ‘consenso de Washington’ promovesse o liberalismo político através da liberalização económica, mas o sucesso da liberalização económica da China vai ser antes a base fundamental para este país não só esconjurar o liberalismo político dentro de portas mas lançar-lhe um poderoso desafio global.

A nova administração americana vai pôr em causa, mais do que esse consenso, toda a arquitectura da liberalização económica global, julgando-a como uma troca de sólidos interesses económicos por ilusórios interesses políticos. Essa rejeição vai abarcar a União Europeia, julgada também, a par da China, como uma construção política que abusa dos interesses norte-americanos.

O apoio de Donald Trump ao Brexit – embora ainda na qualidade de candidato – manifesta assim a oposição norte-americana a uma construção para a qual os EUA deram uma contribuição importantíssima.

O sucesso económico dos países que justamente menos tinham usufruído de qualquer apoio ao desenvolvimento sob a forma de subvenções ou de condições de comércio preferenciais poderá ser lida de diversas formas, a mais óbvia das quais corroborando inteiramente as teses ‘neoliberais’ e a inutilidade – ou mesmo os malefícios – de qualquer intervenção que queira corrigir os ‘efeitos do mercado’.

Indubitavelmente, os factos mostraram que o apoio económico não é nem condição necessária nem condição suficiente para o desenvolvimento. Pode mesmo tornar-se em fonte de subsidiodependência, ou seja, o apoio económico pode ser visto como alternativa ao desenvolvimento como instrumento económico.

Posto isto, penso que nem todas as realidades estão preparadas da mesma forma para o desenvolvimento, e o apoio económico pode ser importante.

Para já, aquilo que se afigura como resultado desta crise é o desmantelamento, mesmo que parcial, da ordem internacional sem que haja uma noção do que vamos ter em sua substituição, que não uma disputa por mercados, territórios e esferas de influência feita à margem do direito e de regras consensualmente assumidas.

No domínio monetário e financeiro, a crise repetiu muito do que tinha sido o rebentar da bolha especulativa dos anos 1930, e por razões semelhantes, não faltando quem visse na re-instauração de regras semelhantes às que foram adoptadas então a solução duradoura para os nossos problemas.

Embora de forma bastante mais complexa a burocrática, e de eficácia duvidosa, a regulação financeira internacional tem procurado reintroduzir um sistema de regulação que limite o potencial destrutivo para toda a economia da especulação do sistema financeiro, inspirando-se na regulamentação bancária dos anos trinta.

O “quantitative easing” teve resultados positivos, embora a sua eficácia como instrumento monetário seja questionável. Com efeito ela traduziu-se numa grande subida no preço dos activos (ou seja, o que normalmente se designa como inflação, embora seja visto positivamente, contrariamente ao que se passa com o preço dos bens e serviços) e numa moderada recuperação económica.

O facto de os bancos centrais dos países mais desenvolvidos terem podido aumentar de forma tão pronunciada e tão prolongada a massa monetária sem que daí resultassem quaisquer problemas na credibilidade do sistema monetário é algo de extremamente significativo, comparável à total ausência de consequências negativas pelo desligamento desse sistema do ouro (ou qualquer outra matéria equivalente).

A eclosão de sistemas monetários privados com base na tecnologia de block chain a partir de 2008 é outra inovação que poderá vir a revolucionar completamente as economias mundiais, com consequências ainda dificilmente antecipáveis.

Toda a ortodoxia do “consenso de Washington” em matéria monetária ruiu com a crise de 2008, mas estamos longe de saber o que vamos ter em sua substituição.

Em último lugar, temos a acuidade da crise na Europa. A principal razão é a de a União Europeia ter sido a última a utilizar o quantitative easing. Para além disso, as instituições europeias consideram que as suas políticas de coesão e agroambiental se revelaram ineficazes, e vêm aí a razão de ser da acuidade da crise ter sido particularmente grande nos países e regiões que mais dela dependiam. Para além da diminuição das somas envolvidas, há que esperar que seja ainda mais desvirtuado na regulamentação a apresentar o sentido de coesão que esteve na sua origem.

Em último lugar, temos a questão especificamente europeia, que é a da manutenção de um sistema de câmbios fixos numa zona económica com comportamentos divergentes da qual resulta a acumulação de desequilíbrios externos não corrigidos. É o tema essencial a que dediquei o livro de que sou coautor “a reforma do Euro 2014”.

Embora o seu impacto tenha sido muito amenizado pela política monetária expansionista, esses desequilíbrios permanecem inteiramente e poderão vir a qualquer momento relançar a crise europeia.

  1. Uma reflexão euro-atlântica sobre uma nova ordem internacional

No plano político internacional, a actual administração norte-americana teve o enorme mérito de quebrar com a política de apaziguamento dos programas nucleares norte-coreano e iraniano, confrontar o apoio do Paquistão ao jihadismo, mas tem-se mostrado incapaz de dar ao mundo uma perspectiva de ordem internacional, apostando antes num conjunto de valores conservadores, como o nacionalismo ou as energias e as actividades do passado.

A União Europeia está perante o seu primeiro grande rombo que é o BREXIT, enquanto por todo o lado estão em clara ascensão ou assumem o poder forças políticas que questionam os valores ou o interesse da construção comunitária, sendo a França de Emmanuel Macron a única excepção significativa neste panorama.

O Tratado de Lisboa agravou substancialmente os problemas institucionais europeus e a eurocracia europeia fecha-se cada vez mais num casulo alheando-se da realidade e mostrando-se incapaz de agir sobre ela.

Assistimos a um desmoronar de toda a arquitectura internacional montada no pós-guerra. Sendo certo que o centro de gravidade geopolítica mundial se afastou de forma que julgo ser inexorável para o Asian Indo-Pacific Rim, não existe por ora nessa zona nenhuma concertação internacional capaz de ultrapassar os seus grandes problemas internos e menos ainda de produzir uma ordem internacional à escala planetária.

A ordem internacional do pós-guerra foi necessariamente resultado dessa guerra, mas acima de tudo de duas décadas de posicionamentos e reflexões tais como a do Presidente Woodrow Wilson ou de John Maynard Keynes.

Precisamos de repensar profundamente as relações económicas internacionais, a moeda e a coesão, no quadro europeu, atlântico e internacional tendo em conta os desafios com que se confronta a humanidade; a eliminação da pobreza, a preservação do planeta, a construção da paz e do desenvolvimento.

E como lembrei vezes sem conta, se a morte prematura do Presidente Franklin Delano Roosevelt impediu que as Nações Unidas viessem a mudar-se de Genebra para a Horta, como era a sua intenção, só a falta de ambição, de persistência e de visão poderão impedir que nos Açores – aqui em Ponta Delgada, na Universidade dos Açores, ou noutro enquadramento geográfico e institucional – se venha a centrar um polo fundamental da necessária reflexão sobre a ordem internacional que sabemos ser necessária.

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