João Ferreira, eurodeputado ao Jornal Tornado.
O montante previsto pela Comissão Europeia para financiar o eixo da defesa e segurança no próximo orçamento comunitário representa para João Ferreira o “agravamento de uma política belicista e intervencionista” que tem violado a Carta das Nações Unidas e o direito internacional. O deputado do PCP ao Parlamento Europeu recorda que a “escalada militarista e a deriva securitária da União Europeia” coincidem com o anúncio da redução das verbas destinadas à coesão económica e social e à política agrícola.
Ao Jornal Tornado, o eurodeputado garante que “ao contrário do que a propaganda oficial tende a afirmar”, a proposta de Bruxelas que prevê aumento de meios financeiros para a área da defesa significa que “estamos perante uma clara ameaça à Paz mundial”.
O novo quadro comunitário plurianual da UE, definido para um período de sete anos, foi apresentado pela CE no início do mês e é o primeiro orçamento da era pós-Brexit. Agora terá de ser discutido e posteriormente aprovado pelos Estados-membro antes das eleições europeias que se realizam em Maio do próximo ano.
Jornal Tornado: O eurodeputado João Ferreira pode confirmar qual o orçamento previsto pela Comissão Europeia para fins da área da defesa (na proposta do quadro financeiro 2021-2017)?
João Ferreira: A proposta de Quadro Financeiro Plurianual 2021-2027 recentemente apresentada pela Comissão Europeia (CE) prevê, pela primeira vez, um eixo específico dedicado à “segurança e defesa”. A CE propõe afectar a este eixo 27,515 mil milhões de euros, ao longo do período de sete anos. Para além destes montantes, outras rubricas do orçamento (mesmo que não incluídas neste eixo) poderão financiar programas e acções com aplicação militar directa ou indirecta.
Como por exemplo?
É o caso das verbas dirigidas à investigação científica e desenvolvimento tecnológico, entre outras. Nesta fase, não são ainda conhecidos detalhes sobre a estrutura do orçamento, sendo apenas conhecidos os valores atribuídos a grandes agregados ou eixos.
Nessa medida, não é ainda possível nem uma quantificação mais rigorosa das referidas despesas, nem uma comparação mais rigorosa com os quadros financeiros plurianuais anteriores e actual. Em todo o caso, à partida, é assumido pela Comissão Europeia um incremento significativo destas despesas a partir de 2021 – por exemplo, é a própria CE a admitir que só as despesas análogas àquelas que serão utilizados no chamado “Fundo para a defesa” aumentarão cerca de 22 vezes.
O aumento dos meios financeiros para a chamada ‘defesa’ foi decido em 2014 no quadro da NATO e por exigência dos EUA, tendo sido apontado que, até 2024, cada um dos países que a integra gastasse para fins militaristas pelo menos 2% do seu PIB”
Na opinião do eurodeputado, o que representa esta aposta no eixo destinado à segurança e defesa?
Esta opção representa um salto qualitativo muito significativo no pendor militarista do processo de integração capitalista europeu. As principais potências europeias, como a Alemanha e a França, e os seus grandes grupos económicos – nomeadamente os ligados ao chamado complexo militar-industrial – têm necessidade desta escalada militarista, em articulação e complementaridade com a NATO, querendo utilizar o orçamento comunitário para a financiar.
As grandes potências europeias – num quadro de concertação e rivalidade com os EUA – apostam não na paz, no desarmamento e no desanuviamento das relações internacionais, mas no militarismo, na corrida aos armamentos, na pressão, na chantagem, na ingerência, na agressão e na guerra, como forma de dominar mercados, matérias-primas e zonas de influência, uma política que está associada a uma militarização crescente das relações internacionais e ao consequente multiplicar de focos de tensão e de conflito à escala planetária. Estamos perante uma clara ameaça à Paz mundial.
A UE foi conivente, apoiou e promoveu medidas, incluindo a agressão, contra Estados e povos, como contra a Jugoslávia, a Líbia ou a Síria – sem esquecer a forma desumana como trata centenas de milhar de refugiados. Ao contrário do que a propaganda oficial tende a afirmar, a UE constitui um factor de ameaça à Paz. Ademais, no plano interno, estamos perante uma deriva securitária, igualmente com expressão nas opções plasmadas no Quadro Financeiro Plurianual 2021-2027, que tende a usar o terrorismo – terrorismo, note-se, que se desenvolveu na medida do intervencionismo externo da UE e das suas potências, nomeadamente no Médio Oriente – como justificação para um ataque a direitos, liberdades e garantias, em nome de uma falsa noção de segurança.
As principais potências europeias, como a Alemanha e a França, e os seus grandes grupos económicos – nomeadamente os ligados ao chamado complexo militar-industrial – têm necessidade desta escalada militarista (…)”
“Agenda neoliberal da UE”
Qual a área do orçamento comunitário que merecia maior investimento, no seu entender?
A escalada militarista e a deriva securitária da UE coincidem com o anúncio da redução em 7% das verbas afectadas à chamada coesão económica e social – os chamados fundos estruturais e o fundo de coesão – que afectará sobretudo os países, como Portugal. Sublinhe-se que mesmo com orçamentos superiores ao agora proposto no domínio da coesão, o que sistematicamente prevalece foi a divergência e não a convergência entre os Estados-Membros.
Concretamente, que efeitos prevê?
Este efeito inevitavelmente acentuar-se-á, sendo de prever ainda mais e mais fundas assimetrias e desigualdades na UE. Anuncia-se também uma redução em 5% das verbas da Política Agrícola Comum (PAC), o que, num quadro em que esta se encontra, no essencial, liberalizada, tendo sido já desmantelados os parcos instrumentos de defesa da produção de países com sistemas produtivos mais débeis, terá inevitáveis consequências negativas.
Globalmente, podemos dizer que se verifica uma diminuição das verbas de gestão nacional e um aumento das verbas de gestão da UE, todas sujeitas a novos factores de condicionalidade, aprofundando a centralização da execução do orçamento, em função dos interesses das grandes potências e do grande capital transnacional. A agenda neoliberal da UE, com as ditas “reformas estruturais”, é parte integrante desta opção de fundo.
Qual o caminho que a União europeia está a trilhar?
O aumento dos meios financeiros para a chamada “defesa” foi decido em 2014 no quadro da NATO e por exigência dos EUA, tendo sido apontado que, até 2024, cada um dos países que a integra gastasse para fins militaristas pelo menos 2% do seu PIB. A utilização do orçamento comunitário da UE para o militarismo e a corrida aos armamentos enquadra-se neste objectivo. Embora num quadro não isento de contradições, a UE procura reforçar-se como bloco político-militar de cariz imperialista – sublinhe-se, sempre sob a direcção das suas grandes potências e ao serviço dos seus interesses.
A proposta da CE assume como elementos estratégicos todas as orientações de aprofundamento da integração capitalista, responsável por uma contínua regressão social, pelo desenvolvimento desigual, injusto e assimétrico entre os diferentes países na União, pelo desrespeito da soberania nacional de diversos países – que tem, nomeadamente, promovido a dependência e acentuado a divergência de Portugal. Ao mesmo tempo, com esta proposta, a UE confirma o seu carácter de instrumento, nos diversos planos – neoliberal, federalista e militarista – dos interesses dos grandes grupos económico e financeiros e das grandes potências que sempre determinaram o rumo do processo de integração.
A UE foi conivente, apoiou e promoveu medidas, incluindo a agressão, contra Estados e povos, como contra a Jugoslávia, a Líbia ou a Síria – sem esquecer a forma desumana como trata centenas de milhar de refugiados”
Mas os desafios actuais da segurança mundial com o aumento das ameaças terroristas não justificam esta opção?
Como sublinhei, esta não é uma opção em defesa da paz e da segurança internacionais, na verdade, trata-se do agravamento de uma política belicista e intervencionista que tem vindo a desrespeitar a Carta das Nações Unidas, o direito internacional, ou seja, princípios e direito que visam defender a soberania dos Estados e dos povos como norma das relações internacionais e condição para a paz. Trata-se, pelo contrário, de uma inaceitável política de promoção de ingerência, de desestabilização e de guerra, responsável por inúmeros mortos, imenso sofrimento e vasta destruição em diversos países, com a existência de milhões de deslocados e refugiados. Uma política que promoveu, apoiou, financiou e armou grupos terroristas que são responsáveis por hediondos crimes, nomeadamente no Médio Oriente.
Defender a paz e a segurança é travar e rejeitar a escalada de militarização da União Europeia, cujo desenvolvimento comporta perigos evidentes para os povos europeus e para os povos do mundo”
Penso que deve ser motivo de reflexão e preocupação o perigo que representa a continuação e agravamento desta política para a paz e segurança no mundo. Considero que o que a realidade demonstra, com cada vez mais vigor, a urgência de travar e derrotar o militarismo e a guerra e seus responsáveis. Defender a paz e a segurança é travar e rejeitar a escalada de militarização da União Europeia, cujo desenvolvimento comporta perigos evidentes para os povos europeus e para os povos do mundo. Defender a paz e a segurança é confrontar e derrotar a União Europeia neoliberal, federalista e militarista, abrindo caminho na Europa à construção de um projecto de cooperação entre Estados soberanos e iguais em direitos, orientado para a paz, o desenvolvimento mútuo, o progresso e a justiça social.
A proposta do novo orçamento europeu para o período 2021–2027 foi apresentada em Bruxelas a 2 de Maio. A Comissão Europeia propõe 1,279 biliões de euros que vão ser negociados nos próximos meses, equivalente a 1,11% do rendimento nacional bruto da UE a 27 (já sem o Reino Unido).
Está prevista a redução de verbas nas políticas de coesão e agrícola comum, cortes que podem atingir os 7% e 5%, respectivamente. Por cá, Governo e partidos, da esquerda à direita, criticaram a ponto de partida do próximo quadro comunitário e acham que ele não serve o País.
O ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, na sua primeira reacção às propostas de Bruxelas dizia que a PAC e as políticas de coesão “não devem ser as variáveis de ajustamento” após perda da contribuição britânica ou pelo facto “de ser preciso acomodar as verbas necessárias para a segurança e defesa, transição energética, política externa ou migrações”.
“A CE propõe que o financiamento da PAC e da Política de Coesão seja moderadamente reduzido – de cerca de 5% –, a fim de refletir a nova realidade de uma União a 27. Estas políticas serão modernizadas, a fim de garantir que possam continuar a produzir resultados com menos recursos e servir mesmo novas prioridades”, sublinhou o executivo liderado por Jean-Claude Juncker.
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