O coche funerário branco uma limusine na estrada de areia. Consigo avistá-lo num relance. De longe, bastante longe. As cercas de arame farpado não aprisionam rebanhos, apenas capim. Dois homens silenciosos se recostam no carro. Esperam. O morto seria meu pai? Suspeito ser ele, mas nunca o vejo, escuto apenas gemidos. A casa um terreiro de umbanda, salas grandes, quartos, piso de cimento queimado. A mãe de santo administra a matança das oferendas. Nos fogões de lenha cozinham carnes e vísceras. Dois enfermos num quarto, um deles meu pai. Suspeito que é ele sem nunca me aproximar. Pai, por que você sofre tanto?, não faço a pergunta. A ialorixá dá as costas às labaredas de fogo, vem até mim, põe a mão sobre minha cabeça sem tocá-la. Atravesso um rio coberto de árvores e ramagens, tento fugir à correnteza em meio às pedras. Acordo.
– Pensei que fosse morrer.
– Dá nisso trabalhar à noite.
– Felizmente, era apenas sonho.
– Eu terminaria o livro no capítulo que você me enviou.
– O penúltimo? Escrevi um capítulo final.
– Jogue no meio do romance ou comece um livro novo.
Moncho Rodriguez me aconselha. Durante meses nos encontramos de tarde para um café.
Caminhamos pelas ruas de Casa Forte. Eu me queixo da agonia da escrita, da sinusite crônica, e ele do câncer de bexiga, das cirurgias e da quimioterapia.
– Você tem razão. Mário Hélio comentou que sou arbitrário nos finais. Termino os meus textos como se desse preguiça de continuar escrevendo. Uma síncope.
– Um desmaio.
– Seu Tranca Ruas baixou em mim no sonho.
– Opa! O Diabo.
– Passei anos escrevendo uma novela. Faz tempo isso. Um dia mostrei-a Fernando Monteiro, pedi a opinião dele.
Narro a Moncho, que bebe o café com tanto açúcar que dá enjoo.
– E ele?
– Se fosse você não desperdiçava o argumento numa novela, me disse. Transforme em romance. Precisava entregar um livro novo à Cosac Naify. Pensei: e se eu fizer o contrário, enxugar a narrativa e transformá-la num conto? Publiquei-o com o nome de “Milagre em Juazeiro”, no Livro dos homens. Mas nunca esqueci o conselho.
A primeira romaria ao Juazeiro do Norte, em caminhão pau de arara, eu fiz em 1971, na companhia de Assis Lima. Foi uma experiência marcante, que se repetiu em outros anos, sempre na festa de Finados. Numa das vezes, com Avelina, nos hospedamos em um rancho. A amizade com os devotos do Padre Cícero se continuou além da viagem, em visitas aos sítios onde eles moravam. Do que vi e ouvi nasceu Milagre em Juazeiro, reescrito agora. Mas o embrião de Dora sem véu foi um presente de Dona Cota e Dona Neizinha, duas velhas que moravam na Vila de Nazaré, no Cabo de Santo Agostinho. Uma profunda afeição me ligava a essas mulheres, fantasmas de uma casa em ruínas, com arcas repletas de terracota, porcelanas e cristais bacará, mesas e camas antigas, cadeiras de palhinha e dois penicos de louça. Os santos barrocos haviam sido roubados por negociantes de antiguidades. Dona Cota me confiou a história do pai dela, que se torna o pai de Francisca, a Sherazade em primeira pessoa do romance. As tramas se desenrolam em vários tempos, amarradas como n’As mil e uma noites. Francisca é quem mais fala, dois personagens também assumem a narração e há um capítulo com diálogos, sem narrador.
Dora sem véu é um livro sobre o Brasil e o tempo difícil que atravessamos. Se existe um conceito permeando os vários enredos, até o final surpreendente, é o de que a nossa sociedade se formou no ódio dos ricos pelos pobres. E que se mantém assim. O golpe recente é a prova disso. Não consigo escrever sem pensar o meu país e o meu tempo, na perspectiva da História e do passado, com algumas incursões pelos nossos mitos formadores. Admiro como os russos Dostoiévski, Tchekhóv, Gógol e Babel abordam os conflitos entre a sociedade dominante e os dominados.
Converso sempre com esses autores. Em Dora sem véu alcanço um tom explosivo, ao tratar essas questões agudas. Porém não se trata de um panfleto social, longe disso.
O meu editor Marcelo Ferroni fez leituras rigorosas dos originais. Cheguei a pensar num adiamento de dois anos no prazo de entrega do romance, e que deveria reescrever tudo. Não foi necessário tanto. O livro finalizou-se com um sonho, o penúltimo capítulo assumiu o lugar de último, divulguei título e mês de lançamento, coisa que nunca fiz antes. Acho que andava cansado de viver as agonias dos personagens e queria livrar-me deles.
O parceiro Assis Lima acompanhou de perto a escrita, com paciência e dedicação, e Wellington de Melo foi um importante leitor.
Não é fácil escrever no Brasil de agora. Até bem pouco tempo atrás vivíamos anos de aclamação da nossa literatura no exterior. O país era descoberto novo. Ninguém tinha uma política de incentivo à tradução igual à nossa. Fomos homenageados nas maiores feiras e festivais de literatura do mundo. Os convites para viagens excediam nossa capacidade de aceitar. Tudo isso acabou e mergulhamos de volta em tempos sombrios. Mesmo assim escrevemos. É o que imaginamos saber fazer e ser necessário fazer. Sempre vigilantes ao coche soturno que nos espreita no caminho.
Por Ronaldo Correia de Brito, Médico e escritor | Texto em português do Brasil
Exclusivo Editorial PV / Tornado
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