O texto que se segue é uma tradução livre do meu comentário “Strategic Alternatives to Life Threatening Salts” que apresentei como comunicação na Conferência Mundial da Ciência Regional nas instalações do BITS-Pilani, campus de Goa, no contexto do painel sobre gestão da água de que fui responsável, na sua primeira sessão realizada dia 31 de manhã.
Tendo a comunicação sido apresentada no dia 31, escassos dias depois da primeira grande tempestade de sal que cobriu áreas importantes do Uzbequistão e do Turquemenistão (a única referência que vi na imprensa foi feita no site da “Radio Liberty“) foi por aí que comecei as minhas reflexões, que não seguiram exactamente o texto.
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A destruição da vida pela salinização
Os problemas relativos à salinização não são novos; eles têm acompanhado a humanidade nos últimos milénios e são consensualmente vistos como estando na origem da decadência de numerosas civilizações, como por exemplo a da Suméria.
O conhecimento científico necessário à compreensão do nó górdio do problema é relativamente simples. Como se explica num texto escolar acessível na web, a salinização (e os processos conexos de subida do nível freático de água salgada) resulta da destruição do equilíbrio entre sal e água num ecossistema.
Quando a irrigação traz mais sal que o que é drenado para os rios, e eventualmente destes até ao oceano, o resultado clássico do processo é a salinização. Isto acontece normalmente em climas quentes em que a rega por inundação é praticada; quando a água que fica à superfície se evapora, o sal deposita-se na terra. Alternativamente, a rega pode levar à infiltração da água e provocar a subida do nível de lençóis freáticos salinizados atingindo as raízes das plantas, com o mesmo efeito de salinização. Os lençóis freáticos salinizados são criados pelo mesmo desequilíbrio entre o sal trazido pela erosão mineral pela água e a capacidade de drenagem (necessária para lavar o sal para os rios e mares).
Uma vez que estes processos são relativamente morosos – desenvolvendo-se normalmente no espaço de várias gerações – as consequências só se concretizam a longo prazo, e tendem a ser esquecidas face aos óbvios e imediatos benefícios da irrigação em si. Isto acontece apesar das consequências da salinização serem conhecidas e fáceis de prever.
Os dois últimos séculos testemunharam o impacto desta salinização trazida pela actividade humana em terras aráveis e aquíferos em todo o planeta, criando desertos e corroendo infraestruturas urbanas. Estimações recentes apontam para números globais rondando os 20% de terra cultivada e 35% de terra irrigada afectadas e ou degradadas pela salinização.
Salinização e contaminação por metais pesados transformaram-se numa ameaça á saúde pública nos estuários e sobretudo deltas de recursos fluviais tão importantes como os dos rios Mekong, Indus, e o do complexo Ganges-Brahmaputra-Meghna. O uso inadequado ou insustentável de água doce, em combinação com práticas urbanísticas erradas, tem resultado no afundamento da terra e infiltração por água do mar. Estes fenómenos têm impactos cada vez mais dramáticos e ameaçadores para várias metrópoles: por exemplo Jakarta está literalmente a afundar-se no Oceano.
Existe hoje uma novidade no processo de salinização que o transforma num fenómeno ainda mais comum do que no passado: a sua extensão a zonas climáticas mais frias. Milhões de toneladas de sal são espalhados pela natureza de forma a descongelar estradas, uma prática com forte impacto ambiental. Estimativas recentes apontam para um máximo anual de vinte milhões de toneladas depositadas só nos Estados Unidos. As consequências ambientais e sanitárias são impressionantes.
A inversão do processo de salinização – a dessalinização de água do mar – tem aumentado nas últimas décadas, com impactos importantes sobre a vida humana em várias costas marítimas desérticas, com custos energéticos consideráveis e um impacto ambiental ambíguo. Em algumas áreas, por exemplo na Califórnia, centrais dessalinizadoras têm sido criadas de forma a reverter a salinização resultante de práticas prévias insustentáveis de irrigação.
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“Observações salgadas”
Há três anos atrás, viajando pelo Norte do Punjab Indiano, por volta do meio-dia, fiquei estupefacto ao ver terra a ser inundada, debaixo de um Sol inclemente e 40º de temperatura. Lembrei-me então da primeira vez que visitei o Iraque, em 2004, e a impressão que me fez ver um cenário semelhante no meio do deserto, nas margens do Eufrates.
No meu país natal, no Baixo Alentejo, confrontei uma situação igualmente bizarra em 2003, quando adquiri um pequeno olival para ganhar algumas noções práticas de agricultura. Fui informado primeiro que só teria autorização legal para abrir um furo na minha propriedade (do qual eu necessitava antes de mais para ter acesso a água potável) se declarasse tencionar usar a dita água para irrigar oliveiras. Depois, constatei que da análise da água que solicitei não constava qualquer dado relativo à salinidade (apesar de ela se detectar no paladar). A lei portuguesa apenas ‘recomenda’ que os níveis de sal se mantenham abaixo de 640 ppm. O quadro legal europeu – tão famoso pela sua atenção a cada detalhe e tão conhecido pela sua amplitude – é inteiramente omisso nesta matéria.
Em 2015, durante uma conferência lateral à COP 21, defendi a necessidade de uma nova estratégia de desenvolvimento – sustentável e inclusiva – que nos permitisse ultrapassar a obsessão pelo cliché do ‘aquecimento global’. Em Setembro de 2017, no artigo “For a meaningful SDG agenda“, realcei a forma como a visão limitada e unidimensional ligada ao conceito de ‘aquecimento global’ prejudica a agenda ambiental global ao impedir entendimentos e planos de acção mais inclusivos e multifacetados.
Também em 2017, aquando da minha integração num projecto multinacional denominado “Strategic Alternatives to Life Threatening Salts“, fiquei mais uma vez surpreendido quando um júri anónimo rejeitou o dito projecto, alegando que o assunto em causa “não tinha relevância para o mundo desenvolvido”.
O desenvolvimento humano dos últimos três séculos criou e continua a criar desafios extraordinários e sem precedentes para a vida no nosso planeta – entre eles a possibilidade de um holocausto nuclear, e uma incomensurável destruição de natureza e biodiversidade. Entre esses desafios, contam-se também, um grande impacto da acção humana nos sistemas atmosféricos, geológicos, e hidrológicos do planeta.
Estes impactos, naturalmente, criam riscos à vida na terra, entre os quais o “aquecimento global”, mas não há razões para partir do princípio que este é mais importante que outros.
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Os sais como ameaças à saúde pública
O presidente do ‘Programa Nacional Para a Promoção de Alimentação Saudável’ em Portugal classificou recentemente o sal como “inimigo público número um“. A acusação foi formulada num artigo de jornal editado aquando da apresentação de um novo projecto governamental visando criar um imposto sobre o excesso de sal na alimentação.
O artigo explica como o sal se transformou de um dos mais essenciais e valorizados elementos no processamento de comida em uma das maiores ameaças á saúde pública da nossa era.
Como o autor explica, Portugal tem uma relação peculiar com o sal. As maiores ruínas romanas de instalações de processamento de peixe salgado que chegaram aos nossos dias encontram-se em Portugal. Bacalhau salgado é o principal prato nacional, e o sal foi durante muito tempo o primeiro produto de exportação do país.
Mas se é esta a realidade portuguesa, o que devemos pensar das situações acima mencionadas relativas aos grandes deltas na Ásia do Sul e Sudeste, onde centenas de milhões de pessoas não têm acesso a água doce, livre de sal? Alguns estudos concluíram que há uma forte correlação entre altos níveis de sal em água para consumo e hipertensão em áreas afectadas pela salinização, tais como as áreas costeiras do Bangladesh. Temos todas as razões para pensar de os problemas de saúde pública ligados ao sal sejam mais graves nestas áreas do mundo do que em Portugal. Estudos precisos no entanto – e por enquanto – não existem.
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A mantra do aquecimento global
Ao pesquisar o tema da salinização na web é-se esmagado por uma autêntica cassete que apresenta o problema como consequência do “aquecimento global” (ou das “mudanças climáticas”).
É claro que mudanças climáticas têm o potencial de exacerbar os impactos da salinização. Se nos debruçarmos sobre as estatísticas europeias relativas à chuva, podemos ver que entre 1960 e 2015 a quantidade de chuva decresceu anualmente na Europa do Sul, e em particular durante os meses de Verão. Por outro lado o oposto aconteceu no Norte do continente; a quantidade de chuva aumentou, sobretudo nos meses de verão. Ao mesmo tempo e em toda a parte, as temperaturas têm aumentado de forma consistente, e esta situação obviamente aumenta as pressões relacionadas com a salinização. Apenas o aumento de chuva no Norte da Europa tem impacto positivo ao mitigar o impacto do uso do sal como agente anticongelante nas estradas.
Não é no entanto verdade que os impactos ligados à irrigação (e ao despejo de sal nas estradas) sejam resultado da situação climática. Estamos a falar de fenómenos diferentes. A salinização pode ser exacerbada por mudanças climáticas, mas não é criada por estas. É por isso decepcionante ver literatura científica inverter a ordem dos factores sem apresentar qualquer base científica para as suas afirmações.
Não me parece necessária qualquer discussão científica aprofundada no domínio das ciências naturais, uma vez que – como afirmei – a essência do fenómeno me parece simples, fácil de entender e verificada inúmeras vezes durante milénios de história.
Penso que o verdadeiro problema decorre de um fenómeno de psicologia de massas: a negação de realidades incómodas e ameaçadoras. Ainda me lembro da resposta dada pelo laboratório alentejano quando contestei a ausência de dados sobre níveis de salinização no lençol freático sob o meu olival: “toda a gente sabe que há sal na água, porque haveríamos de verificar?”.
Os benefícios imediatos e palpáveis da irrigação e descongelamento levam-nos a esquecer ou negar as suas consequências a longo prazo. E, quando estas se revelam, não as queremos enfrentar; em vez disso preferimos justificar os desastres como consequência de fenómenos difusos, globais e intangíveis, do tipo “mudanças climáticas”. Tudo menos enfrentar os factos e mudar as nossas práticas aqui e agora.
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Conclusões
Temos todas as razões para pensar que o fenómeno da salinização constitui um fenómeno global e ameaçador. Tão ou mais importante, tão ou mais urgente do que as “mudanças climáticas”.
A negação em massa deste fenómeno não se restringe àqueles que não o compreendem; muito pelo contrário tal negação é a normal entre decisores políticos e na comunidade científica. A tendência moderna de focar todas as atenções num número limitado de assuntos em voga, enquanto se ignoram todos os outros, não tem igualmente beneficiado uma reflexão racional e integrada sobre os desafios que enfrentamos, neste como em muitos outros temas.
A luta contra a salinização implica uma estratégia multidisciplinar levada a cabo dentro de uma visão de desenvolvimento integrado; por outras palavras, uma visão que integre todos os elementos envolvidos: a conexão entre água, energia, ambiente e desenvolvimento humano e a forma como outros fenómenos ambientais (entre os quais as mudanças climáticas) interagem com estes fundamentos da nossa existência. Acima de tudo, o impacto da salinização deve ser estudado em proporção à importância do fenómeno, e de forma rigorosa e objectiva.
A Ásia do Sul é provavelmente a região do mundo mais afectada por este problema; centenas de milhões de vidas dependem da sua compreensão e de acções (e soluções) concretas. Esta é outra razão pela qual trouxemos o assunto à conferencia mundial da ciência em Goa.
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