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Sábado, Julho 27, 2024

Justicialismo e corrupção

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

O que me parece particularmente importante nesta sentença é ela ser clara e simples. O que ela mostra é que não falhou apenas uma pessoa ou uma decisão particular, mas todo o sistema nacional judicial nas suas várias instâncias que se recusou a ver o que é óbvio para todos nós.

  1. A sentença do Tribunal Europeu

De acordo com o comunicado de imprensa publicado pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos relativo ao caso Fernandes Pedroso versus Portugal, o Tribunal, por unanimidade, concluiu que os princípios contidos no artigo 5.º, parágrafos 1, 4 e 5 (direito à liberdade e à segurança da pessoa / salvaguarda processual na revisão da legalidade da detenção / direito de compensação) da Convenção Europeia dos direitos do homem foram violados por Portugal.

Ainda de acordo com o mesmo comunicado de imprensa, o Tribunal considerou, em particular:

  • No momento em que o juiz decidiu a continuação da prisão preventiva, não existiam suspeitas plausíveis de que o suspeito tivesse abusado de menores; os argumentos usados para justificar a sua prisão não eram relevantes ou suficientes; as autoridades judiciais não tinham tido em consideração medidas alternativas à prisão preventiva.
  • Em vez de negar o acesso do suspeito à acusação, teria bastado às autoridades judiciais manter o anonimato dos queixosos.
  • Ao negar uma indemnização a Fernandes Pedroso, as autoridades judiciais portuguesas infringiram tanto a lei portuguesa como a Convenção Europeia.

Trata-se de uma condenação muito pesada por violação de regras básicas de um Estado de Direito pelas autoridades judiciais portuguesas. Na verdade, a condenação fica aquém da realidade, por não considerar o papel desempenhado pela comunicação social, que aumentou o impacto da violação da lei. Recorde-se que não se tratou apenas de uma prisão preventiva injustificada, tratou-se de a efectuar na Assembleia da República com convocação de toda a comunicação social.

O que me parece particularmente importante nesta sentença é ela ser clara e simples. O que ela mostra é que não falhou apenas uma pessoa ou uma decisão particular, mas todo o sistema nacional judicial nas suas várias instâncias que se recusou a ver o que é óbvio para todos nós.

O que o Tribunal dos Direitos Humanos condenou foi o sistema judicial português, e era bom que alguém tirasse consequências desse facto.

  1. A violação dos direitos dos menores

Lembremos que se tratou neste processo de averiguar se as crianças colocadas à guarda do Estado, e por este entregues à Casa Pia, em vez de verem a sua integridade física e moral salvaguardadas, seriam sistematicamente abusadas sexualmente.

Deste processo, resultaram condenações, algumas ainda hoje contestadas, e resultaram também um sem número de suspeitas que foram abandonadas por falta de prova. Acima de tudo, ficou a percepção de que estávamos perante abusos sistemáticos, e que o Estado e os seus responsáveis políticos não cuidaram como deviam de prevenir que estes abusos tivessem lugar, e que isso terá acontecido por negligência, incompetência, cumplicidade ou um pouco por tudo isso.

Um dos principais condenados foi funcionário da instituição de menores em causa durante um grande período de tempo e, de acordo com as suas declarações, conduziu os menores múltiplas vezes a locais onde estes eram abusados.

Por outras palavras, o escândalo da Casa Pia é absolutamente real, e justificaria um profundo, exaustivo e rigoroso inquérito político que determinasse responsabilidades e considerasse reformas institucionais viradas para a protecção da infância e para a responsabilização da administração pública, tanto dos funcionários como dos políticos, pelo que se passa nos sectores sob a sua tutela.

O sistema administrativo e político português falhou clamorosamente no seu dever de proteger os menores à sua guarda, e que em nenhum caso agiu como devia no estabelecimento de responsabilidades administrativas e políticas.

E chegamos aqui ao centro do justicialismo: a noção de que o sistema não funciona leva a opinião pública, a imprensa e mesmo determinados agentes da autoridade a concluir que se justifica exorbitar os poderes de que usufruem legalmente para fazer justiça por suas mãos.

Se é verdade que a corrupção não nasceu com a democracia, não é menos verdade que a democracia não só é frequentemente incapaz de a controlar mas como a institucionaliza e ‘democratiza’ no sentido em que a torna acessível a camadas mais vastas da população.

A título de exemplo, a nomeação de funcionários do Estado, ignorando critérios de competência ou de necessidades objectivas, como forma de satisfazer clientelas eleitorais, verificou-se em praticamente todas as democracias (incluindo a americana).

Na Grécia do século XIX – que como explica Francis Fukuyama, tal como a da antiguidade, foi a primeira a instituir normas democráticas generalizadas na Europa – a nomeação de professores nas escolas públicas era um instrumento de satisfação de clientelas políticas. Na Ásia do Sul, por exemplo, o mesmo aconteceu e continua ainda a acontecer.

Aos sistemas democráticos, não basta a legitimação do voto, torna-se também necessária a existência de um sólido sistema de ‘equilíbrios e controlos’ entre os vários poderes que devem ser independentes entre si (mas não do povo).

  1. As reformas que são necessárias

Neste contexto, não é possível esquecer o caso do ex-Primeiro Ministro José Sócrates, com quem, de forma óbvia, também não foram respeitadas regras elementares de um Estado de Direito.

Independentemente da acusação e do julgamento que correm, não é possível tão pouco esquecer que, como ele mesmo afirmou publicamente, ele recebeu – a título de empréstimo – vultuosas somas de um empresário com quem o Estado, durante o seu mandato, manteve uma relação intensa.

E a questão é que isto constitui um óbvio conflito de interesses, como é um óbvio conflito de interesses a assunção de funções de administração em qualquer das grandes empresas nacionais (nomeadamente as financeiras e as monopolistas) antes, durante ou depois de se exercerem funções no Governo ou, por exemplo, na segunda magistratura do Estado.

E em Portugal estas situações não são excepção, são a regra! E é a frustração dos portugueses perante este estado de coisas que cria o espaço político do justicialismo, do justicialismo que não só não faz justiça como nada resolver nas reformas institucionais necessárias.

Para fazer face ao justicialismo e às limitações da democracia, temos antes de impor um sistema de ausência de conflitos de interesse às magistraturas, e um sistema de controlos e equilíbrios entre elas, sendo que ninguém pode ser considerado acima da lei e da fiscalização por poderes independentes.

Se não entendermos a necessidade de uma profunda reforma do nosso velho sistema democrático, arriscamo-nos a ver uma vaga populista submergir o país e ver um qualquer justicialismo a impor-se, em prejuízo dos direitos do cidadão e da justiça.

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