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Sábado, Julho 27, 2024

Politécnicos e Universidades

Nuno Ivo Gonçalves
Nuno Ivo Gonçalves
Economista, Mestre em Administração e Políticas Públicas, Doutor em Sociologia Política. Exerceu actividade em Gestão Pública, Recuperação de Empresas, Auditoria e Fiscalização e foi docente no ISE e no ISG. Investiga em História Contemporânea.

Os Politécnicos devem poder fazer o mesmo que as Universidades, e inclusive conceder o grau de Doutor?A questão  tem cabimento atendendo a que o chamado “sistema binário”  de ensino superior  visou impedir a “contaminação académica” do ensino superior politécnico, e que quer Mariano Gago quer os responsáveis do governo de Pedro Passos Coelho o defenderam com unhas e dentes.

Por que razão Manuel Heitor, Secretário de Estado  de Mariano Gago, se inclina agora para uma aparente derrogação do sistema binário com a atribuição  aos institutos politécnicos da possibilidade de concederem o grau de doutor é “uma questão dentro da questão” que não  poderei tratar  aqui.

Por que razão não hão-de ambos os tipos de instituições fazer o que sabem fazer?

Em grande parte as experiências estrangeiras e as nossas próprias mostram que tentar prosseguir o objectivo de uma formação profissional virada para um ingresso a curto prazo no mercado de trabalho pode ser prejudicado ou mesmo anulado pela inserção num contexto social e organizativo  em que as instituições formadoras, os seus docentes, os próprios alunos são levados a privilegiar os perfis de actividade e de formação mais nobres. A experiência do ensino secundário unificado após o 25 de Abril pareceu  dar razão a estas preocupações.

O sistema binário português de ensino superior iria em princípio ficar imunizado contra a “contaminação”:

  • regimes jurídicos diferenciados;
  • separação orgânica entre Universidades e Institutos Politécnicos, reforçada pela construção de instalações próprias para estes;
  • esfera de influência mais restrita que a das Universidades  – local ou sub-regional,
  • graus académicos correspondentes a cursos de curta duração;
  • realização de investigação apenas “orientada”;
  • carreira docente com menores exigências – acesso a categoria de professor e ao “quadro” com grau de mestre e previsão desde o início, de vias alternativas (provas públicas).

Esta configuração foi merecendo protestos do Conselho Coordenador dos Institutos Superiores Politécnicos (CCISP), que ia falando de dignidade, imagem, valorização social do subsistema, e a evolução concreta veio a pô-la em causa:

  • Politécnicos houve que foram sendo reconvertidos em Universidade (o Instituto Politécnico da Covilhã, por exemplo) ou extintos e as suas escolas integrados numa destas (o Instituto Politécnico de Faro), mas visando evitar o alastramento Mariano Gago bloqueou  um projecto de fusão entre a Universidade de Lisboa de António Nóvoa, o Instituto Politécnico de Lisboa e a Escola Superior de Enfermagem de Lisboa;
  • a falta de alunos na sua cidade ou na sub-região levou várias escolas politécnicas a procurarem os seus  alunos em outras regiões, fazendo concorrência a instituições dessas áreas;
  • os graus académicos conferidos foram crescendo de importância: licenciatura, mestrado bolonhês,  concessão de doutoramento por acordo com universidades em áreas em que os próprios politécnicos é que detinham as competências (enfermagem, contabilidade), muito embora se tenha aberto a possibilidade de, numa linha mais profissionalizante, se atribuírem  diplomas de “técnico superior”;
  • a restrição da investigação à “investigação orientada” nunca teve alcance prático;
  • o doutoramento acabou em 2009 por ser introduzido como condição de acesso às categorias da carreira, embora esta mantivesse as denominações anteriores e se previsse como via alternativa a obtenção de um mal definido título de “especialista”.

Adiro ao princípio de que se deve deixar as instituições fazer aquilo que sabem fazer, mas interrogo-me se, às actuais universidades, mais autónomas, mais flexíveis, quase-empresarializadas,  não deveria ser também consentido que assegurassem também  formações profissionalizantes actualmente confiadas aos Institutos Politécnicos e a certificação de qualificações, como a dos “especialistas”. E se não se deveria generalizar o modelo de universidade com dois subsistemas (já existente em Aveiro e no Algarve e noutras Universidades com Escolas de Enfermagem), embora com separação orgânica interna entre Faculdades e Escolas Politécnicas.

Como acolheram os Politécnicos, que agora se propõem dar o doutoramento, os seus doutorados?

A rede inicial dos Politécnicos resultou  da  inserção de escolas superiores (nalguns casos de ex- escolas “médias”)  não integradas em Universidades, com lideranças e pessoal docente em que se contavam apenas alguns  doutorados. O núcleo docente inicial de algumas escolas superiores de educação formou-se a partir de pessoal enviado a fazer mestrados em Boston.  Nestas condições a decisão de realizar doutoramento, na maioria dos casos sem dispensas de serviço ou outros apoios, em instituições universitárias  necessariamente nacionais, foi sempre uma decisão individual, que gerou frequentemente reacções de desconfiança nas instituições “empregadoras”. Tenho presentes vários casos de docentes já doutorados, precários, com contrato a termo ou mesmo em substituição que foram friamente eliminados dos corpos docentes das suas instituições, ou a quem, apesar de legislação promulgada em 2003, foi vedado o acesso aos Conselhos Científicos, para não se “distraírem” da sua missão. Entretanto  concursos “com fotografia” abertos em algumas instituições afastavam os outsiders, ainda que mais qualificados.

A proposta de introdução em 2009 do doutoramento como condição de acesso às categorias de professor deu origem a algumas convulsões por razões que não tinham a ver com a rejeição do modelo de carreira mas sim com a convicção de que Mariano Gago queria colocar nos corpos docentes do Politécnico investigadores doutorados que estavam então a passar do regime de bolsas ao regime de contratos a termo do “Compromisso com a Ciência” expulsando os docentes também contratados a termo, com a inexistência de apoios (dispensas de serviço, isenção de propinas, bolsas) e com a não garantia de contratação como professor dos docentes do Politécnico que se doutorassem, no que foi apresentado como uma chocante discriminação em relação aos docentes universitários.

Na sequência de viva contestação e de greves a avaliações, foram concedidas tanto em sede negocial como de apreciação parlamentar algumas destas condições (que em muitos casos acabaram por não se materializar, obrigando recentemente à publicação de legislação complementar)  e garantias. Nos anos seguintes muitos doutoramentos se fariam, não só de precários que pretendiam aceder à carreira mas também de professores do “quadro” que se viram confrontados com a necessidade de doutoramento para concorrer à categoria superior, e que por vezes beneficiaram dos apoios disponibilizados em detrimento dos primeiros. Uma boa parte dos doutoramentos foi feita no quadro de acordos bilaterais, em universidades espanholas fronteiriças mas também  em universidades portuguesas.

Algumas propostas preocupantes, que felizmente não tiveram sequência,  marcaram o início deste período, em que os órgãos das instituições já contavam um número apreciável de doutorados:

  • foi pedido inicialmente à tutela que as instituições politécnicas pudessem conceder doutoramentos, a fim de formarem o seu próprio corpo docente;
  • idem, que pudessem conceder o título académico de agregado, para os já doutores não terem de se sujeitar a provas nas universidades.

Também uma proposta sindical para que os professores coordenadores e coordenadores principais só tivessem o vínculo reforçado da tenure se detentores do grau de doutor concitou o silêncio embaraçado de Mariano Gago e do então presidente do CCISP, com o resultado de que  em caso de reestruturação e remessa para requalificação, valorização ou como quer que se chame a coisa na altura, as instituições  começarão por alijar os jovens doutorados que vão permanecer ad aeternum como professores adjuntos em vez de recolocarem os professores mais antigos e menos qualificados.

Investigação “da casa” na base da acreditação de doutoramentos?

A negociação de 2009, bastante dura, sobre a revisão do Estatuto da Carreira do Politécnico (ECPDESP) garantiu aos doutores o direito de escolherem o quadro institucional da sua investigação, contra  a obrigação de desenvolverem “investigação orientada” na Escola que lhes paga (em algumas das quais num “Centro” único) direito também reconhecido aos universitários. Muitos jovens doutores das universidades “periféricas”  e dos politécnicos puderam assim continuar ligados às instituições que os acolheram na investigação  para doutoramento.

O alargamento aos politécnicos da capacidade de concessão de doutoramentos passará por uma avaliação dos centros de investigação da “casa” e tenderá a forçar uma concentração  de “recursos” nesses centros, em detrimento de uma inserção socialmente mais vantajosa para a produção de conhecimento. Será que queremos pagar esse preço?

Por exemplo no caso da Escola Superior Agrária de Elvas, cuja dinâmica merecerá um dia ser estudada, com o devido relevo aos respectivos actores.
A questão da atribuição do título profissional de especialista justificará, por si só, um artigo.
A integração das escolas politécnicas nas Universidades, com extinção das respectivas Presidências foi defendida há anos por Joaquim Sande Silva, da Escola Superior Agrária de Coimbra, e que foi recentemente membro da Comissão Técnica Independente que se pronunciou sobre os incêndios florestais de 2017.
Em contrapartida ouvi a docentes universitários referências elogiosas sobre os seus alunos de doutoramento oriundos do Politécnico e tive o gosto de ler algumas teses publicadas em áreas que domino relativamente.
Ou a realizarem o doutoramento.
Mariano Gago terá em conversas privadas e antes deste seu período governativo defendido este cenário, mas nunca lho ouvi durante o processo negocial, embora a deputada Manuela de Melo (PS) tenha afirmado no processo de apreciação parlamentar  ser esse o efeito esperado  da revisão da carreira.
No ECDU esta garantia ficou definida em 1979 e 1980 num processo com alguma participação / contestação dos destinatários, enquanto no ECPDESP, em 1981 não havia à partida pessoal já em funções que pudesse contestar a sua falta.
Neste período a generalidade dos docentes do Politécnico compreendeu não ser o CCISP seu representante, sendo os processos de greve conduzidos por comissões independentes em Lisboa, Porto e Coimbra, com base em pré-avisos emitidos pelo Sindicato Nacional do Ensino Superior (SNESup)  aos quais a FENPROF não se quis associar.
Geralmente com convergência PSD-BE-CDS e também PCP.
Do  SNESup, a cuja Comissão Negociadora o autor destas linhas pertenceu.
Também aqui um cavalo de batalha do SNESup.
Apesar das exigências de “não-concorrência” incluídas em alguns regulamentos, incluindo um de António Sampaio da Nóvoa na Universidade de Lisboa.

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