Em sua nova versão da Classificação Internacional de Doenças, a Organização Mundial da Saúde (OMS) retirou a transexualidade da lista de doenças mentais. A informação foi divulgada na última segunda-feira (18) e, apesar de ser um avanço significativo, ainda há uma longa caminhada para que a intolerância cesse no país que mais mata pessoas trans no mundo.
Há 28 anos a Organização Mundial da Saúde (OMS) retirou a homossexualidade da categoria de transtornos psicológicos. Agora, a organização retirou também a transexualidade da categoria de “distúrbios mentais” na nova versão da Classificação Internacional de Doenças, a CID-11, divulgada nesta segunda-feira (18).
De acordo com a OMS, “as evidências são claras de que não é um transtorno mental, de fato pode causar enorme estigma para as pessoas que são transexuais e, por isso, ainda existem necessidades significativas de cuidados de saúde que podem ser melhores se a condição for codificada sob o CID”.
A mudança é um passo importante para a comunidade trans, conforme afirmou Rafaelly Wiest, diretora de informação do Grupo Dignidade e diretora administrativa da Aliança Nacional LGBTI e transexual.
“É um avanço significativo para nós enquanto pessoas trans justamente porque ficamos todo esse tempo na categoria de doenças mentais, o que nos estigmatizava mais ainda. Então, essa vitória é um passo enorme para as conquistas dos nossos direitos, mas ainda temos uma grande caminhada pela frente”, disse Rafaelly Wiest em entrevista ao PV.
Para Andrey Lemos, presidente da UNALGBT, essa mudança é resultado da luta de décadas dos movimentos LGBTI que, por meio da participação social e de reivindicações, colhem agora uma das primeiras conquistas para pessoas trans em busca do respeito à diversidade sexual.
Acreditamos que esse ato da OMS irá reverberar em uma desconstrução do estigma e do preconceito que a população que ainda sofre e que irá retirar da invisibilidade a luta das pessoas transexuais, mostrando que elas existem e que estão no mundo todo ocupando diferentes espaços, mas que, lamentavelmente, por conta do preconceito ainda ocupam indicadores preocupantes como os indicadores da violência”.
Segundo o ranking de 2018 da organização civil europeia Transgender Europe, o Brasil é o país que mais mata pessoas trans em todo o mundo, um dado alarmante.
Eu, enquanto uma mulher trans, tenho muito orgulho de ser brasileira, mas ao mesmo tempo me entristece saber que o Brasil lidera o ranking de violência contra pessoas trans… Em nenhum lugar do planeta se mata mais trans do que aqui. Além disso, a gente também sofre muito com a discriminação e preconceito como um todo. É um desafio diário para que sejamos respeitados e respeitadas e vistos como realmente somos. Então acredito que esse ano foi muito significativo para nós”.
Apesar da transexualidade ter deixado de ser considerada um “transtorno de gênero”, ela ainda permanece no documento na categoria de “condição relativa à saúde sexual”, sendo diagnosticada como incongruência de gênero. O que levou a divergência de opiniões na comunidade trans, com uma parcela de pessoas que já consideraram um grande avanço e outras que veem essa mudança como um primeiro passo, conforme destacou Toni Reis, diretor-presidente da Aliança Nacional LGBTI. Pare ele, esse foi um avanço que deve ser comemorado, mas que também é necessário eliminar o resquício de se colocar no documento que as pessoas são incongruentes de gênero.
Esse foi um primeiro passo, mas precisamos continuar com a atuação política na OMS para que se elimine esse tipo de rótulo de incongruência de gênero. Também temos que discutir esse tema com os vários segmentos de pessoas transgêneras para se chegar numa redação melhor para que não seja usado o termo ‘incongruência’. Porque agora não há uma doença, mas há uma pessoa incongruente, uma pessoa inconclusa”.
A definição de incongruência de gênero está relacionada a uma desconexão, ou seja, uma não identificação do corpo físico com o psicológico. Com essa determinação fica entendido que existem homens e mulheres, sendo que na realidade, existem pessoas e elas não deveriam ser pré-determinadas.
“Eles usaram esse termo e eu entendo, particularmente, que é como se eu estivesse errada, que algo não está batendo. E isso acaba dando brecha para interpretações… É delicado porque acho que deveríamos ter o direito da autodenominação. Apesar disso, acredito que no final das contas abriu-se um espaço muito grande de melhora na discussão. E que também que é importante ter dentro do Código Internacional de Doenças para proteção. A gestação, por exemplo, não é uma doença e está dentro da CID”, disse Rafaelly.
A diretora-administrativa da Aliança Nacional LGBTI se refere a continuidade da transexualidade ainda dentro da CID, já que no Brasil se garante o direito a cirurgias de mudança de sexo e outras terapias no Sistema Único de Saúde (SUS). Assim, assegura-se a cobertura pelos sistemas de saúde, como já acontece com mulheres grávidas.
“A gestação tem um CID, mas uma mulher grávida não é doente. Ela passa por um período de transformação hormonal que exige determinado cuidado para aquele momento. Então nós lutamos muito para ficar em uma categoria como a da gestação, pois é uma transição basicamente corpórea que as pessoas trans passam e que exige sim um acompanhamento médico cirúrgico e um tratamento hormonal no período de transição. Deste ponto de vista, eu vejo como muito positivo”, explicou Rafaelly e continuou:
Enfim, é um avanço bem significativo, porém o Brasil é campeão em violência, vemos assassinatos e o nível de suicídio de pessoas LGBT crescendo muito, justamente por conta do preconceito e da discriminação . Temos uma batalha muito grande pela frente e acredito que, em termos práticos, ainda será uma caminhada para conseguirmos efetivamente sermos respeitadas e não sermos tratadas como doentes e estranhas”.
Necessidade de políticas públicas
Andrey Lemos destacou em entrevista ao PV que para além da alteração da OMS é necessário o acesso de pessoas trans à educação, à formação profissional e também no mercado de trabalho.
“Sabemos que a sociedade tem uma intolerância muito maior com as pessoas transexuais porque elas desafiam a normatividade social. Elas abrem mão de uma identidade e de um papel que é imposto a partir do seu nascimento para exercer uma identidade a qual elas se sentem melhor, mas que, na maioria das vezes, provoca situações de intolerância e de desrespeito com relação ao seu direito de expressar sua identidade de gênero”, falou.
Por conta disso, elas sofrem mais com a invisibilidade e com o ódio e intolerância que existem na sociedade e isso impede que as pessoas transexuais estejam trabalhando nas empresas, nas lojas de comércio, nas indústrias e que também estejam no banco da formação do ensino superior”.
Para ele, tudo isso tudo reverbera no retardamento do reconhecimento da importância da visibilidade, do respeito e pela luta por igualdade das pessoas trans.
“Nossa luta é pela promoção do respeito e da valorização da vida das pessoas transexuais, mas o Estado tem dificuldade de assegurar a vida dessas pessoas. E agora esperamos avançar, criminalizar a LGBTfobia, promover uma escola que seja inclusiva com uma educação emancipadora e que proporcione uma reflexão na sociedade sobre os diferentes papeis de gênero e de identidade de gênero, para que assim, as pessoas tenham direito a manifestar suas sexualidades e suas identidades, livremente”, concluiu.
Por Verônica Lugarini | Foto: NurPhoto via Getty Images | Texto em português do Brasil
Exclusivo Editorial PV / Tornado
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