A revisão da Lei de Bases da Saúde está no centro da agenda política. Nesta época de calor e sol, quando apetece acompanhar a novela desportiva e descansar os neurónios, reacendeu-se o debate sobre o direito à saúde e como este se concretiza: Universal, Geral e (tendencialmente) Gratuito?No centro do debate está a natureza do Serviço Nacional de Saúde (SNS). A questão parece ser: reconfigurar ou refundar? Ou em termos mais simples, descaracterizar ou salvar?
A pré-proposta de Lei de Bases da Saúde apresentada pela “Comissão Belém Roseira” foi apresentada em 19 de Junho e encontra-se em discussão pública durante 30 dias. Numa breve apreciação poderá considerar-se que a pré-proposta consiste numa evolução na continuidade, respaldada pela ideia de “pacto de regime”, em que se promove uma transformação do SNS em obediência a uma concepção “larga e não restrita” (Público, 21/04/2018).
Na realidade a pré-proposta anuncia o caminho para:
- Maior financiamento do sector privado através do Orçamento de Estado.
- Municipalização da concretização da função social da saúde.
A pré-proposta de Lei de Bases da Saúde estrutura-se sobre a “inovação” que consiste na redefinição do conceito de “prestação pública de saúde”. Ora, esta dita “prestação pública de saúde” baseia-se na natureza do financiador e não do prestador, contrariamente ao entendimento da Lei em vigor. Ou seja, qualquer prestador privado pode fornecer “prestação pública de saúde” desde que seja o Estado a pagar. Com efeito, é através desta reviravolta de conceito que se permite (e fomenta) um aumento do financiamento ao sector privado porque “as prestações públicas de saúde são financiadas por verbas do Orçamento do Estado (…)” (Base XXIV, n.1).
De acordo com esta visão “larga e não restrita” importa libertar o sector privado da sua função concorrencial, como prevista na Lei de 1990. Pretende-se que, de futuro, as entidades privadas sejam consideradas como parte integrante do SNS, numa amálgama ou, de forma mais prosaica, numa mexerufada.
Ao ser (pré)proposto que “a contratação da realização de prestações públicas de saúde a integração do estabelecimento no SNS” (Base XX,nº7) e, complementarmente, que “a gestão de estabelecimentos e serviços do SNS ou de partes funcionalmente autónomas dos mesmos constituir objeto de concessão com (…) entidades privadas” (Base XX, n.9), promove-se a indistinção entre os sectores privado e público, não somente criando a confusão, como dificultando a participação democrática.
Adicionalmente a pré-proposta também prevê que as autarquias locais poderão ser “ de prestações públicas de saúde ou (…) de estabelecimentos e serviços do SNS (…)” (Base XX, n.8) e intervirem “no planeamento da rede de estabelecimentos prestadores”(Base XLIV, n.1). Ou seja, o que o governo PSD/CDS iniciou como um projecto-piloto de delegação inter-administrativa de competências (de escassa adesão e eficácia duvidosa como se pode constatar por Cascais), procura esta pré-proposta institucionalizar, em todo o país, prevendo, assim, a municipalização da função social da Saúde.
Este conjunto reconfigurado designado por “prestações públicas de saúde do Serviço Nacional de Saúde” (Base XX, n.1) originará problemas de utilização dos serviços de saúde. Ao propor-se que os seguros de saúde sejam financiadores do SNS (Base XXIV; n.5b) (porque ao incorporar-se no SNS o sector privado estes não podem ser limitados nas suas receitas provenientes dos seguros de saúde), está a introduzir-se um importante princípio de desigualdade de acesso: quem tem seguro de saúde e quem não o tem. Com efeito, a pré-proposta tanto reconhece os perigos de seleção adversa e de indução indevida da procura possibilitada por esta reconfiguração do SNS, que tenta limitar os seus efeitos através de (i) um (ainda indeterminado) tecto máximo de taxas moderadoras (XXV, n.2) e de (ii) um suposto impedimento de discriminação a quem não tenha seguro de saúde (Base VII, n.2).
Todavia, segundo a pré-proposta, os seguros de saúde poderão comportar-se como até hoje, incluindo excepcionar por idade e proceder à “interrupção ou descontinuidade de tratamentos caso sejam alcançados os limites contratualmente estabelecidos” (Base XXX, n.2). Ora, na prática, o que isto significa é que além de nem todas as pessoas poderem ter seguro de saúde, qualquer “hospital privado do serviço nacional de saúde” poderá esgotar o “plafond” do seguro e continuar a prestar os cuidados assacando a despesa ao Estado, dispensando-se de ”despejar” os doentes (Público, 3 de Abril, 2018). Em concreto, se por um lado se aparenta resolver o problema da continuação dos cuidados, está-se de facto a proteger os interesses de quem lucra financeiramente com a saúde, sem que haja real possibilidade de controlo da despesa ou a efectiva garantia de igualdade nos cuidados ou ao seu acesso.
Prosseguindo-se pelo caminho proposto na pré-proposta de Lei de Bases o que acontecerá a curto e médio prazo é que teremos serviços de saúde Estatais subfinanciados (embora com despesa pública alta por via do financiamento ao sector privado), restando a parte exclusivamente pública do Serviço Nacional de Saúde, desguarnecida e desapetrechada, para os velhos e os pobres.
É esta a garantia de Universalidade, Generalidade e tendencial Gratuitidade?
É hora de decidir: descaracterizar ou salvar?
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