Ao iniciar-se o período de férias foi divulgada para debate público uma pré-proposta de revisão da Lei de Bases da Saúde (LBS). Refleti-la, em Cascais, com referência à experiência educacional, leva-me a considerar que este é o caminho para legislar a destruição de uma das mais belas sementes que Abril germinou.
A cabeça pensa a partir de onde os pés pisam
(Leonardo Boff)
Como se sabe Cascais é o bastião de um populismo autocrático PSD/CDS onde, não obstante haver um rendimento médio elevado e um ambiente natural agradável, a maioria da população tem sido significativamente afetada pela fragilização dos sistemas sociais públicos decorrente da obsessão privatista.
Quanto à Saúde, neste concelho, existem muitas clínicas particulares, um Hospital privado lucrativo, um Hospital que pertence a uma Misericórdia e um outro que funciona em parceria público-privada (PPP) anunciando-se, para breve, a construção de mais dois Hospitais privados e algumas outras clínicas também privadas.
No Ensino mais de 50% dos estudantes frequentam estabelecimentos privados e a situação nas escolas públicas só não é de rutura graças ao redobrado esforço dos seus profissionais e porque existe um Sistema de Ensino de âmbito nacional que, no essencial, ainda não foi pervertido nem municipalizado. As últimas três décadas têm comprovado a importância de a Lei de Bases do Sistema Educativo (LBSE) consagrar um conjunto de princípios democráticos que têm possibilitado ao sistema público de educação, resistir e manter-se como motor de um dos mais notáveis progressos ocorridos na atual República.
Uma Lei de Bases pode ser um instrumento importante para a prossecução de políticas estáveis que respondam às necessidades de cada pessoa e do todo nacional desde que obste à predação dos direitos sociais pretendida pelos interesses financeiros dominantes.
É deste ponto de vista que as opções estruturantes da revisão da Lei de Bases da Saúde podem emergir como determinantes para a salvação e relançamento de um dos pilares da democracia portuguesa – o Serviço Nacional de Saúde (SNS).
É sabido que o SNS, instituído em 1979, conheceu um significativo revés quando em 1990, no auge da governação Cavaco Silva, foi aprovada, pelo PSD e pelo CDS, uma Lei de Bases da Saúde em óbvia consonância com os interesses dos grandes negócios privados. Em consequência, desde então, o SNS está em regressão e declínio. Nos últimos anos, tem sido vítima de um arrastado processo de degradação e degenerescência: degradação do seu funcionamento e da resposta às necessidades dos seus utentes, degenerescência dos seus princípios fundadores. Se nada for feito para suster e inverter esta curva descendente, o SNS deixará de ter condições para continuar a ser o garante do direito à saúde e, onde hoje temos um direito reconhecido e consagrado, passaremos a ter apenas negócio e nada mais do que negócio.»
O Partido Socialista, que hoje é governo e pode contar com o apoio de uma maioria parlamentar de esquerda, opôs-se, em 1990, à aprovação da atual Lei de Bases da Saúde. Fê-lo afirmando, então, que esta Lei (i) não considera «o SNS como órgão fundamental do sistema de saúde dos portugueses», (ii) dá incentivos à «iniciativa privada em concorrência com o SNS», (iii) cria taxas «abrindo caminho para uma medicina para ricos e outra para pobres», (iv) «confunde regionalização com desconcentração», (v) não clarifica a constituição e provimento dos órgãos do SNS «abrindo caminho à nomeação de novos comissários políticos», (vi) «permite a acumulação de funções dentro e fora do SNS», (vii) «permite a mobilidade de pessoal da saúde entre o sector público e privado (…) em claro apoio às multinacionais da saúde», (viii) «reduz as responsabilidades do Estado como garante do direito constitucional à proteção da saúde dos cidadãos e agrava os encargos dos doentes».
É à luz destes pressupostos que importa olhar o debate em curso, entretanto pautado pela apresentação de um projeto de Lei proposto pelo Bloco de Esquerda e de uma pré-proposta elaborada pela “Comissão Maria de Belém Roseira” para o efeito convidada pelo ministro da Saúde Adalberto Campos Fernandes.
A pré-proposta da “Comissão Maria de Belém”
O documento divulgado constitui motivo de alguma estranheza e bastante preocupação.
É certo que a sua prolixa e algo confusa redação conduz facilmente ao engano. Apresenta-se como sendo um mero instrumento clarificador e mesmo “disciplinador” da situação atualmente existente e até inclui alguns aspetos positivos.
Mas, na verdade, não se pode deixar de estranhar que esta pré-proposta, no que é essencial, se apresente tão ao invés do que se esperaria que fosse hoje a posição de um Partido que se opôs à atual LBS e teve no seu fundador nº 4 (António Arnaut) um dos principais obreiros do SNS.
É que objetivamente, e isso constitui motivo de iniludível preocupação, a pré-proposta encomendada pelo ministro da Saúde não só dá continuidade como até aprofunda alguns dos aspetos mais perversos da LBS que o PSD e o CDS impuseram em 1990.
A sua Base XX sobreleva todo o restante articulado quando vem considerar como “serviço público de saúde” não apenas o SNS mas também os estabelecimentos ou instituições do setor privado, tanto social como lucrativo. Ou seja esta pré-proposta é, essencialmente, o caminho para o Estado ser o financiador de um chamado “serviço público” de saúde que pode ser prestado tanto por entidades públicas como privadas numa perspetivada proliferação de PPPs à escala nacional.
Com esta pré-proposta, está-se perante a conhecida lógica que fundamentou em muitos países , com os desastrosos resultados que hoje se reconhecem, a privatização dos transportes. Diz-se que continua a ser um “serviço público” quando o Estado, através de diversos mecanismos, paga milhões por esse “serviço público” que é prestado, com substantivos lucros, pelos grandes grupos privados.
Fica por saber que consórcio financeiro ganhará a dianteira para se afirmar como o “Barraqueiro” da Saúde. Certamente a International FOSUN (Luz Saúde) e o Grupo Mello (CUF) já levam bastante dianteira.
Todo o restante articulado da pré-proposta, com muitas referências mais ou menos simpáticas, só é inteligível à luz do conceito nuclear em que desaparece a separação entre serviço público e serviço privado.
De tal forma que a pré-proposta faz mesmo questão de acentuar (Base XX . 9) que não só «a gestão de estabelecimentos e serviços do SNS» como até «partes funcionalmente autónomas dos mesmos» podem ser concessionadas a entidades privadas.
Se for aplicada ao Ensino
Não sei como reagirão os profissionais da Saúde perante um tal projeto mas creio antever qual será a reação dos professores quando se pretender estender um tal modelo à Educação.
De acordo com esta lógica ultra-liberal, em que o Estado paga o “serviço (ao) público” que pode ser prestado por estabelecimentos públicos ou privados (Cf. Base XX.1 da pré-proposta) em função de quiméricos princípios de necessidade e eficácia (Cf. Base XX.2 da pré-proposta), o sistema educativo seria convertido num amplo negócio de PPPs.
Os colégios poderiam ser considerados como parte do Sistema Nacional de Ensino e os seus custos suportados pelo Estado (Cf. Base XX.7 da pré-proposta).
O setor privado e os municípios passariam a controlar a gestão das escolas (Cf. Base XX.8 da pré-proposta), a contratação precarizada de profissionais (cf. Base XXXVII da pré-proposta) e outros aspetos essenciais do funcionamento da educação.
Teríamos então uma enorme confusão em que um designado Sistema Nacional de Ensino seria constituído por escolas públicas mas também por colégios privados a par de um outro conjunto de escolas privadas com, ou sem, contratos com o Estado.
Além disso a gestão das escolas públicas, ou de parcelas destas, poderia ser concessionada aos donos dos colégios ou às autarquias.
Antevejo, por exemplo, a gestão do Agrupamento de Escolas de Carcavelos a ser concessionada ao Grupo GPS e a contratação dos respetivos professores a ser concessionada à Câmara Municipal.
Este modelo que hoje parece absurdo e assustador quando aplicado à educação é, na verdade, aquilo que a pré-proposta de LBS elaborada pela “Comissão Maria de Belém” vem defender para a Saúde com uma “naturalidade” apenas possível no panorama de um sistema de saúde em «degradação e degenerescência» onde os grandes interesses financeiros das empresas seguradoras e clínicas há anos detêm uma influência exorbitante.
De facto estamos perante a ofensiva mais clara (e violenta) do dogmatismo neoliberal contra o Serviço Nacional de Saúde português. A concretizar-se será a destruição efetiva desse Sistema em favor de um modelo de matriz mercantilista delapidador dos recursos públicos e socialmente dramático neste país de baixos salários e com um desenvolvimento incipiente.
Esta é uma questão essencial. Outras haverá neste debate que, sendo importantes, são decorrentes daquela.
Espero que os professores que nos seus combates em defesa da Escola Pública têm sempre contado com o apoio dos profissionais da saúde e das suas organizações representativas compreendam o que está em causa e estejam assumidamente do mesmo lado dos médico, enfermeiros e demais profissionais da saúde na luta para salvar o SNS.
Tenho ainda esperança que António Costa não esqueça a palavra que deu a António Arnaut quando lhe garantiu que: vamos aguentar o SNS nesta geração e para as próximas gerações porque o SNS veio para ficar e é seguramente uma das grandes marcas do Portugal de Abril».
Se, por interesse de aproximação ao PSD, o não fizer, estará, seja qual for a “justificação” que apresente, a promover o golpe fatal no SNS e a abrir o caminho para a destruição de um dos sustentáculos essenciais do frágil Estado Social que se acreditou possível construir na Democracia portuguesa.
Por opção do autor, este artigo respeita o AO90
«É tempo de semear de novo. Perdeu-se alguma sementeira mas não se perdeu a semente. E o terreno é fértil» escreveu António Arnaut acerca da necessidade de salvar do SNS.
Mensagem enviada por António Arnaut no dia 20.4.2018
Cf Declaração de voto contra a aprovação da Lei de Bases da Saúde expresso pelo PS na Assembleia da República em 12 de Julho de 1990.
Desde a privatização da Rodoviária Nacional, em 1992, o Grupo Barraqueiro, de Humberto Barbosa, afirmou-se como a entidade quase-monopolista dos transportes “públicos” portugueses.
Palavras de António Costa para António Arnaut na véspera da morte deste.