Na semana passada, em sua coluna na Folha de São Paulo, a economista Laura Carvalho levantou um tema muito interessante ao escrever sobre “A globalização dos gols”.
Tendo como referência o artigo “Globalization and goals: does soccer show the way?”, do economista Branko Milanovic, a autora argumenta que “a maior circulação de jogadores entre os diferentes países do mundo contribuiu para aumentar o nível de desigualdade entre os clubes”. Entretanto, além da Lei Bosman, que permitiu a livre circulação dos jogadores pelos países europeus, há um outro fator determinante para o aumento da desigualdade entre os clubes, este também fruto da globalização do futebol: a revolução dos direitos de transmissão televisiva. Cada vez mais rico, o futebol vem se tornando cada vez mais desigual, graças à concentração dos recursos financeiros nos cofres de um restrito número de clubes.
Em “The globalization of football: a study in the glocalization of the ‘serious life’” (2004), Richard Giulianotti e Roland Robertson sustentam que “o esporte, em particular o futebol, constitui um dos domínios mais dinâmicos e sociologicamente esclarecedores da globalização”. Para eles, o futebol, como o “jogo global”, nos ajuda a explorar teórica e empiricamente os processos multidimensionais e de longo-termo da globalização. Giulianotti, em seu livro “Sociologia do futebol” (2010), diz que “o futebol é uma das grandes instituições culturais, como a educação e os meios de comunicação de massa, que forma e consolidam identidades nacionais no mundo inteiro”, sendo, portanto, reflexo do contexto social, político e econômico no qual se encontra inserido.
Constata-se, por exemplo, que o futebol replica o conceito de centro-periferia sob o prisma das relações econômicas, como desenvolvido por Raúl Prebisch. O argentino argumenta que o centro do poder global relegou à periferia do sistema econômico a mera condição de fornecedor de alimentos e matérias-primas, não havendo espaço para que os países novos desenvolvessem suas indústrias.
O futebol “pós-moderno”, caracterizado pelo crescimento financeiro pós-Copa do Mundo 1990 (Giulianotti, 2010, p. 137), impulsionado em grande parte pela revolução dos direitos de transmissão televisiva, aprofundou o fosso que separa o centro da periferia em todas as escalas – global, continental e nacional. Isso porque a “distribuição desigual dos pagamentos feitos pela televisão entre os clubes resulta em uma concentração ainda maior de riqueza financeira e do sucesso no futebol” (Giulianotti, 2010, p. 127). No mesmo sentido argumentam Christine Oughton e Jonathan Michie, em “Competitive Balance in Football: Trends and Effects” (2004), ao afirmarem que a ausência de regulação na distribuição dos recursos econômicos gera a tendência para que os clubes bem-sucedidos se tornem cada vez mais ricos, fazendo com que os menos bem-sucedidos fiquem, proporcionalmente, mais pobres.
A nível global, a concentração do poder econômico no futebol mundial também se encontra na Europa. No futebol, os países periféricos seguem sendo fornecedores de matérias-primas para os clubes europeus e, em muitos países, seu povo não tem outra alternativa a não ser a de exercer o papel de consumidor do produto final – as grandes ligas europeias, como a popularização em todo o mundo e o faturamento de ligas como a Premier League (Inglaterra), Bundesliga (Alemanha), La Liga (Espanha) e a Liga dos Campeões da Europa, por exemplo, demonstram.
Concentração de riquezas e desigualdade na Europa
Na Europa, a Lei Bosman (citada por Laura Carvalho em sua coluna), abriu as fronteiras para a livre transação e livre circulação de jogadores “comunitários” no território da União Europeia, dando a possibilidade de uma equipe escalar qualquer atleta com cidadania comunitária, independente de nacionalidade, permitiu que gigantes ingleses, espanhóis, italianos e alemães, detentores de mais recursos financeiros, tornassem-se concorrentes inalcançáveis para os clubes até mesmo da “semiperiferia” europeia (para utilizar o termo empregado por Giulianotti, 2010, p. 139).
Os clubes portugueses, por exemplo, viraram-se, principalmente, para o mercado sul-americano e tiveram de recorrer a boas redes de olheiros para encontrar novas promessas antes dos gigantes do continente – e aqui temos outro exemplo de como a teoria do centro-periferia se evidencia no futebol, com clubes da semiperiferia europeia explorando os mercados periféricos, como o sul-americano e também o africano.
Ainda no Velho Continente, podemos observar que a Liga dos Campeões é um fator de desequilíbrio. A Lei Bosman, o crescimento dos valores envolvidos nas vendas dos direitos de transmissão e o medo da UEFA de perder o monopólio sobre a principal competição interclubes europeia contribuíram para isso. Em 2000, reagindo à ameaça de criação de uma Superliga Europeia, que reuniria os clubes mais ricos do continente, a UEFA ampliou a Liga dos Campeões de 24 para 32 clubes e dando mais vagas aos países do centro.
A participação na principal competição de clubes da Europa gera um efeito cascata. Primeiro porque, devido ao critério da “quota de mercado”, os clubes dos mercados mais ricos recebem um percentual proporcional maior nesta parcela da distribuição. Segundo pela ampliação do fosso em cada país. Normalmente, os mesmos clubes estão sempre na competição, acumulando capital e se distanciando financeiramente dos seus concorrentes internos. Na Inglaterra, por exemplo, país que tem a distribuição de “cotas de TV” nacionais mais equânime no continente, há praticamente seis clubes que se revezam nas quatro vagas e, portanto têm esse acúmulo de capital.
Este é um fator ainda mais evidente em países semiperiféricos, como Portugal, que tem sempre FC Porto e Benfica na Liga dos Campeões (nos últimos 15 anos, o Porto foi campeão português nove vezes e o Benfica seis). No artigo “Competition format, championship uncertainty and stadium attendance in European football – a small league perspective” (2015), Tim Pawlowski e Georgios Nalbantis demonstram como Red Bull Salzburg (Áustria) e FC Basel (Suíça) se beneficiam deste ciclo vicioso. Entre 2008 e 2013, o faturamento do Salzburg representou 39% de todo o faturamento da Bundesliga Austríaca, proporção ainda maior do Basel em relação à Super Liga Suíça: 46% do total. Pawlowski e Nalbantis mostram como as frequentes participações destes dois clubes na Liga dos Campeões e na Liga Europa contribuíram para essa concentração financeira. Salzburg e Basel conquistaram oito dos últimos 10 campeonatos de seus países.
A mais recente mudança da UEFA, novamente reagindo contra a ameaça de uma ruptura por parte dos clubes mais ricos, apresenta a tendência de aumentar ainda mais a desigualdade no Velho Continente. Primeiro porque assegura quatro vagas na fase de grupos da competição aos clubes dos quatro países mais bem ranqueados na UEFA, que, neste momento são: Espanha, Inglaterra, Itália e Alemanha (ou seja, os países do “centro”). Segundo porque a partir da próxima temporada vai haver um aumento substancial na distribuição das receitas.
Portanto, ao mesmo tempo em que a concentração dos recursos se deu na Europa, ampliando o abismo do centro do futebol mundial em relação à periferia (resto do mundo), tal fenômeno também ocorreu dentro do Velho Continente, entre seu centro e sua periferia (Giulianotti, 2010, p. 139). E é por isso que vai ser cada vez mais difícil um clube da semiperiferia europeia conquistar a Liga dos Campeões. Vale lembrar que o Porto campeão europeu em 2004 foi, até hoje, o único clube fora dos quatro países centrais a ter ganho a Liga dos Campeões pós-Lei Bosman.
Concentração de riquezas e desigualdade no Brasil
Não é apenas na Europa que a desigualdade da distribuição dos recursos dos direitos de transmissão televisiva gera a concentração de poder econômico nas mãos de um restrito rol de clubes. A nível nacional, a discrepância se verifica na medida em que, como disse Giulianotti (2010), há uma tendência de concentração de riquezas entre os maiores clubes. Gerando, por exemplo, o fenômeno do “apartheid futebolístico” (Leite Junior, 2015, p. 60) no Brasil, reprodução no futebol do “apartheid social, o fosso intransponível que separa incluídos dos excluídos” (Leite Junior, 2015, p. 61), reflexo da relação centro-periferia que, no caso brasileiro, caracteriza-se pelas desigualdades sociais e regionais.
A concentração do poder econômico do futebol brasileiro faz com que as regiões periféricas sigam sendo fornecedoras de matérias-primas para os clubes das regiões do centro e, em muitos locais, seu povo não tem outra alternativa a não ser consumidor do produto final – os campeonatos estaduais de Rio de Janeiro e São Paulo (massificadas pela alta exposição midiática), além do ciclo ininterrupto da popularização dos grandes clubes daqueles estados, nas regiões periféricas.
A concentração do poder econômico no futebol nacional se encontra no centro do poder financeiro do país – eixo Rio-São Paulo majoritariamente, mas também alargado às regiões Sul/Sudeste.
Algo que se verifica facilmente quando se observa o que aconteceu após o rompimento do Clube dos Treze, que até 2011 era o responsável pelas negociações dos direitos de transmissão (embora adotasse um modelo de distribuição injusto, uma vez que priorizava os seus membros, gerando uma desigualdade entre ‘incluídos’ e ‘excluídos’). Se em 2011 a diferença entre Flamengo e Corinthians era de 4,2:1 em relação aos clubes que menos recebiam, nos contratos de 2012 a 2015 passou a ser de 6,1:1 (R$ 110 milhões x R$ 18 milhões), ao passo que no Campeonato Brasileiro 2018 foi de 7,3:1 (R$ 170 milhões contra os cerca de R$ 23 milhões que recebem América-MG, Ceará e Paraná).
Não é por acaso, portanto, que no Brasil o que resta aos clubes “excluídos” é a luta pela permanência na elite do futebol nacional como se fosse a conquista de um título.
Por Emanuel Leite Jr., Jornalista, doutorando em Políticas Públicas (Universidade de Aveiro), autor dos livros “Cotas de televisão do Campeonato Brasileiro” e “A história do futebol na União Soviética” | Texto em português do Brasil
Exclusivo Editorial PV / Tornado
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