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Trumpestade em Bruxelas

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

A generalidade do “populismo” ocidental – incluindo o de Donald Trump – associa a globalização em que vivemos a uma elite separada da realidade, e pensa que o remédio está em voltar a um mítico realismo em que cada um cuida de si.Tirando a “manteiga de amendoim”, ou seja, a minimização da importância do plano Marshall, há alguma verdade no que se diz na Europa, havendo naturalmente espaço para se encontrarem equilíbrios.

  1. Em discurso directo

Uma vasta plêiade de comentaristas que foram até hoje tidos como porta-vozes do establishment pró-Atlântico (veja-se a capa do Economist de 07/07) vinha há já várias semanas a assinalar com imensa preocupação a cimeira de Julho em Bruxelas da “Organização do Atlântico Norte”, pelos riscos de esta levar ao fim das relações transatlânticas tais como as conhecemos até hoje.

A cimeira começou com um pequeno-almoço do presidente norte-americano com o secretário-geral da organização, em que através das imagens difundidas pela comunicação social pudemos ver um dos mais contundentes mas certeiros comentários a que eu já assisti na vida:

… tenho a dizer que acho muito triste quando a Alemanha faz um enorme negócio de petróleo e gás com a Rússia, quando era suposto que estivesse a conter a Rússia, e a Alemanha fica a pagar todos os anos muitos biliões de dólares à Rússia, e portanto nós estamos a proteger a Alemanha, nós estamos a proteger a França, nós estamos a proteger todos estes países, e vários entre eles resolvem fazer um gasoduto com a Rússia (…)

… E eu penso que isto é muito inapropriado, que um antigo chanceler da Alemanha seja o presidente da companhia do gasoduto que fornece o gás, e que fará com que a Alemanha venha a depender em 70% do gás natural russo. Por isso diga-me, acha isto aceitável? Eu tenho protestado contra isto desde que entrei em funções e acho que isto nunca deveria ter sido permitido, porque a Alemanha fica completamente sob controlo russo. Acho que temos de falar à Alemanha disto.

… Ainda por cima, a Alemanha paga um pouco mais de 1%, enquanto os EUA pagam 4.2% de um PIB muito maior. Também acho isto inaceitável!”

Estamos naturalmente perante uma lógica de discurso directo despido de eufemismos e circunvalações a que a as elites político-burocráticas não estavam de forma alguma habituadas, mas que exprime de forma clara o que pensam muitos norte-americanos e europeus da situação em que hoje vivemos.

Como é costume, não faltaram as críticas ao vocabulário curto e aos pontapés na sintaxe e na gramática do presidente norte-americano, acima de tudo porque não foi possível às nossas elites rebater a essência das palavras de Trump.

A oposição a Trump investiu todo o seu capital na acusação do conluio de Trump com Putin e fica por isso desarmada quando este põe a nu o conluio dessa mesma oposição com a Rússia.

Trump Slams Germany-Russia Gas Deals at NATO Summit

“I think it’s very sad when Germany makes a massive oil and gas deal with Russia, where you’re supposed to be guarding against Russia.”

Publicado por RFE/RL em Quarta-feira, 11 de Julho de 2018

  1. O agudizar da crise

A reconstrução da Europa pelo plano Marshall e pelas instituições europeias que dele surgiram, o sistema político e de defesa que permitiu essa reconstrução, realidades que estão quase a assinalar sete décadas, estão em tensão crescente há muitos anos.

Se, no início, a parte norte americana compreendeu plenamente o esforço feito, com o passar do tempo foi cada vez menos entendendo que o esforço de defesa e as principais responsabilidades de manutenção do sistema ficassem a cargo dos EUA, enquanto a Europa aproveitava as condições para gerir uma política diplomática e comercial apenas orientada pelos seus interesses.

Do lado europeu, houve sempre a tendência para minimizar o significado do esforço americano; porque o plano Marshall desenvolvia produção americana e habituava os europeus à ‘manteiga de amendoim’, porque o complexo militar-industrial assegurava o crescimento económico americano; porque a consagração do dólar como moeda internacional traz grandes vantagens ao seu emissor; porque talvez os vizinhos russos não fossem assim tão maus; etc.

Tirando a “manteiga de amendoim”, ou seja, a minimização da importância do plano Marshall, há alguma verdade no que se diz na Europa, havendo naturalmente espaço para se encontrarem equilíbrios.

A queda da cortina de ferro veio encorajar os que pensam que o sistema transatlântico económico e de segurança deixou de fazer sentido, se não se desse o caso de com Putin, a Rússia ter voltado à sua vocação imperial, de o Jihadismo querer acabar com tudo o que o Ocidente representa e de, finalmente, a China se ter tornado num colosso mundial a que só é possível de responder no quadro transatlântico.

A emergência da Alemanha reunificada como centro incontestado da “Nova Europa” colocou no entanto novos desafios que exacerbaram as divergências que vinham do passado. Tornando-se a principal herdeira do ‘consenso de Washington’ dos anos setenta, a doutrina alemã do “ordoliberalismo” recuperou o mercantilismo europeu do século XVIII.

Nada ilustrou melhor esse facto que a crise ucraniana provocada por uma iniciativa comercial europeia de inspiração alemã que oferecia aos ucranianos um acesso praticamente livre ao mercado europeu.

Para a Rússia, tratava-se de uma provocação, de uma disputa a um território que ela considerava estar no seu espaço de influência e, claro, quando os ucranianos se revoltaram contra o diktat de Putin, ele nada mais viu do que uma conspiração ocidental, e reagiu em consequência.

A Alemanha (e aliás as instituições europeias e transatlânticas) não percebeu nada do que deveria ser óbvio e ficou totalmente surpreendida com a reacção russa. Pior, apesar de ter aceite algumas sanções, não pôs em causa negócios como os petrolíferos para sustentar a sua defesa.

Tal como Donald Trump diz, a única coisa que impede o avanço russo são as muitas divisões americanas estacionadas na Europa (na Alemanha, na Polónia e no Báltico), sendo inaceitável que a Alemanha faça negócios com o adversário e mantenha as suas forças armadas em estado de quase inoperacionalidade.

  1. O que está em jogo?

A generalidade do “populismo” ocidental – incluindo o de Donald Trump – associa a globalização em que vivemos a uma elite separada da realidade, e pensa que o remédio está em voltar a um mítico realismo em que cada um cuida de si.

Nesta perspectiva, não se trata de reequilibrar a aliança atlântica, ou de reformar a união europeia, mas acabar com ambas. Nada poderá satisfazer mais todos os inimigos do Ocidente e dos seus valores e revelar-se mais destrutivo para todos nós, incluindo os EUA, do que a materialização desta perspectiva.

Quem por outro lado pretende defender o “status quo” a todo o custo, organizações europeias e transatlânticas não reformadas, está a laborar num erro de consequências equivalentes, porque a deriva das nossas instituições as torna incapazes de responder aos desafios que temos perante nós.

Penso por isso que estamos a andar no fio da navalha, e que precisamos de quem seja capaz de nos dirigir para reformas profundas sem perder de vista a razão de ser dos valores e princípios que nos devem unir. Precisamos por isso de aproveitar esta “trumpestade” para repensar profundamente as instituições que nos governam.

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