Limitar o direito à autodeterminação de quem quer que seja (…) não me parece acertado, mas não me passou pela cabeça por essa razão apelidar a Espanha, que faz precisamente o mesmo, ou a União Europeia que subscreveu integralmente o princípio, como “racistas”, ou menos ainda falar a esse propósito em “ditadura branca”.Estamos perante um fenómeno cumulativo complexo em que a comunicação social e as instituições internacionais fazem um quadro fantasioso da realidade para tudo ou quase tudo – excepto Israel – e os cidadãos reproduzem o quadro que lhe é dado e exigem mais ainda.
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Os pretextos
Como a definição internacionalmente aceite de antissemitismo acentua, o ataque sistemático e desproporcionado ao Estado de Israel é a forma mais vulgar assumida contemporaneamente pelo antissemitismo.
Não creio que no mundo em que vivemos haja países, nações ou culturas isentas de mácula, mas quando vemos uma vaga (que compreende desde supostos especialistas em relações internacionais até ao mais vulgar dos cidadãos) multiplicar declarações de ataque desbragado ao que quer que se passe em Israel acompanhado de silêncio sobre o que se passa algures, é para mim claro que estamos perante um movimento de antissemitismo.
E a questão não é necessariamente a ignorância histórica ou presente, ou conspiracionismos mais ou menos primários – embora estes se encontrem com abundância – é um movimento de puro fanatismo ideológico originado por quem não raras vezes nunca viu um judeu na vida, não faz ideia do que seja o Médio Oriente, mas acredita piamente em tudo o de negativo que se lhe diz sobre os judeus e manifesta completa indiferença por tudo o que não sirva para embelezar os seus preconceitos.
Estamos perante um fenómeno cumulativo complexo em que a comunicação social e as instituições internacionais fazem um quadro fantasioso da realidade para tudo ou quase tudo – excepto Israel – e os cidadãos reproduzem o quadro que lhe é dado e exigem mais ainda.
A questão não é apenas portuguesa, e faz-se sentir com uma intensidade semelhante em toda a nossa região europeia, com a multiplicação de adesões ao movimento de “boicote, desinvestimento e sanções” a Israel espalhados um pouco por todo o lado, como se porventura a situação de Israel fosse comparável à de países como a Venezuela, a Coreia do Norte, o Irão ou a Síria sobre os quais não há de resto a registar qualquer movimento equiparável.
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Os textos
O último episódio surgiu a propósito da lei “Israel, nação do povo judaico”, lei votada pelo parlamento às três horas da manhã do dia 19 por uma escassa maioria (62 votos a favor, 55 contra e 2 abstenções), num contexto marcado pela possibilidade de eleições antecipadas.
As tremendas paixões provocadas pela lei, com incontáveis judeus dentro e fora de Israel a opinar sobre ela, deveriam ter sido o primeiro e inequívoco sinal de que a lei surgiu numa democracia plena em que, talvez, o principal problema seja a de necessidade de mais força para os contrapoderes (leis com valor para-constitucional aprovadas por maiorias de dois terços, mecanismos de fiscalização por senados, presidentes ou tribunais constitucionais).
Depois temos a crítica à noção de uma nação judaica. Aqui, torna-se necessário ter em conta que é isso o que já era afirmado na resolução das Nações Unidas de 1947, ao abrigo da qual se formou o Estado de Israel, e na subsequente declaração de independência de 1948. Nem uma nem outra são anuladas pela presente lei.
Em qualquer circunstância, por que razão haverá tanta indignação com a existência de uma “nação judaica” e ninguém questiona a Constituição da generalidade dos mais recentes países europeus – como os bálticos – que se classificam o Estado com o povo específico báltico, não fazendo referência aos direitos das grandes minorias que aí habitam?
Limitar o direito à autodeterminação de quem quer que seja – como se faz na lei em apreço – não me parece acertado, mas não me passou pela cabeça por essa razão apelidar a Espanha, que faz precisamente o mesmo, ou a União Europeia que subscreveu integralmente o princípio, como “racistas”, ou menos ainda falar a esse propósito em “ditadura branca”.
Dizer como faz Pacheco Pereira que existe uma “ditadura branca” porque implicitamente um judeu é necessariamente mais branco que um árabe é o mesmo que dizer que um catalão é mais branco do que um castelhano, ou seja, é um disparate.
Resumindo, em Israel, o parlamento aprova leis controversas, é influenciado pelo calendário eleitoral, realizam-se jogos partidários complexos de alianças. Por outras palavras: Israel é uma democracia, na verdade a única que existe na região, e para quem queira ver sem antrolhos, uma democracia mais pujante que muitas outras do nosso mundo.
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Os contextos
Tenho portanto para mim que o texto é um pretexto para ignorarmos o contexto. No já citado texto de Pacheco Pereira, como acontece na generalidade com todos os textos antissemitas, o autor diz que até começou por ver Israel com simpatia: (na mesma lógica da conhecida frase que começa por dizer “eu não sou racista, mas…”) “no tempo da fundação do Estado de Israel, o seu primeiro amigo, a URSS, e o Avante! eram pró-israelitas.”
É útil recordar esta frase de Pacheco Pereira, autoridade nacional em matéria de comunismo, apenas para o relembrar à enorme plêiade de comunistas ou seus companheiros de caminho que não hesitam hoje em usar precisamente os mesmos argumentos utilizados por Hitler para acabar com os judeus e o seu Estado, nomeadamente na vertente da segunda guerra mundial encabeçada pelos seus aliados na região (o mufti da Palestina e os nascentes nacionalismos árabes).
O contexto hoje é naturalmente diverso, embora seja um facto que o Jihadismo contemporâneo (fundado no contexto da “rede da irmandade muçulmana” no início do século passado, mas alargado a várias famílias islâmicas, nomeadamente a do clero xiita iraniano, de longe a mais importante hoje) herdou a maior parte das características que tipificaram o antissemitismo dos Nazis, nomeadamente o de que “os judeus são o maior problema do planeta”.
Scott Anderson na sua biografia do “Lawrence da Arábia” dá-nos um magistral retrato da lógica diplomática das potências em confronto na Arábia do princípio do século, mostrando-nos que nenhuma desdenhou a utilização do antissemitismo para ganhar pontos diplomáticos entre muçulmanos, e por uma razão muito simples que é hoje tão ou mais válida do que era então: é a posição que rende mais!
Para quem quiser olhar para a região e para o mundo de uma forma diferente, baseada em princípios e valores, há que colocar as questões em contextos radicalmente diferentes, começando por entender que hoje, tal como nos anos 30, os judeus continuam a fazer as vezes dos canários no fundo das minas: aqueles que ao ser diabolizados dão o sinal de perigo para todos nós.
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