A canção Besame Mucho é uma das mais lindas e densas de toda a história da música popular. Sua autora é Consuelo Velasquez, pianista mexicana nascida em 1916 e morta em 2005. Velasquez compôs Besame Mucho aos 15 anos de idade.
O linguista e editor do 247 Gustavo Conde faz uma análise detalhada da canção Besame Mucho, composta pela pianista mexicana Consuelo Velasquez há 87 anos. Conde destaca a força semiótica da letra, que gerencia o universo espacial e temporal da paixão romântica de maneira a produzir uma peça passional singular, que delimita com raro poder o regime de acelerações afetivas do desejo.
Leia o artigo de Conde, publicado originalmente em colaboração especial para o jornal GGN:
Os sentidos da canção Besame Mucho, de Consuelo Velasquez
A canção Besame Mucho é uma das mais lindas e densas de toda a história da música popular. Sua autora é Consuelo Velasquez, pianista mexicana nascida em 1916 e morta em 2005. Velasquez compôs Besame Mucho aos 15 anos de idade. O primeiro a gravar a canção foi Emílio Tuero, em 1940. Trata-se de uma das canções mais gravadas do mundo. Os Beatles chegaram a gravá-la, na célebre audição fracassada para a Decca Records, em 1962.
A versão esplendorosa de Diana Krall voltou a me rondar e me deixou paralisado. É de 2001 e eu já a conhecia – quase que ignorando-a. Uma estrofe em especial, no entanto, devastou meu senso.
A rigor, toda a letra da canção é de uma perfeição semiótica raramente observável. Ela poderia ser facilmente uma canção ‘fundadora’, inclusive da própria teoria semiótica tensiva, idealizada pelo semiólogo francês Claude Zilberberg e ‘lapidada’ em solo brasileiro por nosso genial linguista Luiz Tatit.
A canção se inicia mobilizando o gesto do amor por excelência, o beijo. Mais que isso, ela ‘embrea’ o gesto, tomando para si sua forma verbal. Mais ainda do que isso: a letra condensa, com o auxílio morfossintático favorável da língua espanhola, o pronome reflexivo ‘me’ ao verbo passional ‘beijar’.
Uma só palavra, uma só direção semântica: o ato de ‘beijar-me’ ao infinito cíclico fica impregnado na ‘retina mental’ de tal maneira que a experiência auditiva da canção invade o sujeito e lhe assalta os sentidos sem espaço para qualquer tipo de fuga metafórica.
A jovem Consuelo Velasquez – apenas uma adolescente ao redigir tal ‘peça’, destaque-se – realmente não estava para brincadeira. Numa fração silábica, ela encaixa o advérbio ‘muito’ à palavra-mote e adensa a situação já ‘vulnerável’ do ouvinte passionalizado: besame mucho.
É devastador e ao mesmo tempo delicado, porque o beijo não é o clímax da conjunção amorosa. O beijo é um gesto intermediário, transitório, de passagem. Ele não representa um fim em si, ainda que possa sê-lo em certos contextos.
O beijo faz parte da iconografia metafórica da civilização. O quadro de Klimt (O Beijo, de 1908), caracteriza bem essa percepção: ali, o beijo ‘protege’. O signo-homem toma o rosto da mulher com seu pescoço fálico e ambos são envolvidos no tecido dicotômico-entrelaçado proposto pelo pintor (linhas retas no eixo masculino e círculos generosos e labirínticos no eixo feminino).
O beijo porta uma pletora de sensações que vai desde o desejo encarnado até o ‘deixar-se tomar em seus braços’ que habita a psicologia social do feminino. É um ‘click’, é um momento que leva a outro e que deriva de outro.
É rito de passagem, a travessia do desejo, um misto de delicadeza e brutalidade, a intersecção da passagem ao ato e suas hesitações, enfim, a faísca que sinaliza o princípio e um fim ao mesmo tempo, do ponto de vista de seus sentidos consagrados pela história.
De sorte que o eu cancional de Besame Mucho, mais do que um eu feminino, é um eu extremamente complexo que propõe um mergulho profundo no âmago dos sentidos fundadores de um dos gestos mais limítrofes da história do amor e dos sujeitos.
Um beijo não é só um beijo, é um portador de uma mensagem, é um elemento semióforo, como gostaria de chamá-lo o historiador italiano Carlo Ginzburg.
O beijo de um Judas delator, por exemplo, revela essa face transcendental do beijo enquanto portador de sentidos que lhe transcendem, sem deixar de ser sempre um ‘beijo’, consagrado que está no vocabulário e no imaginário.
O eu de Velasquez, projeta, de início, essa ambiguidade: a delicadeza do gesto que tem sua duração gerenciada por contextos pragmáticos: o beijo pode ser um estalo ou um eterno e infinito roçar lábio-passional.
A canção irrompe nesse território das durações: “besame mucho, como si fuera esta noche la última vez”. O eu clama por uma duração, diante da ameaça da finitude do próprio tempo. O desdobramento poético desta jovem e genial Consuelo Velasquez ainda é mais sofisticado: esta ‘última vez’ não é literal, é um delírio e uma fantasia daquela (ou daquele) que beija e quer beijar sem parar.
A beleza desta estrutura semiótico-tensiva é qualquer coisa de imensa. O sentido de beijo toma conta do gesto inicial da canção e mobiliza toda a chave interpretativa subsequente, instaurando uma topografia de sentidos pouco comum e furiosamente passional – e, paradoxalmente, delicada e sutil.
É o regime das durações, em entrelaçamentos de sentido e de melodia.
O complemento desta primeira estrofe não poderia ser mais contundente e espontâneo, do ponto de vista dos sentidos que se desdobram naturalmente no tecido subjetivo de um enunciador tomado de paixão e, é claro, com ‘uma ideia na cabeça’: “besame mucho, que tengo miedo perderte, perderte después”.
O medo de perder o ser amado faz com que o eu cancional não abra mão da duração do beijo imaginário e delirante – e concreto – que constrói no tempo durativo-infinito da canção.
O ‘después’ é a marca precisa do gerenciamento das timias passionais em jogo. Existe um ‘depois’, mas o eu quer retardar ao máximo sua emergência, numa luta agônica contra o tempo que, no entanto, faz perdurar todas as sensações envolvidas na ‘ação paralisante’ – sic – de narrar a suspensão do tempo e o próprio desejo por sua duração.
A perda está, evidente e fatalmente, materializada lexicalmente, o que é muito raro em se tratando de canção popular (‘tengo miedo perderte’). Besame Mucho é uma canção quase ‘icônica’ nesse sentido: ela postula toda a mitologia do amor e do desejo subjetivo de maneira organizada e conceitual.
O mais impressionante, porém, está na segunda estrofe. O eu cancional sugere um desdobramento espacial, “quiero tenerte muy cerca” (quero te ter ao meu lado) e algo absolutamente devastador, que define todo o regime semiótico-tensivo da canção: “mirame em tus ojos” (olhar-me em teus olhos).
O eu quer ‘se ver’ nos olhos do ser amado, quer o reflexo de sua própria imagem na ‘íris espelhada’ que habita o singelo globo ocular que transita a sua frente, uma vez que os lábios se tocam. Há investimento libidinal-narcísico mais poderoso do que isso?
Arrebata. E é belíssimo. Tratar o sentido assim é amar o próprio sentido. Ao querer se ver no reflexo dos olhos do outro, o eu mergulha nesse outro, de forma a tornar-se parte dele, numa conjunção sígnica-visual avassaladora.
O beijo de ‘olhos abertos’ também ‘estala’ na canção. A apreensão com a finitude do momento é tal, que é preciso mobilizar mais um sentido (a visão), para garantir a duração do gesto. A visão produz o sentido muito preciso de ‘agarrar’ o outro, através da projeção reflexiva dos eus em conjunção-disjunção.
Tato (o toque dos lábios), visão (as projeções mútuas no olhar), gustação (o beijo como a possibilidade do ‘gosto’ em alteridade) e audição (a própria canção-apelo). Quatro sentidos que perfazem o jogo sinestésico proposto pelo conjunto letra-melodia em rara simetria com as modalizações linguístico-poéticas.
A letra se consome como uma chama intensa: o eu insta o ser amado a ‘pensar’ (‘piensa que talvez mañana yo ya estaré lejos, muy lejos de ti’) e triangula o gerenciamento do tempo com a projeção de uma espacialidade: amanhã, ele/ela estará longe de ‘ti’. Portanto, besame mucho.
Poucas vezes, a canção popular esteve em um universo cancional tão delicado e repleto de nuances. A análise aqui arrolada é breve e superficial. O mundo de ‘Besame Mucho’ é ‘mucho’ maior do que isso. É um mundo infinito. É um mundo que dura. É um mundo que nos habita os corações e sentidos desde o momento singular em que essa adolescente mexicana chamada Consuelo Velasquez resolveu assombrar a tudo e a todos com sua impressionante declaração de amor ao beijo, ao sentido, ao tempo e ao ser amado.
Por Gustavo Conde, Linguista e editor do 247 | Texto em português do Brasil
Exclusivo Editorial Brasil247 (GGN) / Tornado
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