Cada vez me sinto mais dissociado desta tendência da humanidade em reagir como cardume de piranhas ao sentir a presença de sangue na água, e essa tendência faz-se sentir em todas as latitudes, com a opinião pública a devorar qualquer figura pública apanhada em falso com um frenesim que só me faz lembrar essa espécie.
Para animar o noticiário de um Verão em que a vaga de calor e os consequentes incêndios rumaram para outras paragens, surgiu assim a história dos negócios imobiliários do vereador lisboeta do Bloco de Esquerda, que nada tem de actual mas que tem tudo de picante. Aparentemente, tudo ou quase tudo foi dito sobre o assunto, e no entanto, creio que tudo o que é essencial ficou por dizer, e é por isso que volto ao tema.
A primeira nota é no plano partidário. Acho que pessoalmente ficou muito bem à líder bloquista a defesa cerrada que fez do seu colega de partido, com um toque de solidariedade partidária que já não se via há muito tempo, embora não seja menos verdade que – do ponto de vista do partido – a sua atitude foi indefensável e suicidária. O episódio no entanto evidencia o disfuncionamento do sistema partidário nacional em que se vota apenas em siglas e não em pessoas.
A segunda nota é a de que na dissociação total entre a prática e o discurso do vereador, toda a gente trucidou a sua prática e poupou o discurso, e estou em crer que o mais aberrante não foi a prática mas o discurso que ataca todo o investimento imobiliário e o turismo como se estes fossem a doença do país em vez de serem a sua boia de salvação.
O problema não é o então deputado municipal ter comprado barato, é o Estado – e note-se que a segurança social era então gerida pela coligação de direita – ter desbaratado o seu património a preços de saldo. Como é possível que ninguém no Governo tenha entendido que o seu papel é vender o imobiliário quando o seu preço aquece e não quando arrefece, tanto como forma de regular o mercado como por forma a defender o interesse público?
E porque razão o leilão não foi divulgado internacionalmente? O discurso patrioteiro quer apenas dizer que os pobres (que dependem da segurança social) pagam as oportunidades para as fortunas dos ricos. Esse discurso é profundamente reacionário, e faz parte da deriva global da nossa extrema-esquerda para a extrema-direita.
Dir-se-á ainda, por que razão não exerceu a Câmara Municipal de Lisboa o seu direito de opção de compra? Na teoria, acho muito bem que a edilidade intervenha, reservando socialmente parte da habitação a recuperar, mas basta lembrar-nos do total clientelismo com que o município gere o seu parque habitacional, para dizer que nas condições presentes isso iria apenas agravar ainda mais as injustiças sociais.
A terceira nota é a de que esse discurso demagógico e reaccionário contra o investimento, a modernização e o turismo do “Bloco de Esquerda” foi copiado pela quase totalidade do espectro político. Atente-se aliás aos termos burlescos do comunicado público do PSD que exige a demissão do vereador pelo crime de especulação imobiliária e não pelo que faria sentido, pela falta de sustentação prática do seu discurso.
Reduzir este episódio ao trucidar do Bloco de Esquerda apenas poderá contribuir para que tudo continue na mesma, com a mesma hipocrisia, a mesma cedência demagógica aos argumentos primários e o mesmo clientelismo que são iguais em todos os partidos.
A quarta nota é para o que significa a “especulação imobiliária”. Quem tenha lidado com a literatura do princípio do século XX terá certamente reparado que a generalidade do investimento em novas actividades, nomeadamente industriais, era apelidado de “especulativo”, e hoje regressámos quase ao mesmo.
Em geral, o investimento é feito com base em especulação, ou seja, com base na hipótese de o mercado responder às expectativas dos investidores. Isso só não é assim em contratos ruinosos para o erário público como os feitos sob a sigla de PPP em que o investidor fica com os lucros garantidos pelo Estado e este com os riscos e as dívidas.
O problema da especulação imobiliária lisboeta é outro, que não o de especular no comportamento do mercado. É o de o investidor partir do princípio que o mercado sobe sempre e, como um inquilino é sempre uma maçada, manter um prédio velho e inabitável no centro da cidade é um bom investimento.
A quinta nota é relativa ao comportamento exorbitante do mercado imobiliário da capital. Creio que devemos encarar o problema em duas vertentes distintas:
- A primeira é a da gestão da conjuntura que neste particular deveria ser feita pelo Banco de Portugal. Todos sabemos que uma das principais razões para a violência da crise de 2008 foi a febre imobiliária portuguesa. Menos entendido é o facto de isso ter sido particularmente mais grave em Portugal do que noutros países por ter sido alimentado por créditos internacionais concedidos à banca portuguesa que serviram simultaneamente para cobrir o défice das contas externas. Por outras palavras, o défice externo português é a outra face da febre imobiliária. Sabendo-se isso, sabendo-se que a única forma que na UEM temos de combater essas derivas é através da acção do banco central, é absolutamente incompreensível que este tenha voltado a deixar que voltássemos ao mesmo sem nada fazer, ou melhor, limitando-se a fazer umas hipócritas e ridículas pregações morais “contra o crédito imobiliário excessivo” depois do tempo e sem as acompanhar de medidas.
- A segunda vertente é a de existir uma procura real e estrutural de habitação na capital. É incompreensível que não existam programas públicos de recuperação e de construção de novas habitações – e o espaço existe em Lisboa – como forma de responder à procura. É claro que parte dessa habitação pode e deve ter fins sociais se assegurarmos a instituição de mecanismos de transparência e de rigor.
São cinco lições essenciais que creio que seria mais útil tirar do que alimentarmos o mórbido hábito de malhar em quem está caído no chão.
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