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Segunda-feira, Dezembro 23, 2024

A incerteza da guerra

Arnaldo Xarim
Arnaldo Xarim
Economista

Um recente artigo de opinião de Joseph Stiglitz (The US is at Risk of Losing a Trade War with China) no sítio do PROJECT SYNDICATE justifica o regresso ao tema da guerra comercial entre os EUA e a China, especialmente depois da reunião entre Trump e Juncker onde afastaram cenário de guerra comercial – valha isso o que valer com o imprevisível Trump –, e quando se sucedem análises e opiniões que vão esmiuçando cada vez mais os contornos daquele conflito.

Comecemos por ver o que escreveu Stiglitz, laureado com o Nobel da economia em 2001, numa tradução da minha exclusiva responsabilidade:

Os EUA estão em risco de perder uma guerra comercial com a China

O que inicialmente foi uma escaramuça comercial – com o presidente dos EUA, Donald Trump, a impor tarifas sobre o aço e o alumínio – parece estar a transformar-se rapidamente numa guerra comercial em larga escala com a China. Se a trégua acordada entre a Europa e os EUA for válida, estes estarão a lutar principalmente com a China, e não com o mundo (claro, o conflito comercial com o Canadá e o México continuará em ebulição, dadas as exigências dos EUA que nenhum país pode ou deve aceitar).

Além da afirmação verdadeira, mas até agora banal, de que todos vão perder, que mais podemos dizer sobre os possíveis resultados da guerra comercial de Trump? Primeiro, a macroeconomia prevalecerá sempre: se o investimento interno dos Estados Unidos continuar a exceder as suas poupanças, terá que importar capital e ter um grande déficit comercial. Pior, por causa dos cortes de impostos promulgados no final do ano passado, o déficit fiscal dos EUA está a atingir novos recordes – recentemente projectados para ultrapassar um bilião de dólares até 2020 – o que significa que o déficit comercial quase certamente aumentará, independentemente do resultado da guerra comercial. A única maneira de isso não acontecer é se Trump levar os EUA para uma recessão, com os rendimentos a caírem de forma a levarem o investimento e as importações a cair.

O “melhor” resultado da concentração do presidente Donald Trump no déficit comercial dos EUA com a China seria uma melhoria no equilíbrio bilateral, acompanhado por um aumento de um montante igual no déficit com algum outro país (ou países). Os EUA podem vender mais gás natural à China e comprar menos máquinas de lavar; mas venderá menos gás natural a outros países e comprará máquinas de lavar roupa ou algo mais da Tailândia ou de outro país que tenha evitado a irascível ira de Trump. Mas, como os EUA interferiram no mercado, ele irá pagar mais pelas suas importações e receber menos pelas suas exportações do que teria sido o caso. Em suma, o melhor resultado significa que os EUA estarão em pior situação do que hoje.

Os EUA têm um problema, mas não é com a China. Está em casa: a América tem poupado muito pouco. Trump, como muitos de seus compatriotas, é extremamente míope. Se tivesse um conhecimento profundo de economia e uma visão de longo prazo, teria feito o possível para aumentar a poupança nacional. Isso reduziria o déficit comercial multilateral.

Há soluções rápidas óbvias: a China poderia comprar mais petróleo americano e depois vendê-lo a outros. Isso não faria grnade diferença, além de talvez um pequeno aumento nos custos de transacção. Mas Trump poderia alardear que eliminou o déficit comercial bilateral.

De facto, reduzir drasticamente o déficit comercial bilateral de forma significativa será difícil. À medida que a procura por bens chineses diminui, a taxa de câmbio do yuan enfraquecerá – mesmo sem qualquer intervenção do governo. Isso compensará em parte o efeito das tarifas dos EUA; ao mesmo tempo, aumentará a competitividade da China com outros países – e isso será verdade mesmo se a China não usar outros instrumentos à sua disposição, como controles de salários e preços, ou forçar significativos aumentos de produtividade. O déficit comercial global da China, como o dos EUA, é determinado pela sua macroeconomia.

Se a China intervier mais activamente e retaliar mais agressivamente, a mudança na balança comercial EUA-China poderá ser ainda menor. O sofrimento que cada um infligirá ao outro é difícil de determinar. A China tem maior controle da sua economia e quer mudar para um modelo de crescimento baseado na procura interna, em vez de investimento e exportações. Os EUA estão apenas a ajudar a China a fazer o que já está a tentar fazer. Por outro lado, as acções dos EUA ocorrem num momento em que a China está a tentar administrar o excesso de alavancagem e o excesso de capacidade; pelo menos em alguns sectores, os EUA tornarão essas tarefas ainda mais difíceis.

Isso é claro: se o objectivo de Trump for impedir a China de adoptar a sua política “Made in China 2025” – adoptada em 2015 para ampliar sua meta de 40 anos de diminuir a diferença de rendimento entre a China e os países avançados – quase certamente fracassará. Pelo contrário, as acções de Trump apenas fortalecerão a determinação dos líderes chineses de impulsionar a inovação e alcançar a supremacia tecnológica, pois perceberão que não podem confiar nos outros e que os EUA são activamente hostis.

Se um país entrar em guerra, comercial ou outra, deve ter a certeza de que dispõe de bons generais – com objectivos claramente definidos, uma estratégia viável e apoio popular – no comando. É aqui que as diferenças entre a China e os EUA parecem maiores. Nenhum país poderia ter uma equipa económica mais desqualificada do que a de Trump, e a maioria dos americanos não apoia a guerra comercial.

O apoio público diminuirá ainda mais quando os americanos perceberem que perdem duplamente com essa guerra: os empregos desaparecerão não apenas por causa das medidas de retaliação da China, mas também porque as tarifas dos EUA aumentam o preço das suas exportações e as tornam menos competitivas; e os preços dos bens que eles compram subirão. Isso pode forçar a queda da taxa de câmbio do dólar, aumentando ainda mais a inflação nos EUA e gerando ainda mais oposição. É provável que o Fed aumente as taxas de juros, levando a investimento e crescimento mais fracos e mais desemprego.

Trump mostrou como responde quando as suas mentiras são expostas ou as suas políticas falham: ele recua. A China tem repetidamente oferecido maneiras de salvar o rosto de Trump para deixar o campo de batalha e declarar vitória. Mas ele recusa-se a aceitá-las. Talvez a esperança possa ser encontrada em três das suas outras características: o seu foco na aparência em detrimento da substância, a sua imprevisibilidade e o seu amor pela política do “grande homem”. Talvez numa cimeira com o presidente Xi Jinping, ele possa declarar o problema resolvido, com alguns pequenos ajustes de tarifas aqui e ali, e algum novo gesto de abertura de mercado que a China já havia planeado anunciar, e todos podem ir para casa felizes.

Neste cenário, Trump terá “resolvido”, imperfeitamente, um problema que ele próprio criou. Mas o mundo que se segue à sua insana guerra comercial ainda será diferente: mais incerto, menos confiante no império internacional da lei e com fronteiras mais duras. Trump mudou o mundo, permanentemente, para pior. Mesmo com o melhore resultado possível, o único vencedor é Trump – com o seu enorme ego ainda um pouco maior.»

…e entendamos que o professor da Universidade de Columbia partilha a ideia generalisada, pelo menos entre os que não defendem acerrimamente Donald Trump, que nada de verdadeiramente bom poderá resultar dum confronto apresentado como solução para um problema – o déficit comercial norte-americano – que nunca poderá resolver, porque, como explica Stiglitz, aquele déficit deve-se principalmente ao desequilíbrio da sua economia e em especial à fraca poupança.

O texto de Stiglitz é importante por aquilo que esclarece quando recorre aos argumentos próprios do funcionamento do moderno comércio internacional, mas deixa outros por referir, nomeadamente: o facto do déficit comercial norte-americano ser uma realidade transversal com os seus principais parceiros comerciais (como referi no artigo «A China e a renovação do capitalismo») e especialmente por a China dispor de um argumento de resposta da dimensão da sua posição de principal credor da dívida norte-americana (cerca de 2 biliões de dólares, aproximadamente 1/3 da dívida detida por estrangeiros), o que não só a transforma num oponente temível, como num quase certo vencedor em caso de conflito.

Talvez por ter como público-alvo os norte-americanos, Stiglitz omite qualquer referência à envolvente geo-estratégica dum conflito comercial entre americanos e chineses e à crescente fragilidade daquela que desde Bretton Woods tem sido a grande alavanca da predominância do império americano: o dólar. A manter-se este clima de desestabilização generalizada, criado pelas sucessivas medidas proteccionistas a par com as sanções económicas aplicadas à Rússia e ao Irão, as já conhecidas reacções chinesa e russa de venda acelerada de dívida norte-americana ou as novas modalidades de cotação dos hidrocarbonetos noutras divisas (euro e yen) que não o dólar (questões que abordei no artigo «A guerra para salvar o dólar»), são outras tantas brechas no sustentáculo da hegemonia norte-americana.

 

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