Quinzenal
Director

Independente
João de Sousa

Domingo, Dezembro 22, 2024

A Alemanha e o pesadelo nuclear

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

O debate sobre a pertinência de uma nuclearização alemã tem-se aprofundado nos últimos dois anos, com um considerável rol de comentadores alemães a avançar com a sua necessidade, a ponto de a questão se ter tornado uma das mais debatidas na imprensa internacional e muito em particular nas publicações especializadas em defesa.
Não houve nenhum outro país onde o movimento antinuclear tivesse sido tão forte como a Alemanha, e a Alemanha continua a ser hoje o mais importante país que decidiu deixar a energia nuclear, por decisão da chanceler em funções.

  1. Um inocente debate

Não creio que um debate racional que parta do significado formal das propostas enunciadas nos leve muito longe. Com efeito, os apologistas da nuclearização alemã são também os mesmos que mais categoricamente se têm oposto à pressão americana para aumentar o seu esforço de defesa convencional, como se as armas nucleares pudessem ser vistas como substitutas das armas convencionais.

Ora se há matéria onde existe há muito tempo consenso entre os especialistas de defesa é que isso não faz sentido, porque é ineficaz qualquer dispositivo de defesa que só funcione no patamar nuclear.

Não creio por isso que a nuclearização alemã possa ser lida tal como formalmente apresentada, ou seja, como uma consequência das ameaças americanas de retirar a garantia de defesa da Alemanha caso esta continue a recusar-se a aumentar o seu esforço de defesa.

Ela tem antes de ser lida como corolário do movimento favorável à ruptura transatlântica e, não menos importante do que isso, quebra com as amarras de dependência alemã em relação ao aparelho europeu de defesa, assente nas forças nucleares francesas e britânicas.

A afirmação nacional através de um programa nuclear não é, como sabemos, uma obsessão unicamente alemã mas, para além de factores históricos de todos conhecidos (e que têm ocupado um lugar cimeiro no debate da nuclearização alemã) há outros dois pontos igualmente importantes que conviria ter em conta: (1) o fim da utilização de energia nuclear no país e (2) o papel reforçado dado ao país no que foi apresentado como esforço de prevenção da proliferação nuclear.

  1. Energia nuclear, não obrigado

Não houve nenhum outro país onde o movimento antinuclear tivesse sido tão forte como a Alemanha, e a Alemanha continua a ser hoje o mais importante país que decidiu deixar a energia nuclear, por decisão da chanceler em funções.

E se há algo em que todos estamos de acordo é que, mais perigoso do que a energia nuclear são as armas nucleares, pelo que não pode deixar de ser considerado como paradoxal que o mesmo partido e os mesmos protagonistas que tomaram a decisão de abandonar a energia nuclear estejam agora a debater a possibilidade de nuclearizarem o seu armamento.

É certo que não vimos ainda nenhuma figura de proa dos Verdes alemães a defender a construção de uma bomba nuclear alemã, mas a sua passividade quando não mesmo o silêncio sobre o tema – não encontrámos qualquer referência à questão no programa do partido – não pode deixar de levantar as maiores interrogações, quando o que seria expectável seria o de assistirmos a uma intensa campanha do partido na matéria, à imagem do que este fez com a energia nuclear.

O que creio ser claro é que a Alemanha, país líder do movimento de desnuclearização energética, país em que se concentra grande parte do saber e das tecnologias relativas a energias alternativas, país que teria obviamente tudo a ganhar com a capitalização dessa imagem para conquistar mercados e ganhar posições – matéria que é uma obsessão na lógica mercantilista dominante no país – está disposta a mandar tudo isso às malvas numa estratégia que é incompreensível do ponto de vista da defesa.

  1. A Alemanha e o colapso do sistema de não proliferação nuclear

O tratado de não proliferação nuclear de 1968 pode ser considerado um sucesso mitigado, com a proliferação legalizada limitada à França e à China, que se juntaram às três primeiras potências nucleares, os EUA, a URSS e o Reino Unido, e a rejeição do tratado limitada ao Paquistão, Índia e Israel e com inúmeros casos de países que foram levados a renunciar à nuclearização à sombra do tratado.

A primeira grande fissura na aplicação do tratado deu-se com a Coreia do Norte que, não só violou frontalmente os termos do tratado que tinha assinado como levou os EUA a tomar uma posição absurda de conceder vantagens de vários tipos a troco de promessas norte coreanas – naturalmente não cumpridas – de parar o programa nuclear.

Só com a presidência de Donald Trump o processo foi formalmente interrompido, estando no entanto ainda por saber se a presente administração americana será capaz de inverter a lógica suicida de apaziguamento posta em marcha pelos seus predecessores.

Uma repetição em jeito de farsa do processo nuclear norte-coreano foi montada pela administração Obama em conversações com o Irão, num processo que foi alargado das cinco potências nucleares iniciais à Alemanha e, com um estatuto ambíguo, à União Europeia.

O processo foi absolutamente desastroso, com a passagem de uma esponja sobre todas as violações nucleares iranianas, o expansionismo do regime e os seus crimes contra os direitos humanos, acrescida do financiamento de biliões de dólares à teocracia e um sistema limitado no tempo e nos meios que apenas adiaria um dos elementos do programa nuclear iraniano, o enriquecimento do urânio, deixando os restantes em roda livre.

Um dos mais óbvios efeitos colaterais do acordo nuclear iraniano foi o de relançar a corrida nuclear no mundo inteiro, a começar naturalmente no Médio Oriente, onde se multiplicaram as declarações mais ou menos claras de intenções de nuclearização.

A Alemanha – contrariamente às declarações de vários dos seus dirigentes – não desempenhou qualquer papel nas negociações nucleares iranianas, mas obviamente que o facto de ter estado entre as potências signatárias promoveu o seu estatuto de potência para-nuclear.

Na campanha eleitoral de 2017, a chanceler alemã erigiu-se em garante do acordo nuclear com o Irão e mais, afirmou-se disposta a repetir a experiência com a Coreia do Norte. Só quem viva num mundo de fantasia pode levar a sério estas iniciativas como formas racionais de convencer esses regimes monstruosos a desistir das armas nucleares. O seu único sentido lógico foi o de abrir o caminho às presentes declarações alemãs favoráveis à nuclearização do país que representam uma ameaça ainda mais importante de dinamitar a contenção nuclear que foi até hoje assegurada pelo tratado de não proliferação.

É claro que a Alemanha não está sozinha nesse processo, e tanto a Rússia como a China têm desempenhado aqui papéis cruciais, que precisam de ser analisados ‘per se’. Isso não pode menorizar o facto de tanto a Alemanha e a União Europeia terem passado agora de garantes do sistema internacional anti proliferação a fautores da sua derrocada.

 

Receba a nossa newsletter

Contorne o cinzentismo dominante subscrevendo a Newsletter do Jornal Tornado. Oferecemos-lhe ângulos de visão e análise que não encontrará disponíveis na imprensa mainstream.

Receba a nossa newsletter

Contorne o cinzentismo dominante subscrevendo a nossa Newsletter. Oferecemos-lhe ângulos de visão e análise que não encontrará disponíveis na imprensa mainstream.

- Publicidade -

Outros artigos

- Publicidade -

Últimas notícias

Mais lidos

- Publicidade -