Cumprem-se hoje dez anos sobre a data da falência do Lehmans Brothers, numa semana que se iniciara com a notícia da intervenção do Tesouro norte-americano nas duas principais instituições financiadoras do crédito hipotecário naquele país…… o FANNIE MAE (Federal National Mortgage Association) e o FREDDIE MAC (Federal Home Loan Mortgage Corporation), as duas empresas privadas que operam, sob mandato público, como financiadores de bancos e outras empresas financeiras que concedem créditos hipotecários; classificadas entre as too big to fail (expressão utilizada na terminologia económica anglo-saxónica para designar as empresas que pela sua enorme dimensão e importância no mercado não poderão falir), que viram abertos os cofres públicos para as salvar, e aos seus accionistas, da falência. Esta intervenção e a posterior falência do Lehman Brothers foram a confirmação de que a crise financeira iniciada pelo rebentamento da bolha do subprime estava para durar, de que se desconheciam as ondas de choque e sem qualquer vislumbre que algo de semelhante não se pudesse repetir.
Quem na época pensou que após o apoio governamental às negociações que conduziram à entrada dos chineses do CITIC no capital do MORGAN STANLEY, à aquisição do BEAR STEARNS pelo JP MORGAN e a do MERRILL LYNCH pelo BANK of AMERICA a crise poderia estar minimizada, terá sofrido uma profunda desilusão quando o Tesouro americano anunciou a intervenção no FANNIE MAE e no FREDDIE MAC (no montante conjunto de 200 mil milhões de dólares) e se respirou com algum alívio à decisão da administração Bush de não contrariar a falência do LEHMAN BROTHERS, confiando nas virtualidades do mercado para resolver e absorver os efeitos da turbulência, que grande decepção terá sentido com a posterior necessidade de mais uma intervenção, agora na seguradora que liderava o mercado mundial de seguros e serviços financeiros, a AIG, e no montante de 85 mil milhões de dólares).
E este cenário não se limitou ao mercado norte-americano, pois também o sistema financeiro inglês, fortemente atingido pela excessiva especulação imobiliária, assistiu à nacionalização do NORTHERN ROCK e à compra apressada do HBOS (HALIFAX BANK OF SCOTLAND) pelo LLOYDS TSB.
É que se os primeiros sinais de fragilidade do sector bancário pareceram de fácil resolução (o FED e outros bancos centrais não pararam de injectar biliões de dólares nos mercados interbancários, enquanto iam ajustando as taxas na expectativa de atenuar a quebra de confiança que grassava naqueles mercados) o seu contágio para o sector segurador veio dar maior credibilidade aos cenários mais negativos e confirmar que se a origem da crise podia ser imputada à falência do mercado do subprime norte-americano, o seu desenvolvimento e aprofundamento deveu-se principalmente ao mercado de incomensurável risco que constituem a profusão dos sofisticados produtos derivados que as empresas financeiras criaram e com os quais inundaram um mercado alheio às respectivas características e incapaz de avaliar (e prevenir) os riscos associados.
A miscigenação entre activos com níveis de risco muito díspares, a falta de know how de muitos dos operadores que negoceiam estes produtos e uma quase total ausência de escrúpulos (em grande parte determinada pela absurda regra da sobrevalorização dos resultados de muito curto prazo e do pagamento de chorudos prémios aos quadros superiores) por parte dos responsáveis pelas principais entidades financeiras, facilitada pela ausência de regulamentação destes mercados, terá estado na origem do efeito de contágio e de expansão da crise iniciada no mercado do subprime.
A grande sofisticação deste tipo de produtos financeiros e a sua difusão como se de um produto de cobertura de risco se tratasse, originou uma rápida e vasta dispersão pelas contas de quase todos os bancos por esse mundo fora. Mesmo quando se ouviram ou leram declarações de políticos e de administradores de bancos que asseguravam a reduzida exposição das suas economias (e das entidades financeiras que nelas operam) àquele tipo de produtos deveriam ter sido recebidas com as devidas reservas, na medida em que continuavam por apurar os montantes envolvidos naquelas transacções e, inclusive, quais os instrumentos financeiros que integravam ou não os activos daquele tipo.
A regulamentação mais rigorosa, anunciada em Novembro de 2008 na 1ª Cimeira do G20, continua por implementar com a profundidade necessária para por cobro ao absoluto desmando que a crise revelou, em resultado da legislação aprovada em 1999 pela administração Clinton (o Financial Services Modernization Act) que em nome da necessidade de maior concorrência entre as empresas financeiras (bancos e sociedades de investimento) e na defesa dos interesses dos bancos americanos face aos rivais estrangeiros, tidos como menos sujeitos a regulação, revogou o Glass-Steagall Act de 1933 (lei da actividade bancária) que, no rescaldo da Grande Crise de 1929-1933, tinha imposto a separação entre a actividade bancária comercial e a banca de investimento, e para recuperar os valores de confiança e ética num sector de actividade que nunca deveria ter sobrevivido a expensas do sacrifício dos contribuintes, que a avaliar por uma estimativa da época da Reserva Federal norte-americana custou entre os 6 e os 14 biliões de dólares.
A recuperação daqueles valores não se deveria resumir à separação de actividades que garantam maior segurança aos depositantes, mas alargá-la ao conjunto do sistema financeiro e em especial aos sectores mais permissivos a tentações especulativas, tanto mais que até agora o pouco que mudou naquele sistema não passou de mera cosmética e em reacção à retórica política mais inflamada. Mais correcto seria realmente reconhecer que nada mudará enquanto se garantir ao sector financeiro a permanente disponibilidade de fundos públicos para as recapitalizações necessárias para cobrir os prejuízos resultantes da especulação, que continua a ser incentivada e premiada pela atribuição de grandes bónus aos principais intervenientes.
Tudo isto quando a generalidade da banca mundial sobrevive mediante uma quase caridade pública (os famigerados resgates sustentados num duvidoso conceito de risco sistémico, como sucedeu em Portugal com o BPN, o BPP, o BANIF e o BES) que foi a grande responsável pelo agravamento do endividamento público e pelas políticas de austeridade que se seguiram, apresentadas pelos políticos como indispensáveis, para agradar aos credores que são afinal os mesmos bancos ou os seus proprietários. Tudo isto quando ainda poucos abordam os problemas das economias debilitadas pela recessão económica sem trazer à primeira linha de argumentação as dificuldades de liquidez originadas pela retracção no crédito bancário, como se fosse lógico e natural que empresas e famílias vivam fortemente dependentes do crédito e não dos ganhos (lucros e salários) das respectivas actividades, continuando a insistir no absurdo princípio da superioridade de um modelo económico que, impondo um sistema de globalização dos mercados, conduziu a um enriquecimento desmedido dos capitais transaccionais enquanto condenou o trabalho e os capitais locais ao empobrecimento absoluto e direccionou o Mundo para uma situação de quase apocalipse.
Continua evidentemente a faltar um debate sobre o futuro modelo de regulação financeira e por maioria de razões um outro ainda mais importante: a definição de um novo papel para o sistema financeiro, forçando a separação entre as actividades bancárias clássicas (recolha de fundos e respectiva aplicação na actividade creditícia) e as novas vertentes puramente especulativas, modelo que deveria ter como principal garantia para que a futura actividade financeira se resuma ao financiamento da economia e para que a compulsão para a tomada de riscos seja minimizada, o indispensável regresso da capacidade de criação de moeda à esfera pública, limitando essa capacidade do sector financeiro ao mínimo indispensável aos níveis de liquidez saudável e nunca aos níveis de alavancagem que têm sido registados.
Mas as hesitações e tergiversações dos principais líderes mundiais não auguram para breve qualquer alteração radical no modelo de organização e funcionamento do sector financeiro, tornando cada vez mais seguros os proféticos avisos sobre a aproximação de novas crises, inevitáveis num dos mais iníquos sistemas de concentração da riqueza geral nas mãos de um reduzido grupo de grandes financeiros.
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