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Quinta-feira, Novembro 28, 2024

Racismo, saber de preconceito e o disco de cores de Newton

Carlos de Matos Gomes
Carlos de Matos Gomes
Militar, investigador de história contemporânea, escritor com o pseudónimo Carlos Vale Ferraz

Um inquérito apresentado numa(s) escola(s) onde se perguntava aos alunos a sua origem étnico/geográfica – portuguesa, cigano, chinesa, africana, Europa do Leste, indiana, brasileira, ou outra – gerou queixas de racismo.

As críticas dos ofendidos são de dois tipos, a dos que contestam o inquérito porque contestariam qualquer inquérito onde consta a origem étnica de qualquer indivíduo e a dos que criticam os fundamentos para criar os grupos apresentados.

Julgo que, no essencial, os críticos contestam o mesmo, a diferença com base na origem étnica. São, no fundo, racistas multicolores. São racistas porque fazem equivaler a raças as diferenças étnicas. Para eles a humanidade não é formada por grupos de humanos que se adaptaram ao ambiente, que ganharam visões do mundo, criaram deuses e rituais, tons pele, línguas e modos de comunicar.

Esses críticos, normalmente com extensos currículos académicos, vêem a humanidade como nós vemos o disco de Newton a rodar, uniformizado no branco. As cores que constituem o disco são diferenças que só servem para eles afiançarem que somos todos da mesma cor e temos todos a mesma visão do mundo. Que não temos passado. Apenas presente. Para eles as cores continuam a corresponder a raças e vivem desta fé, como os sacerdotes vivem dos demónios, mesmo que só eles os elejam como símbolos do mal. Para o seu exorcismo em nome do racismo, estes esconjuradores contam com os ditos representantes das “minorias” erigidas estas em representes das raças, sempre oprimidas: o resultado é um negócio em que se aproveitam para aparecer, ganhar visibilidade e, em muitos casos, fazer uns negócios em nome da integração e da inclusão, curiosamente de quem eles não reconhecem ser diferentes, porque isso é racismo!

A critica a este tipo de inquéritos revela um antiracismo paradoxal.

Esta categoria de críticos considera que um cigano tem a mesma visão do mundo de um eslavo, que um chinês vê o mundo como um indiano, que um fula da Guiné, islamizado, tem o mesmo Deus de um balanta, animista, que um brasileiro aculturado entre a ascendência africana, índia e portuguesa tem a mesma atitude perante a vida e a morte, o trabalho e o lazer que um chinês, ou um indiano, ou um eslavo. Por isso é condenável perguntar-lhe pelas diferenças!

Esta gente que não distingue diferenças vive neste mundo? Saiu de casa? Trabalha? Passou fronteiras de continentes? Já bebeu chá de cócoras? Comeu bolas de arroz à mão? Sabe o que é um Irã, uma árvore sagrada? O certo é que vendo tudo a branco consegue impor as suas ideias racistas, os seus demónios. Os mesmos para todos! Nada de aceitar os nove círculos propostos por Dante na Divina Comédia, porque seria racismo perguntar de onde vieram os condenados!

Uma anedota exemplifica a atitude destes adeptos do disco de Newton: quando oficialmente terminou o apartheid na África do Sul, as escolas passaram a ser multiétnicas, com alunos brancos e negros nas mesmas salas. A professora, branca, explicou aos alunos que tinha deixado de haver meninos brancos e negros, agora eram todos azuis e terminou: os meninos azuis claros para a frente e os  meninos azuis escuras para o fim.

Conhecer as diferenças de cultura é essencial para a convivência entre os homens. Um chinês não come da mesma maneira que um europeu. O mesmo para um indiano. Os tabus relativamente ao corpo são muito distintos entre um africano subsariano e um magrebino, entre um brasileiro e um eslavo.

Disco de Newton

Perguntar de onde vimos, de onde vieram os nossos pais ajuda entender, a quem quiser estudar essas culturas de origem, o que posso esperar daquele jovem, como o posso ajudar a perceber os outros e ajudar os outros a compreendê-lo. Os adeptos do anti-racismo à moda do disco de Newton consideram um avanço civilizacional relacionarmo-nos sem respeito pelas diferenças, pelo passado, pelas tradições, pelas cosmogonias! Para estes racistas, somos todos como as garrafas de plástico, feitos do mesmo material, vindos do mesmo caldeiro!

“Quando vais ao território dos Kuba não comeces a montar as tuas armadilhas, vê primeiro como eles montam as suas” proverbio dos Lubuva, do Congo. Para estes anti-racistas de alta sensibilidade não há estrangeiros. Também não os colhe a sabedoria dos Tumbuka, da Zâmbia: “O estrangeiro é como uma galinha branca, reconhece-se imediatamente”.

Blasfémias racistas! – gritarão os ofendidos pelas perguntas. E, já agora o que fazer com a proverbial paciência chinesa se não podemos perguntar a um chinês se ele é chinês? E o que fará quem gere uma escola quando lhe entrar pela escola uma família cigana (que não pode ser nomeada) porque um jovem da Europa do Leste quer namorar com uma cigana? Dirão os ofendidos do inquérito que nada se deve perguntar, nada se deve discriminar.

Outra linha das críticas é pseudocientífica. O inquérito não tem validade porque confunde situações que não são equivalentes, ser português diz respeito à nacionalidade e ser cigano é uma pertença étnica, por exemplo. É uma mistificação. Nas comunidades multiétnicas como as escolas e os quartéis, por exemplo, os seus elementos sabem muito bem distinguir-se e entender a pergunta. Sabem mesmo dar a resposta que entenderem mais conveniente. Um exemplo, o doutor Narana Coissoró, numa entrevista tanto se afirmou como português, como indiano brâmane. Como, aliás, embora num registo menos definido, o fez o primeiro-ministro António Costa em viagens à Índia e a Moçambique. E como o fazem vários atletas que escolhem representar a selecção nacional que mais convenha às suas carreiras, a dos pais ou a de nascimento, ou de adopção.

Estes críticos, de grande exigência na definição do elemento definidor, também não aceitariam grupagens do género “africano”, ou “indiano” – africano de onde, um bacongo de Angola é distinto de ovimbundo e este de um macua de Moçambique e este de um ronga que, por sua vez é distinto de um fula islamizado da Guiné. E um russo distingue-se de um polaco. Na realidade estas grupagens, apesar de serem de malha larga, contribuem para gerir melhor as relações entre indivíduos e entre comunidades. Contribuem para gerir conflitos de relacionamento entre sexos, tabus alimentares, conceitos de família e papéis sociais, por exemplo.

A acusação de racista a qualquer tentativa de identificar diferenças (pré-existentes, oriundas da cultura profunda, da superestrutura) entre membros de comunidades com distintos passados e que têm de conviver numa comunidade de outro nível, caso da escola, ou do quartel, ou do bairro é não só ofensiva das comunidades e das suas diferenças, como é perigosa e contra procedente.

Dado que estes espasmos de sensibilidade racista têm uma particular recorrência entre docentes e activistas ligados à educação, e causam nela reacções de “aqui del rei”, como abordará um professor, numa comunidade tratada como o disco branco do Newton, a questão da morte, por exemplo, em que um africano (assim designado com a devida penitência às almas mais sensíveis) animista, que acredita que os mortos continuam presentes na família, se defronta com um hindu crente na reencarnação, mesmo que sob outra forma, de um animal, de um vegetal? E quanto ao papel das mulheres? À monogamia e à poligamia? E à carne de porco, ou ao álcool?

Não se pode, não se deve perguntar de onde vêm os alunos! Mas eles sabem de onde vêm. Eles organizam por origens étnicas. Eles sabem distinguir-se. Eles vivem a realidade. Os ofendidos do inquérito, os adeptos da ilusão do branco do disco de Newton, vivem na deliberada cegueira, na utopia do mundo povoado por bons selvagens, carregados de teses, de títulos doutorais, de verdades retiradas de páginas de sábios também eles mergulhados nas suas conchas.

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