Sou do tempo em que a capacidade de sonhar ultrapassava largamente os conhecimentos de antropologia, e isso tornava mágico aquele admirável livro do Friedrich Engels “Da Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado” que rapidamente me convenceu que o futuro estava ali às nossas mãos, se abandonássemos a velha tralha institucional que nos barrava o caminho para a felicidade.
Enfim, algumas décadas passadas, muita cabeçada e algum conhecimento a mais, levam-me a olhar para estas versões paradisíacas do matriarcado – na verdade o Éden bíblico, versão marxista – com alguma distância e espírito crítico.
E se é verdade que são muitas e multifacetadas as realidades matriarcais históricas, algumas que sobreviveram até aos nossos dias, e que elas existem mesmo estado parcial nas sociedades ocidentais (recordo aqui algumas análises de comunidades piscatórias, a começar pelo inultrapassável Raúl Brandão), nada há de mais característico das realidades em que se inspira a nossa tradição democrática do que uma secundarização da mulher quando não mesmo a plena misoginia, da qual os nossos clássicos gregos são exemplo.
E se olharmos para o que é o mais simbólico na discriminação das mulheres, a sua igualdade de direitos, vemos que o direito de voto foi conquistado pelas mulheres apenas nos últimos 125 anos e que em numerosos países – fundamentalmente os que têm sido submetidos ao fascismo em nome do “Islão” – a igualdade de direitos tem sido restringida. Os mesmos valores puritanos ressurgem também a Ocidente, pela mão de movimentos que por vezes se autointitulam de “feministas”.
Olhando para a evolução da humanidade durante estes 125 anos creio que a maior revolução que ela sofreu foi a do papel da mulher e daí eu pensar que o podemos classificar como o “século da mulher”.
Tendo sido abandonada a discriminação legal da mulher no Ocidente, isso não quer dizer necessariamente que ela tenha sido abandonada nas práticas, a exemplo do que se passa com a discriminação legal de minorias religiosas, étnicas ou especificamente de cor, e daí o sentido de manter dispositivos que estejam especialmente atentos a formas secundárias de discriminação, recorrendo mesmo a sistemas de quotas nos casos em que as organizações humanas parecem mais impermeáveis à igualdade de oportunidades, como é o caso da política e dos negócios.
No Verão que passou, a imprensa belga deu conta de uma decisão de um Tribunal de impor uma indemnização a um homem discriminado pela sua condição masculina por uma empresa de vestuário e do número maioritário de queixas masculinas por discriminação no acesso ao emprego.
Entre nós, segundo o último relatório da “Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género” a situação não é diferente, com a generalidade das queixas a ser proveniente de homens.
Quer isto dizer que já passámos a uma nova era “matriarcal” em que temos de virar a página e começar a pensar em como defender os homens da discriminação?
Olhemos para o Japão, uma das mais avançadas democracias do planeta, tanto no plano económico como político. Durante este Verão ficámos a saber que a Universidade de Medicina de Tóquio, foi apanhada a falsificar sistemática e deliberadamente resultados, há pelo menos mais de uma década, a fim de manter o número de médicos femininos abaixo de um terço do total.
A mega fraude só foi descoberta por tabela, quando as autoridades investigavam um escândalo de suborno para adulterar notas de admissão de um candidato masculino. Não é possível imaginar uma fraude desta dimensão sem um grau de cumplicidade extremamente amplo, repare-se, na mais importante instituição pública de ensino médico de uma das mais importantes democracias do mundo.
E mesmo em Portugal creio que há evidência que prova uma concepção pouco igualitária dos sexos. A título de exemplo, e tendo em conta apenas as redes sociais, desde meados do Verão que tenho sido bombardeado por comentários negativos sobre uma profissional de televisão na sequência da notícia de que ela iria usufruir um salário anual de um milhão de euros.
Um milhão de euros é certamente uma fortuna para nós, mas a questão é perceber por que razão a mesma ou maior indignação não se faz sentir pela remuneração de banqueiros, dirigentes de empresas monopolistas ou futebolistas, muitos dos quais têm remunerações anuais muito acima desse milhão de euros?
Não será pelo facto de estes serem quase exclusivamente homens, e a referida “milionária” ser mulher?
Quem quer que tenha passado pelo ensino já se deu certamente conta de que as mulheres têm em regra melhores notas do que os homens e que têm, também em regra, comportamentos mais sociáveis.
A minha mais curta experiência no mundo do trabalho leva-me também às mesmas conclusões, com a generalidade das mulheres a apresentar capacidades e desempenhos superiores, daí a que me pareça natural que o “preconceito” geral do empregador seja pró-feminino, o que as queixas de discriminação maioritariamente masculinas parecem confirmar.
É verdade que esse avanço do papel da mulher não se dá de forma igual em todo o lado, e que elas continuam a ser minoritárias em postos de chefia – a Espanha passou a ser notícia por ter mais ministros femininos do que masculinos – com algumas profissões, como a dos negócios e da política, a ser marcadamente masculinas.
Para além disso, como nos revela a Universidade de Medicina de Tóquio, há entre os homens, mesmo em sociedades democráticas, quem tenha uma lógica misógina, e não hesite em falsificar resultados de forma sistemática apenas para cortar a igualdade de oportunidades das mulheres.
Há ainda – à margem do direito, mas não raras vezes incentivada pelo direito – uma cultura de violência sobre a mulher, de que infelizmente Portugal é um triste exemplo, com os países mais conservadores, mesmo fora do círculo Islamista, como é o caso da Rússia, a contemporizar com a violência doméstica.
As políticas de quotas – feitas entre géneros, entre etnias, castas ou grupos linguísticos – são sempre instrumentos com efeitos secundários negativos e que devem ser usados com parcimónia e sobretudo de forma temporária e não como direitos adquiridos.
Tendo feito grande parte da minha actividade na esfera política, creio que a real discriminação de género na política procede de uma visão de uma profissão onde a dedicação a qualquer hora e momento pode ser pedida (as maratonas de votações e reuniões nocturnas são bons exemplos) e que as principais responsabilidades familiares são da mulher e não do homem.
Neste caso em particular, creio que são estes os dois obstáculos fundamentais a uma igualdade de oportunidades real e que, na medida em que forem ultrapassados, poderemos vir a ter uma real mudança da representação política.
A questão política essencial onde se joga o futuro da revolução a que o nosso século assistiu é outra, é a de saber como vão as democracias liberais conseguir enfrentar a misoginia promovida pelo Jihadismo apoiada no Ocidente e no resto do mundo por vários movimentos políticos e culturais reaccionários e puritanos.
Acho que deveria ser aqui que deveríamos colocar as nossas atenções, mais do que em instrumentos como as quotas que, entre outras coisas, começam a ser uma forma de discriminar as mulheres.
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