Li os tópicos da acusação do(s) Procuradores do Ministério Público aos cidadãos que eles consideram ser os criminosos responsáveis pelos incêndios ditos de Pedrógão Grande. Fiquei com o que os ingleses (e gente que gosta de armar ao snob) designam por mixed feelings.
A situação daria um bom tema de romance: Acusado de boa vontade, por exemplo. O homem que foi apagar um fogo e acabou queimado pela justiça. Ou, visto pelo lado dos acusados: Mais valia ter ficado em casa! Ou ainda: Para a próxima chamo os procuradores!
Será condição para representar os portugueses perante os tribunais – para serem seus procuradores – que os procuradores ignorem a História do seu país? Ou, em alternativa, isto é, que tendo algum conhecimento de factos e personalidades do passado relevantes para o nosso presente, sejam destituídos de senso comum, para já não falar de senso da história?
Do que li tirei a conclusão que os procuradores se erigirem como “autoridade suprema de avaliação de decisões de comando durante a batalha”. Escrevem os procuradores, segundo os jornais, que um comandante demorou um tempo que eles consideraram exagerado a encontrar uma localização para a viatura de comunicações. Crime, garantem os procuradores. Estava-se me mesmo a ver onde era! Concluo eu. Noutro ponto acusam de criminoso um comandante que optou por dar prioridade a uma estrada e não àquela onde se estava mesmo a ver (agora) que era onde iriam morrer pessoas em fuga. Ainda: um dos responsáveis não previu e não antecipou a dimensão que o incêndio viria a tomar, que não extraiu as evidentes consequências da meteorologia, da intensidade e direcção dos ventos, da humidade e temperatura, que, simultaneamente, não pediu reforços, nem chamou helicópteros, que mandou vir bombeiros de longe – isto é, não teve o comandante ora arguido, ou os comandantes como ele, a presciência de que iria ocorrer ali o maior, ou um dos maiores incêndios da história. O que aos procuradores, hoje, parece evidente. Só os criminosos no meio do incêndio não viram tudo o que hoje é claro para os procuradores que os acusam em nosso nome. Eu recuso este tipo de acusação. Entendo que quem tem sarna é que sabe onde tem de coçar. Que mais vale uma má decisão do que decisão nenhuma. Que decidir é correr riscos de errar. Que quem está ao leme é que escolhe a onda que vai enfrentar.
Os procuradores desta acusação ou são gente com grande, com enorme, experiência em situações catastróficas, ou ignoram da forma mais afrontosa e chocante os incontáveis relatos e reflexões aquele que é designado por tantos escritores e historiadores pelo “caos da batalha”.
Este tipo de acusação é muito vulgarmente designado como o atrevimento da ignorância. Mas não é o vulgar atrevimento da ignorância dos procuradores da República sobre as dificuldades de decidir em ambiente caótico, de um cataclismo, de uma sala de urgências após um grande desastre, de um ataque em massa, de um naufrágio, de uma falha de motores de uma aeronave, por exemplo, que mais me choca enquanto cidadão. Sinceramente, o que mais me choca enquanto cidadão é sentir-me impotente perante indivíduos dotados de autoridade para, repimpadamente (bela palavra) sentados na calma serena do seu gabinete julgarem aqueles que tiveram de tomar decisões com os elementos de que dispunham no momento e debaixo da tensão do momento. Isto é, preocupo-me por estar à mercê de gente que não reflete as circunstâncias, nem tem a consciência da sua influência. A este tipo de julgamento, desligado da realidade, chama-se pesporrência.
Acredito que gente desta, que me parece estar a confundir um erro com um crime, uma decisão tomada a quente e quase instintiva com uma análise a posteriori, bem informada e bem sentada, que acusa com base no que se sabe hoje e não no que aquele decisor sabia naquele momento, não hesitaria em acusar de crime o Dom Sebastião pelas decisões que tomou em Álcácer Quibir, por exemplo (um erro histórico, mas não um crime), ou de mandar para tribunal todos os comandantes das naus que constam da História Trágico-Marítima e que naufragaram ao longo da rota para e da Índia, criminosos, pois então! Todos com termo de identidade e residência, com pulseira eletrónica, proibidos de falar uns com os outros. Ou a ferros, se os acusadores judiciários soubessem do que se trata. E, já agora, estes estrénuos justiceiros em nome da nossa república e dos seus (como se vê) desprotegidos cidadãos, deviam pedir a extradição de um tal Cristóvão Colombo, que se enganou bem mais que os comandantes dos bombeiros de Pedrógão (agora arguidos como criminosos) e tomou o caminho errado para chegar à India.
Por fim, quem avalia as decisões dos que, hoje, decidiram que os criminosos do incêndio de Pedrógão foram os comandantes que lá estiveram, que correram os riscos de decidir e, logo de errar? Quem avalia o senso dos que vivem sem se interrogarem como no último verso de um soneto de Sá de Miranda “Que Farei Quando Tudo Arde”, que Lobo Antunes utilizou como título de um dos seus livros, ou, mais difícil ainda, que respondam, não com uma imprecação, como aquele operário a quem o colega deixou cair um pingo de chumbo incandescente num olho, mas sim com um urbanizado pedido de “Manuel, por favor toma mais cuidado com o manejo da solda!”
Estamos num estranho tempo – o do politicamente muito correto – em que, para o sistema judicial e os seus agentes, a decisão é, em princípio criminosa. Em que as acções da História, vistas pelo sistema judicial, são, em princípio, contra os códigos e as leis. Que assumir responsabilidades, incluindo a de errar, é cair nas mãos dos procuradores, como arguido. Estamos a caminho do que Durkheim, o sociólogo francês, designou como suicídio anómico de uma sociedade que não se sente protegida, em que as “grandes instituições”, caso do sistema judiciário, deixam de distinguir o certo e o errado, o verdadeiro do falso, deixem de ser capazes de contextualizar e relativizar. Isto é: estamos no caminho do estado totalitário, porque forçosamente a sociedade procurará quem decida, quem aja, mesmo à margem de qualquer representação, de qualquer legalidade, que invoque o senso comum.
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