“É difícil ser mulher neste mundo. É difícil ser artista e mulher. Mas ser artista e feminista é muito mais difícil”. Tal afirmação poderia estar destacada em cartazes de manifestações contra a censura na avenida Paulista, principal via da cidade de São Paulo, ou ser grifada em textos de movimentos como o #MeToo, ambos de suma importância na luta pela igualdade dos gêneros nos anos 2000.
No entanto, data do ano de 1987 e foi dita por Mónica Mayer, uma das integrantes do grupo de arte feminista mexicano Polvo de Gallina Negra, em entrevista para o programa televisivo “Nuestro Mundo”, comandado pelo popular apresentador Guillermo Ochoa. Diante do jornalista, que fazia uma série de perguntas repletas de ironia – “por que arte feminista e não simplesmente arte?” –e tirava sarro da intervenção proposta por ela e sua companheira, Maris Bustamante, que à época desenvolviam um projeto intitulado “Madre Por um Día”, a fim de mostrar o real significado da maternidade. As duas precisaram esclarecer com cautela para o trabalho que realizavam ser bem compreendido.
Marie Orensanz (Argentina, 1936), Limitada, 1978/2013
“As mulheres têm sido relegadas em nossa cultura. Por essa razão, nós, como artistas, precisamos mudar, por exemplo, a imagem da mulher nos meios de comunicação”, disse Bustamante. “A maioria dos quadros sobre maternidade foi pintada por homens, que não vivenciaram tal experiência. Por essa razão, há poucas obras de mães com filhas”, salientou Mayer durante o bate-papo.
A íntegra desta conversa, que dura cerca de 17 minutos, pode ser vista em vídeo na exposição “Mulheres Radicais: Arte Latino-Americana, 1960-1985”, em cartaz até 18 de novembro na Pinacoteca, na capital paulista.
O trabalho do Polvo de Gallina Negra é um bom exemplo de como centenas de artistas, décadas antes de discussões acerca da paridade salarial ou do assédio em ambiente de trabalho, procuraram, por meio da arte, mostrar seus desejos, suas complexidades e suas contradições. E o mais importante: sem a intermediação da figura masculina.
“Elas fazem parte de uma geração que, no mundo todo, e não só no campo das artes visuais, confrontou as estruturas sociais para reivindicar outros modos de estar no mundo, mais libertário e menos coagido por regras de comportamento”, afirma Valéria Piccoli, curadora-chefe da Pinacoteca. “Por isso, a ideia que perpassa toda a exposição – e, portanto, a obra dessas mulheres – é a noção de ‘corpo político’”, acrescenta. Para ela, “trata-se de um corpo que não se sujeita às convenções e que as desafia para questionar o papel da mulher na sociedade, o direito ao prazer e os direitos civis, entre tantos outros temas que, se pensarmos bem, ainda são tabus.”
Uma das curadoras da exposição, Andrea Giunta conta que procurou, nas mais de 280 obras de 124 artistas selecionadas, revelar a radical transformação da representação do corpo feminino na arte latino-americana entre 1960 e 1985. É neste período que a mulher assume o protagonismo da própria representação. “Elas elaboram discursos complexos e sensíveis que contribuem para uma abordagem mais profunda da revolução nas quais seus corpos estavam imersos”, diz a pesquisadora argentina, que assina a mostra “Mulheres Radicais” com a venezuelana-britânica Cecilia Fajardo-Hill.
Isso, por exemplo, é evidenciado nas obras da cubana Zilia Sánchez (1928), da venezuelana Mercedes Elena González (1952) e da argentina Marta Minujín (1943), que, confortáveis com seus respectivos corpos, fazem representações de vaginas em suas respectivas obras. Desta vez, sem a marca do desejo sexual, geralmente presente em obras feitas por homens, que, ao longo da maior parte da história da arte, foram quem assinaram quadros que representavam as figuras femininas.
A trajetória dessas artistas nestas décadasespecificamente, no entanto, foi bastante tortuosa. Afinal de contas, além de terem de lidar com o machismo, os olhares enviesados de curadores homens, o pouco espaço em museus e galerias de arte – fato que existe até hoje, como atesta em suas intervenções o grupo norte-americano Guerrilla Girls, que denuncia a pouca presença feminina nos principais museus do mundo como o Metropolitan em Nova York ou o Museu de Arte de São Paulo (Masp) –, elas precisaram se desviar do peso pesado de governos totalitários. No período de 1960 a 1985, boa parte dos países latino-americanos estava sob regimes ditatoriais.
“A repressão militar elaborou técnicas de torturas dirigidas especificamente para o corpo feminino: de estupros a sequestro de filhos e mortes”, lembra Giunta. Na exposição, a chicana, como são conhecidas as latinas nascidas nos Estados Unidos, Isabel Castro (1954) registra em fotografias mulheres que foram esterilizadas, e a colombiana Sonia Gutiérrez (1947), por meio de técnicas de pop art, recria cenas de tortura, como a imagem de mulher pendurada pelos pés. Longe de posarem apenas de vítimas, muitas dessas artistas, como atesta a estudiosa, comprometeram seus corpos com a própria luta revolucionária.
Fajardo-Hill comenta que, ao longo da seleção das obras, se surpreendeu com a semelhança dos temas abordados por artistas de diferentes regiões e que, naquela época, não se conheciam ou tinham meios de conversarem entre si. “São mulheres que sempre foram marginalizadas e que, em comum, passaram pelas mesmas experiências de opressão”, diz. Por essa razão, as curadoras preferiram disponibilizar as obras não em ordem cronológica, mas sim por temas.
Lenora de Barros (Brasil, 1953), Poema, 1979/2016. Publicada pela primeira vez na revista conceitual “Zero a Equerda” em 1981. Publicada em 1983 no livro da artista “Onde se Vê”. Fotografia: Fabiana de Barros
O interessante é que, apesar da proximidade do assunto, cada uma dessas artistas se expressavam de maneira diferente e por meio de ferramentas diversas. Giunta, por exemplo, salienta o poder da linguagem, que aparece em diversas obras da exposição. Enquanto a brasileira Anna Maria Maiolino (1942) exibe uma tesoura ameaçando a linguagem, a chilena Gloria Camiruaga (1940-2006), em vídeo, revela línguas lambendo um sorvete que envolve soldados de plástico. “Em ambos trabalhos, a linguagem se refere à violência, à ditadura, mas as duas o fazem com diferentes formas poéticas, provando que a América Latina não possui uma estética unificada.”
“Mulheres Radicais: Arte Latino-Americana, 1960-1985” chegou a São Paulo depois de passar pelo Hammer Museum, em Los Angeles, e o Brooklyn Museum, em Nova York, que a Calle 2 visitou no mês de junho. Trata-se da primeira cidade latino-americana a receber a exposição. “Tentamos levá-la para o México e para a Argentina, mas, aparentemente, não houve interesse”, lamenta Fajardo-Hill.
Na capital paulista, a mostra ganha a presença das brasileiras Wilma Martins (1934), Yolanda Freyre (1940), Maria do Carmo Secco (1933) e Nelly Gutmacher (1941), ausentes nos espaços culturais norte-americanos. “Tanto a Wilma quanto a Maria do Carmo participam com pinturas, mas as duas têm poéticas completamente distintas: Martins em um viés mais onírico, com elementos da natureza que invadem espaços domésticos; Secco, mais próxima das linguagens da pop art, abordando o prazer feminino”, explica a curadora da Pinacoteca. “Gutmacher apresenta modelagens de fragmentos do corpo feitas em cerâmica, e Yolanda está na mostra com registros de performances da década de 1970.”
Mas nem só para o próprio umbigo as artistas com espaço na exposição “Mulheres Radicais” olhavam. Em vários projetos, outras minorias, como indígenas, negras e a população LGBTQ, ganham protagonismo.
Sandra Eleta (Panamenha, 1942), Edita (la del plumero), Panamá, 1977, da série La servidumbre, 1978-79
Na série fotográfica “La Servidumbre”, Sandra Eleta (1942), do Panamá, põe em destaque a mulher panamenha, que, durante o controle norte-americano do Canal do Panamá de 1914 a 1999, era enxergada somente como doméstica. A brasileira Anna Bella Geiger (1933) denuncia o olhar exótico sobre os indígenas, mesmo quando estes realizam as mesmas atividades que o “homem branco”. A chilena Diamela Eltit (1949) chama a atenção para o descaso com as pessoas em situação de rua. Por sua vez, a mexicana Yolanda Andrade (1950) registra a parada do orgulho gay, e a cubana Ana Mendieta (1948-1985) lida com a questão da transexualidade.
“Essas artistas trabalham com a empatia, ou seja, com a possibilidade de se identificar com o outro, de sentir o que outro sente”, afirma Giunta, lembrando o trabalho da chilena Paz Errázuriz (1944), outra artista presente na exposição, que passou a abordar em suas fotografias a vida dos travestis quando morou em bordéis de Santiago. “Essas artistas exploram as bordas da sexualidade. É muito importante entender que o feminismo não é uma luta apenas pelos direitos das mulheres em seu sentido mais tradicional. Envolve também a luta pela soberania do próprio corpo, seja qual for a sua identidade sexual”, completa a pesquisadora.
E o que esses trabalhos têm a dizer para os movimentos feministas de hoje em dia, que brigam pela legalização do aborto, a paridade salarial e o fim do assédio em ambientes públicos e privados, entre outros pedidos? Fajardo-Hill acredita que a exposição ajuda a mostrar que as reivindicações não são individuais, mas, sim, plurais. E mais: históricas. Sua colega Giunta acrescenta: “Essas artistas oferecem às novas gerações a possibilidade de sentirem que não estão sozinhas, que outras mulheres lutaram antes. E conhecer e sentir que não estamos sozinhas é a base filosófica, afetiva e política do feminismo.”
Por Alan de Faria | Texto em português do Brasil
Exclusivo Editorial PV (Calle2) / Tornado
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