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Sábado, Julho 27, 2024

Nunca conheci um patrão de casa de putas!

Carlos de Matos Gomes
Carlos de Matos Gomes
Militar, investigador de história contemporânea, escritor com o pseudónimo Carlos Vale Ferraz

(Capitulo para um futuro romance) – Eu também não.

Este é um texto que descobri nos rascunhos do marginal escritor Carlos Vale Ferraz, autor de um primeiro romance a que deu o título de Nó Cego, onde enreda as aventuras da geração que arriou as velas do fim de império africano.

Uma anti-epopeia que não merece sequer um registo nos planos nacionais de leitura, porque os juízos literários são isentos de boas vírgulas e prenhos de frases amendoadas. Dele disse ele no intróito do Nó Cego: “o autor  é pacato e gordo, cai-lhe o cabelo e escreve de noite com os óculos na ponta do nariz…” e, mais adiante: “Por si, garante, a Pátria não verá aumentada a galeria dos ilustres e não ganhará feriado em dia de morte ou de centenário.”

Não será tanto assim. Ou não foi. Descobri que esse tal Carlos Vale Ferraz pode ser agora gordo e careca, mas já foi, recolhido de fontes seguras, um belo valdevinos. Belo é autopromoção. Vaidade. Valdevinos é uma boa legenda para a foto antiga.

Ele sabe da vida vivida. Concluí. Da vida que se aprende nas casas de putas e nas mortes sem casa mortuária. Entre uma e outra encontram-se as casas de alterne, com mais ou menos luxo, hotéis, até com “incentivadoras de clientes”, uma designação de putas que aprendi agora no processo de um egrégio futebolista chamado Ronaldo. Incentivadoras que surgiram ao Carlos Vale Ferraz à porta de elevadores de hotéis de luxo, quando a vida o levou a frequentá-los. Perguntavam em várias línguas, português, espanhol, francês, inglês e até chinês: Não vos agradaria uma companhia neste vosso quarto tão caro e vazio, com uma cama tão larga? – e às vezes até surgiam aos pares. Desse azar se livrou o ilustre futebolista. Só teve e tem de pagar a uma e de ser acusado por uma. Se tem contratado uma sessão colectiva de tudo ao molho lá ia um par de botas de ouro para o prego!

Voltando ao Carlos Vale Ferraz, dele se sabe que correu o risco de ser acusado de violação aos 15 anos, numa casa de primores que ainda eram legais no Estado Novo sob a designação de casas de “matriculadas”, no Diário do Governo, nas Escadinhas de Santo António, em Santarém, acompanhado por um perfeito do estabelecimento de ensino onde estava internado, e no período de exames a que iria ser sujeito num liceu, dito nacional. Pagou o perfeito, com uma nota de 20 escudos, ilustrada pela figura de Santo António, que o futuro escritor sem glória nas letras não quis ofender, preferindo trocá-la por uma gravata de seda oferecida ao que se diria hoje: auxiliar de acção (boa acção) educativa!

A incentivadora de clientes das Escadinhas de Santo António, ao largo da Misericórdia, numa altura em que se assumiam como putas, recebeu do perfeito a nota e colocou no gira-discos um paso doble de que o Carlos Vale Ferraz se recorda o título: “Olé Trincheira!”, cantado pela Maria José Valério, que já incentivara o ciclista Pedro Polainas! Preliminares musicais e dançarinos que também surgem no vídeo de engate do futebolista! A técnica de música e dança para espoliar clientes é tão velha que até está impressa nos frescos dos lupanares de Pompeia, mas há quem defenda as praticantes atuais (hodiernas?) como se fossem virgens a quem romperam o hímen e o esfíncter guardados para outras instâncias.

Os pormenores mais ou menos picantes são de somenos importância e, na época, não existia a TV do Correio da Manhã para ir filmar o ato, nem o local, limpo e com bidé. De relevo nesta pequena história constam duas alíneas: a primeira, que informa o leitor que o escritor Vale Ferraz começou cedo nesta vida de correr riscos de uma puta o apanhar pela gravata, já que pelos vinte paus do Santo António seria difícil de provar; e a segunda, que garante ter sido o negócio tratado entre ele, o perfeito e a meretriz, de que se dispensa de fornecer pormenores anatómicos. Logo, o escritor sabe do que fala. Sabe que, felizmente para ele e para os que como ele andavam nesta vida, não havia naquela casa chantagistas, nem advogados, nem juízes ao barulho a queixar-se e a acusar os clientes de violar e de explorar caminhos de sentido proibido. Não havia. Não se tratava de um bacanal de falsas virgens. Um número caríssimo, como agora se vê. Viviam-se tempos de comércio justo. Sem especulação! As casas de putas eram dirigidas por patroas que não se queixavam de ser violadas. Era o negócio delas. Em Luanda a mais famosa chamava-se Marabunta! Nunca um homem lá foi abusado, nem acusado.

A partir dos 15 anos, o jovem que viria a ser o obscuro escritor Carlos Vale Ferraz passou por muito tabernáculo (não no sentido bíblico de casa de Deus, mas de local com cortinas e lamparinas). Na Metrópole, como se dizia no tempo de Portugal e Colónias, talvez o mais rasca tenha sido o «Faridol», no antigo Intendente, ou o Campaínhas, no Martim Moniz, ambos perto da sede do Bloco de Esquerda, à Almirante Reis. Tem graça e não ofende, julgo. Subiu e desceu escadas escuras e com cheiros húmidos pela Luciano Cordeiro, pela Conde Redondo… e sempre encontrou mulheres – Patroas! – à frente do negócio. Mulheres de respeito. Sérias. Pagamento adiantado. Serviço feito. Lavagem e ala que se faz tarde. Não existia fatura, nem contrato escrito, nem ASAE, nem advogados, nem tribunais americanos. Tempos de seriedade. As putas e os clientes, segundo o Carlos Vale Ferraz, eram gente de palavra. Uma noite, esqueceu-se, caída, a carteira aos pés de uma cama de vai e vem e no outro dia, pela manhã, foi lá por ela, entregue intacta por uma patroa que o repreendeu docemente pelo descuido. Hoje, pelas normas do metoo e da lei da chantagem, estaria o Carlos Vale Ferraz a contas com uma acusação de violação. O gajo comeu e fugiu! Até na refrega deixou a carteira! Sai queixa de stress pos-traumático!

Andou por mais de meio mundo o dito Carlos Vale Ferraz, por cidades de cais de marinheiros e de guerreiros sem esperança, de mulheres como os homens a viver a vida pelo lado mais escuro. Foda-se! Alguém conheceu Dilolo, na esquina entre Angola, a Zâmbia e o Congo? E Okavango, no fundo de um milenar lago seco, onde não havia vestígios de autoridade a não ser a da força e a do dinheiro?

O Carlos Vale Ferraz descreve esses locais de putas no livro “A Última Viúva de África”. Sobre Dilolo: Quanto a mulheres basta andar uns vinte quilómetros, atravessar a fronteira invisível na savana e ir à cidade de Dilolo, uma povoação sem bandeira, nem administração, na esquina entre o Catanga, Angola e a Rodésia do Norte para encontrar os bordéis mais sórdidos do mundo. O alferes médico do Comevak escreveu num relatório que nunca viu esquentamentos como os que os nossos soldados trazem de lá, apesar de os obrigar a lavar os tomates com creolina à ida e no regresso!”

Tendo esta experiência de vida – que hoje é designada por vivência e merece punição por machismo – o Carlos Vale Ferraz não acredita que uma mulher desta vida – e é desta vida que se trata, independentemente do preço e das condições da prestação do serviço – se sinta violada no seu local de trabalho e no desempenho da sua actividade. E das que trabalhavam com os filhos a dormir ao lado, nos catres, nos musseques de África e nos bairros suburbanos das cidades europeias já alguém se lembrou de defender? Tudo gente fina, não é, que prestam serviço com tabela de posições, um preço especial aos domingos para posição do missionário!

Escreveu o Carlos Vale Ferraz que não temos de nos orgulhar do que fazemos por dinheiro, mas devemos ser decentes apesar do dinheiro. A indecência não está no que fazemos por dinheiro, mas em trair quem nos paga pelo que acordámos fazer.

Nesta vida de “dinheiro na mão e cu no chão”, como avisavam as meretrizes no tempo em que não eram “incentivadores de clientes “ aos soldados em dia pagamento do pré, é assim: Pagou, andou!

As mamadas decentes são curtas, têm um princípio e um fim.

Nesta actividade não há amores, nem rancores. Nem falsa moral. O resto é que é indecência.

Se nem já nem nas putas podemos confiar, que nos resta?

O tempora o mores

 

com Carlos Vale Ferraz (escritor)

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