As eleições no Afeganistão, um país diversas vezes invadido, destruído, mas nunca conquistado; nem mesmo pelos seus próprios grupos autoritários.
O país rural que expulsou o exército britânico, que teve disputas internas entre comunistas e fundamentalistas religiosos, que foi invadido duas vezes e destruído pela guerra civil e pelo terrorismo. Hoje o Afeganistão possui diversos recursos naturais e está em uma localização geoestratégica, tornando-se uma importante rota comercial e de trânsito. Acentuam-se no país, assim, rivalidades imperialistas e internas.
No dia 20 de outubro, ocorreram eleições. Uma semana antes, um deputado foi assassinado pelo Talibã. No dia, houve um atentado a bomba em Cabul, capital do país. Os Talibã, grupo conhecido por terrorismo, repressão, autoritarismo e violência, que governou o Afeganistão do começo dos anos 1990 até 2001, fizeram os atentados para impedir as eleições, considerando-as “fraudulentas”.
“Não há representatividade nenhuma nessas eleições. O Afeganistão ainda se estrutura por tribos, nas quais seus chefes têm representação reconhecida. Há um parlamento que tenta reproduzir a representação das tribos, que é uma tradição no Afeganistão Jirga”, explica Reginaldo Nasser, professor do Departamento de Relações Internacionais da PUC-SP e pesquisador do INEU (Instituto de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os EUA), em entrevista para o PV.
A situação no país é de fato complexa. Nos seus anos de poder, o Talibã reprendeu duramente os cidadãos afegãos; não havia democracia, nem voto, meninas eram impedidas de estudar e sofriam graves violências caso descumprissem alguma “regra”. Pessoas eram perseguidas, assassinadas e reprimidas. Não que depois da invasão dos Estados Unidos em 2001 tenha mudado muita coisa. Mesmo os americanos tirando o Talibã do poder, a maior parte do território afegão continua sob controle do grupo fundamentalista. E o passado de um governo autoritário e violento não significa necessariamente legitimidade para o novo sistema eleitoral.
“A gente sabe que desde a primeira eleição pra presidente entra sempre alguém apoiado pelos Estados Unidos. Internamente essa eleição não tem significado nenhum”, conta Nasser. A alta cúpula do governo anterior, por exemplo, estava altamente envolvida na comercialização de papoula e de armas. Nasser aponta que são as elites que usufruem do processo eleitoral, usado pelos EUA como propaganda internacional.
A papoula. Planta que dá origem a heroína, droga hoje responsável por uma “epidemia” nos EUA, segundo o Ministério da Saúde norte-americano. O Afeganistão é o maior exportador da planta; seus principais destinatários são a Europa e a Rússia. Dizia-se que o Talibã vivia da renda gerada pela exportação da papoula. Após a ocupação da OTAN, a produção e a venda de papoula não só continuou como aumentou, “revelando a hipocrisia da OTAN e dos EUA”.
O Afeganistão sob ameaça britânica e pré-Guerra Fria
No século 18, a Inglaterra estendeu seu monopólio da produção de ópio da Índia para o Afeganistão. Tentaram derrubar o rei, mas foram expulsos pela resistência afegã; a reação inglesa foi cortar os acessos do Afeganistão ao mar e retirar do domínio afegão as cordilheiras do Hindu Kush.
Em 1907, a Inglaterra assinou, sem o conhecimento do Afeganistão, um tratado com o império Russo que teve como consequência, além da retirada de partes do território, o afastamento dos Pashtuns, integrantes da região desde tempos remotos. “O Afeganistão é dividido em várias etnias, e o Talibã pertence a uma das maiores delas, os Pachtuns”, relata Nasser.
O rei afegão Amanullah declarou a independência do país em relação ao império britânico em 1915 e tentou fazer regressar os Pashtun ao país, mas os ingleses reagiram com mais uma guerra anglo-afegã, impedindo o rei de completar seu objetivo.
O governo de Amanullah tentou seguir o caminho da liberalização. Reforçou o exército, aboliu a escravidão e os trabalhos forçados, defendeu maiores liberdades para as mulheres (desencorajou o uso do véu e a opressão feminina) e introduziu oportunidades educativas para as mulheres.
Em 22 de novembro de 1917, menos de uma semana após a Revolução Bolchevique, o governo soviético denunciou e tornou públicos os tratados assinados pelo governo czarista, anulando os entendimentos entre britânicos e russos acerca do Afeganistão. Em 1920, descobrindo o avanço da unificação pacífica afegã, os britânicos enviaram uma força conjunta de 2 mil ingleses e indianos que mataram milhares de habitantes nas aldeias do noroeste.
Em 1924 ocorreram violentas revoltas dos islâmicos conservadores na cidade fronteiriça de Khost, então dominada pelo exército afegão. A revolta foi uma reação às reformas sociais de Amanullah, particularmente a educação pública e maior liberdades para as mulheres. O historiador afegão Abdul Samad Ghaus escreveu em 1988: “A Grã-Bretanha foi vista como culpada no caso, manipulando as tribos contra Amanullah na tentativa de provocar a sua queda”. Em 1929 as grandes revoltas das tribos conservadoras levaram à queda do rei, com a suspeita geral de que os ingleses estavam por trás disso.
O Afeganistão é um país agrário, pobre, com a maior parte do território árido e composto de desertos ou montanhas. Em 1970, o poder não estava na mão de poderosos, industriais ou empresários nos centros urbanos, mas sim nas mãos de grandes proprietários de terras, verdadeiras “fortalezas rurais”, como chamou o antropólogo e escritor Jonathan Neale em artigo para a Jacobin. Um ou dois senhores dominavam centenas de vilarejos e campos. Havia também camponeses médios, com pequenas terras próprias. “Pastores e trabalhadores do campo eram pagos apenas com o suficiente para comprar três pães naan, um para ser dividido entre dois adultos e um para cada filho. Não era possível comprar nenhum outro alimento”, narra Neale.
A população era extremamente pobre. As mulheres tinham dois vestidos, um ganho quando entrevam na puberdade e outro no dia do casamento. Comia-se carne uma vez por ano. A exploração dessas pessoas “requeria crueldade e violência”, repressão cometida pelos senhores de terra locais e seus guardas. O povo não se atrevia a contrariar as normas, pois temia a repressão do governo. “Mohammed Zahir Shah, o rei de Cabul, e sua família, mantinham o poder favorecendo o senhor de cada distrito, e comandando através deles”. O governo não possuía poder suficiente para cobrar impostos dos senhores e dos camponeses.
Desde 1842, o Afeganistão recebia subsídios estrangeiros, no caso, dos britânicos. Com a Guerra Fria, em 1950, tanto os Estados Unidos quanto a União Soviética passaram a ser os subsidiários. Segundo Neale, a ajuda russa (dois terços) e americana (um terço) pagaram cerca de 80% do orçamento civil e militar. Havia um baixo desenvolvimento econômico ou industrial. A maioria do dinheiro ia para o exército, as escolas e os serviços civis.
Nos anos 1970, muitos jovens entraram em escolas e na Universidade de Cabul. A classe de latifundiários, apesar de dominante, era pequena. A maioria dos formados eram filhos de camponeses médios, que odiavam os senhores de terra e o governo que os patrocinava. “Esses jovens professores e estudantes sonhavam com um Afeganistão desenvolvido e moderno”, conta Neale.
A Revolução de Saur
Ocorreram protestos, manifestantes foram mortos pelas forças do governo. Essa classe média estudada passou a se dividir e entrar em partidos islamistas ou em partidos comunistas. A Irmandade era islamista (que mais tarde fariam a resistência contra os russos); os comunistas estavam divididos entre os Parcham (mais educados, urbanos e moderados) e os Khalk (mais rurais, geralmente Pashtuns).
“Parcham e Khalik tinham muitas mulheres integrantes. A libertação das mulheres era uma questão central para a ideia deles de um mundo melhor”, conta Neale em seu relato.
Em 1972 ocorreu uma grande seca, que causou a morte de milhares de pessoas- especialmente aquelas que não possuíam terra, e não tinham como vende-la para comprar os grãos dez vezes mais caros vendidos pelos soldados do rei. “Depois da fome, ninguém mais aceitaria lutar e morrer pelo rei”.
O primo do rei, Mohammed Daoud, decidiu dar um golpe militar com o apoio da URSS. Não houve oposição. Nas cidades, as universidades e escolas eram locais extremamente politizados. O Parcham argumentava que deveriam tentar trabalhar com Daoud, enquanto o Khalk queria uma revolução.
O governo de Daoud começou a perseguir e matar os comunistas, que planejavam tomar o poder. A chamada “Grande Revolução de Abril” teve sucesso, já que ninguém estava disposto a lutar pelo novo rei. Foram dois os decretos imediatos: a reforma agrária (tirar a terra dos senhores e distribui-la entre os camponeses) e o fim do “pagamento pela noiva”, valor dado ao noivo para a família da noiva a fim de conseguir sua mão em casamento.
As novas leis referentes à terra e à liberdade para as mulheres deixou religiosos locais indignados. Foram alguns mullahs (religiosos islâmicos), moradores de vilarejos pobres e educados o suficiente apenas para recitar o Alcorão, em sua maioria fundamentalistas, contra as liberdades das mulheres, contra o imperialismo cristão das nações europeias e contra o ateísmo da União Soviética. “Estes homens eram tratados com desdém pela elite, mas possuíam um histórico de liderar a resistência popular”, escreve Neale
“O Afeganistão nunca foi conquistado, apenas invadido pelos ingleses entre 1838 e 1842 e depois entre 1878 e 1880. Em ambas as tentativas, a elite afegã aceitou o ouro do invasor e não resistiu. Em ambas as vezes, os mullahs espalharam sua palavra nas cidades e nas vilas, organizando uma revolta popular baseada na jihad que expulsou os britânicos”, diz Neale.
Os fundamentalistas fizeram uma revolta contra o governo, começando pelas montanhas (ponto geográfico mais difícil de combate) e posteriormente chegando nas cidades. Entre os diversos grupos de insurgentes fundamentalistas, estavam os Mujahideen. Sem o suporte necessário da maioria (a Revolução tinha força nas zonas urbanas, mas não nas rurais, maioria do país), o governo passa a usar da repressão para vencer o embate contra os grupos de fundamentalistas armados. Agentes do governo passam a torturar seus opositores, o que gerou mais revolta. Em poucos meses, os comunistas perderam a maioria do território, dominado pelos insurgentes.
Os Parcham passaram a defender uma aliança progressista, o que significava o abandono das propostas a favor das mulheres e da reforma agrária. A ideia fracassou, apesar da aliança possuir apoio da KGB soviética, que diagnosticaram a revolução comunista afegã como “prematura e fraca”, segundo Neale.
Para os Khalk, a aliança significava o fim do sonho de um Afeganistão moderno, sem sexismo e sem pobreza. Resultado: os Parcham foram banidos. Mais tarde, a liderança dos Khalk dividiu-se em dois: aqueles que apoiavam a entrada de tropas soviéticas no país para ajudar a reprimir a revolta dos fundamentalistas, e aqueles que eram contra a intromissão de qualquer país para proteger a soberania do Afeganistão. Optaram pela segunda via. Mas Mohammed Amin, então líder comunista afegão (que assassinou seu concorrente pró-soviético antes que esse o matasse) pediu a ajuda dos Estados Unidos, que lhe foi negada. Depois disso, as pressões da KGB soviética aumentaram. Amin aumentou a repressão, as perseguições e as torturas.
Zbigniew Brzezinski, assessor de segurança nacional do presidente norte-americano John Carter, admitiu, após a guerra contra os soviéticos, que a CIA fornecia ajuda secreta aos Mujahideen seis meses antes da invasão soviética. A intenção dos EUA, ao fornecer essa ajuda, era “atrair os russos para a armadilha afegã”.
A ocupação soviética
Em 24 de dezembro de 1979 os tanques soviéticos cruzaram a fronteira e entraram em território afegão. Foi declarado o fim da Revolução de Saur. Amin foi morto e em seu lugar Babrak Karmal, um Parcham exilado, tornou-se líder do Afeganistão.
No dia em que os soviéticos cruzaram oficialmente a fronteira, Brzezinski afirmou ter escrito ao presidente Carter: “agora temos a oportunidade de dar à URSS a sua Guerra do Vietnã”.
“Houve uma guerra violenta. Os Estados Unidos, Arábia Saudita e Paquistão financiaram os Mujahideen, fornecendo armas, recursos e inteligência de estratégia”, conta Reginaldo Nasser. Milton Bearden, chefe da base da CIA no Paquistão entre 1986 e 1989, declarou na época: “Os EUA estavam lutando contra os soviéticos até o último afegão”.
“Um dos produtos disso foi uma verdadeira jihad contra a URSS: muçulmanos de todo o Oriente Médio foram combater os soviéticos em nome da religião, inclusive árabes (os afegãos não são árabes). Entre eles estava, por exemplo, Osama Bin Laden”, conclui. Bin Laden: o mesmo que duas décadas depois orquestraria o atentado às Torres Gêmeas em Nova York.
Parte do dinheiro dado pelos EUA aos fundamentalistas foi usado para construir escolas que mais tarde tornaram-se instituições de formação para os Talibãs.
Em 1980 começou uma revolta contra a ocupação soviética em cidades no Oeste que logo chegou à Cabul. As estudantes da escola para meninas de Cabul, “ativistas pela libertação das mulheres e apoiadoras do comunismo”, reuniram-se e gritaram para que “os homens do Afeganistão se levantassem contra o invasor”, segundo Jonathan Neale.
O Talibã chega ao poder
A ocupação russa durou quase dez anos, acabou em 1988. “Após a expulsão dos soviéticos, vários grupos insurgentes continuaram batalhando entre si. Houve uma guerra civil, e os Mujahideen, que deram origem ao Talibã, se sobressaíram e chegaram ao poder”, explica Nasser. “O sonho do feminismo e do socialismo estavam mortos”, sentenciou Neale, em seu artigo.
Para Neale, o erro dos comunistas foi “querer impor o socialismo contra a oposição da maioria”. Para ele, “a ideia de que o comunismo necessitava de ser autoritário e aplicado por uma minoria era algo aceito entre radicais nos anos 1960 e 1970”; uma autocrítica feita pelos socialistas de hoje. Além disso, parte dos comunistas fez com que o governo se tornasse completamente subordinado à URSS.
O país passou a ser uma república islâmica. Seguiram-se anos de destruição, que desmembrou a cultura, os direitos humanos e resultou em assassinatos em massa. Hoje o Afeganistão possui alimentação e habitação limitadas e direitos democráticos reduzidos e frágeis. Sucessivas guerras contribuíram com a destruição do país.
Em 2001, a pior delas: a invasão dos Estados Unidos, por ordem de George Bush, após o 11 de setembro. O Talibã foi tirado do poder pelo exército estadunidense. Para Nasser, a relação direta entre os atentados às torres gêmeas e o Afeganistão nunca foi provada: “Dos 18 terroristas um era afegão, e nenhum era talibã. A comunidade internacional entendeu que os EUA poderiam atacar o Afeganistão como legítima defesa. As tropas ocuparam o Afeganistão, estão lá até hoje, mas ainda assim o Talibã tem sobre seu domínio a maior parte do território. Além disso, tem a questão das papoulas”.
A presença norte-americana no Afeganistão causou milhões de mortos, e talvez tenha resultado no aumento da revolta entre os afegãos contra o ocidente. “Os dados do Afeganistão e do Iraque mostram milhões de pessoas mortas, feridas, além de desestruturar esses países. Não teve nenhuma reconstrução até hoje”, lembra Nasser. “Essa questão das eleições é um artificio que os Estados Unidos usam para dizer aos outros países que está havendo uma transição democrática”, conclui.
Por Alessandra Monterastelli | Texto em português do Brasil
Exclusivo Editorial PV (AH) / Tornado
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