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Sábado, Julho 27, 2024

«Erdogan e Teerão querem destruir o Reino da Arábia Saudita»

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

«Claramente, Mohammed bin Salman encarna um despotismo esclarecido que é comparável dos monarcas europeus do século XVIII. Não é um falso reformador: ele anseia promover uma verdadeira mudança, humanismo à parte, bem entendido.»Entrevista de JOHAN-FRÉDÉRIK HEL GUEDJ, publicada por “L’Echo” de Bruxelas, no dia 27 de Outubro de 2018, em tradução autorizada para “O Tornado”.

Deputado europeu até 2009, o português Paulo Casaca cofundou o ARCHumankind e o Fórum Democrático da Ásia do Sul. A partir do “caso Kashoggi”, ele fala-nos do conflito triangular que coloca o Irão e a Turquia contra a Arábia Saudita.

 

Travou conhecimento com um príncipe que teve um destino estranhamente semelhante ao de Adnan Kashoggi…

Com efeito, em 2010, no contexto do lançamento do ARCHumankind, fui apresentado ao príncipe saudita dissidente Sultan bin Turki bin Abdulaziz, na sua residência principesca do décimo sexto bairro de Paris, rodeado por uma miríade de servidores. Em 2015, foi atraído a Marrocos por uma proposta empresarial e, desapareceu. Foi autor de um livro que justificava as razões pelas quais se achava o legítimo sucessor do trono. Entre as histórias que me contou, lembro a de um dos seus irmãos mais velhos que, não sabendo nadar, se afogou quando teria absurdamente decidido lançar-se ao mar do seu iate para nadar até à costa…

Claramente, Mohammed bin Salman encarna um despotismo esclarecido que é comparável dos monarcas europeus do século XVIII. Não é um falso reformador: ele anseia promover uma verdadeira mudança, humanismo à parte, bem entendido. No caso de Kashoggi, ele está perante o Presidente Erdogan que soube utilizar a sua espionagem, transformando-a numa telenovela em episódios diários. Na verdade é um ataque em forma contra a Arábia Saudita, promovido pela “Irmandade Muçulmana”, de que o presidente turco é o representante mais eminente e de que Kashoggi era um seguidor.

Lembre-se que Arábia Saudita é, desde o século XVII, um produto puro do “antigo jihadismo” tribal: o clã Saud aliou-se ao vaabismo fanático, estabelecendo um compromisso entre o clero e o que viria a ser o poder real e que conquistou Meca, já no século XX.

A “Irmandade Muçulmana” é o inimigo do poder saudita?

O Ocidente conhece a “Irmandade Muçulmana” sobretudo na sua variante egípcia, na senda do trabalho da escola de Bernard Lewis. No entanto, desde a década de 1920, temos o movimento do califado na Índia britânica, que surgiu como uma reação à queda do Império Otomano, e que precede o nascimento da “Irmandade Muçulmana”. Em 1927, o teólogo indiano Sayyid Abul Ala Mawdudi foi o primeiro a defender o que eu chamo de “jihadismo moderno” num panfleto essencial, “Al-Jihad fit Islam”. Paradoxalmente, este profundo conhecedor do marxismo aplicou ao Islão a mesma lógica revolucionária, criticando o Islão nacional em favor de um islamismo global. Tendo em vista uma Índia totalmente muçulmana, ele opôs-se à partição de 1947. Em 1963, em Meca, vamos vê-lo a ensinar um certo… Ayatollah Khomeini.

A história oficial iraniana quer convencer-nos que entre 1951 e 1953, durante a revolução nacionalista de Mosaddegh, Khomeini se teria retirado para Qom. Na realidade, ele esteve no centro dos acontecimentos políticos, o que o Ocidente não quer ver: não retirado em Qom mas envolvido no derrube de Mossadegh, orquestrado com os britânicos e com o Xá. O clero concordou com Mosaddegh na nacionalização do petróleo, mas não com a liberalização do regime ou com o fim da tradição da adjudicação da Presidência do Majlis ao clero. Os meus amigos iranianos salientam que os escritos indigentes de Khomeini nunca foram publicados pelo regime; mais activista que teólogo, a sua nomeação como “Marja-i-Taqlid” foi feita apenas para o proteger politicamente. Exilado na Turquia, em 1964, indispôs os herdeiros laicos de Ataturk que o expulsaram para o Iraque, onde o Partido Baath, longe de ser o partido dos sunitas, perseguindo o xiismo, como é retratado, apoiou o clero xiita contra o partido comunista, cuja base era urbana e xiita. É somente após o esmagamento do partido comunista no princípio da década de 1970 que Saddam se voltou contra o clero xiita.

Em face deste revolucionário jihadismo de Estado, qual é o lugar da Arábia Saudita?

De acordo com a fórmula de Gramsci que eu adaptei do comunismo para o jihadismo, a Arábia Saudita enfrenta um jihadismo orgânico que quer o poder total. Com Khomeini à frente do Irão dá-se o assalto à grande mesquita de Meca, de Novembro a Dezembro de 1979, que quase consegue derrubar a monarquia.

A rivalidade de turco-iraniana para a hegemonia do Islão é muito antiga. No Irão o xiismo tornou-se a religião do Estado só com a dinastia safávida, iniciada por sinal por um nativo do Azerbaijão, de língua turca, e a opção xiita foi feita com o objectivo de disputar a hegemonia otomana, sunita, sobre o Islão. Em síntese, como o sunismo estava totalmente nas mãos otomanas, os safávidas optaram pelo xiismo como instrumento geopolítico. É a geopolítica que comanda a opção xiita e não o contrário. É por isso que os ‘puristas’ do xiismo iraquiano falam do seu xiismo como “Jaafari” em oposição ao “xiismo safávida” (dos iranianos).

Pelo seu lado a Arábia Saudita, fundada como Estado em 1932, é uma antiga colónia turca que nunca foi um epicentro civilizacional como o Império Otomano ou o Império Persa. O reino contou com duas vantagens: o poder do petróleo e o poder simbólico de “Meca”. Na eclosão da guerra no Afeganistão, que não começou em 1979, mas em 1973, com a queda da monarquia em Cabul, já se assiste à rivalidade entre a Arábia Saudita e o Irão no financiamento da Jihad afegã. Para o Irão, a exportação de jihadismo, como o fez para o Iraque, a Síria ou o Iémen, é um objectivo mais urgente do que a destruição de Israel, que, neste momento, é usado para alimentar o fanatismo no mundo muçulmano. Assim, a aliança de Teerão com a Venezuela é parte de um objectivo de dominação da produção mundial. Por coincidência, o mapa petrolífero saudita coincide quase exactamente com o mapa de implantação do xiismo.

Nessa rivalidade entre a Arábia Saudita e o Irão, qual o papel da Turquia?

Erdogan conquistou o poder absoluto no seu país, com um cheque em branco da Europa, que queria ver nele um ‘democrata muçulmano’; uma espécie de democrata-cristão europeu. Pura ilusão! Por exemplo, em 2010, uma revisão constitucional permitiu-lhe concentrar o poder nas suas mãos, o que o Serviço Europeu para a Acção Externa se apressou a aprovar como um passo para a normalização do regime. Enquanto deputado europeu, eu tinha já criticado fortemente esta credulidade, e os nossos amigos gregos demonstraram ser mais lúcidos e saber mais sobre a Turquia do que todos nós!

O que pretende Erdogan com o seu jogo de informação sobre o assassinato de Kashoggi?

Como pode Erdogan, campeão da repressão dos jornalistas turcos, fazer-se passar pelo paladino da liberdade de imprensa na Arábia Saudita? Lembremos que numerosos opositores ao regime de Teerão, refugiados em território turco, desapareceram com o silêncio e a bênção de Ancara. Há três anos que a Turquia e a Arábia Saudita estão em guerra aberta, que se manifesta através do apoio turco à “Irmandade Muçulmana” e à Jihad na Síria. O egípcio Youssef al-Qaradhawi é o principal líder espiritual da “Irmandade Muçulmana”, mas Erdogan é a sua figura política cimeira internacional. A aliança contranatura entre Ancara e Moscovo na Síria explica-se aqui: a Turquia quer um aliado importante contra Riade e os poderes árabes que enfrentam o islamismo, como o Egipto.

Se Erdogan demonstra tanto empenho em espetar o assassínio de Kashoggi na ferida saudita, é porque este era um instrumento essencial na luta da “Irmandade Muçulmana” contra a Monarquia. Kashoggi não era o defensor exemplar dos direitos humanos perante Riade que a imprensa ocidental publicita. Este assassínio é odioso, mas o cenário da rivalidade geopolítica entre Ancara, Teerão e Riade estão para lá deste cenário simplista. O caso “Kashoggi” confirma a vontade do Irão e da Turquia em celebrar uma aliança para eliminar o poder saudita. A Turquia gostaria que Meca voltasse a ter um poder neutro como teve durante um milénio com os Hachemitas.  O Irão gostaria de ter o controlo sobre o petróleo e sobre Meca. Enfim, o recente projecto americano de uma “OTAN árabe”, reunindo o Egipto, a Jordânia, os Emiratos e a Arábia Saudita, é uma grande ameaça que aproximou Ancara de Teerão.

 

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