A homenagem que se faz em 20 de novembro, Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, precisa sair do papel e se tornar realidade – esta é a necessidade fundamental da democracia no Brasil.
Há um livro com páginas de aço em Brasília, guardado no Panteão da Pátria Tancredo Neves, onde estão relacionados, sob o título “Livro dos Heróis e das Heroínas da Pátria”, os nomes de mais de 43 personagens que o Brasil assim reconhece oficialmente. Lá estão registrados nomes da estatura de Tiradentes, Frei Caneca, Sepé Tiaraju, D. Pedro I, José Bonifácio, Zuzu Angel. A maioria está registrada individualmente; outros em grupo, como os escravos e ex-escravos que lideraram a revolta dos Alfaiates, na Bahia, no final do século 18. Há também heróis anônimos, como os “Soldados da Borracha” – que foram à Amazônia extrair o látex como parte do esforço de guerra de 1939 a 1945. São heróis que os brasileiros reverenciam.
Desde 21 de março de 1997 este livro enobrecedor inclui o nome de Zumbi dos Palmares, o maior líder da luta escrava pela liberdade no Brasil. Ele morreu em combate em 20 de novembro de 1695, enfrentando as tropas coloniais enviadas para destruir o quilombo dos Palmares.
Aquela data foi adotada pelo movimento negro desde 1978, como Dia da Consciência Negra e, em 2003, incorporada ao calendário escolar. Em 2011, foi oficializada como Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, sendo feriado em mais de mil municípios e vários estados.
A homenagem a Zumbi lembra o esforço cotidiano dos brasileiros contra a discriminação racial e pela igualdade entre todos, independente da cor da pele – igualdade cuja conquista é essencial para a democracia brasileira.
O Brasil nasceu, no século 16, dividido entre uma minoria de senhores de terras e escravos, de origem européia e pele clara, e uma imensa maioria de trabalhadores escravizados, ou semi-escravizados, de pele morena e originários da terra, ou de pele negra e seqüestrados na África. A eles foi imposto o fardo do trabalho que produziu a riqueza do país que se formou ao longo daqueles mais de três séculos (terminados em 1888 quando a Lei Áurea proibiu a escravidão).
Situação de subalternidade e ausência de direitos em que os ex-escravos, então libertos, foram mantidos depois da Abolição de 1888. Foram relegados aos papéis mais ínfimos da sociedade, jogados à margem do processo produtivo, nas periferias das cidades, considerados “vadios” e vistos como potenciais criminosos. Sem terra para trabalhar, com ocupações irregulares, precárias e mal pagas. Morando nas periferias sem assistência pública de saúde, educação, segurança, moradia e saneamento, com todas as mazelas que permanecem mesmo tendo passados 130 anos desde o fim da escravidão.
Uma das piores páginas do descalabro a que os descendentes de Zumbi são submetidos é escrita a bala, pela repressão, para mantê-los aquietados e submissos nos lugares a eles destinados.
Dados de 2017, que constam do Atlas da Violência, elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) pintam com cores terríveis esta realidade que envergonha o país: 71 em cada 100 assassinatos são cometidos contra negros jovens e pobres. Há uma verdadeira guerra civil não declarada cujas vítimas – como desde o passado mais remoto – são estes brasileiros de pele escura.
Esta situação já era prevista há pelo menos três décadas por estudos que alertavam contra os cinturões de pobreza nas periferias de cidades como o Rio de Janeiro. Desde então já havia quem sugerisse a militarização da ação contra essas populações e os “menores abandonados”, vistos como socialmente perigosos.
Essa lógica de “contenção” militarizada da população pobre prevaleceu nos anos seguintes, levada a cabo pelas polícias militares.
Os números divulgados pelo Atlas da Violência retratam essa realidade mortífera reiterada ano após ano. Entre 2005 e 2015, apesar das medidas de inclusão social dos governos Lula e Dilma, ocorreram 318 mil assassinatos nesta faixa social que está na base da sociedade. O risco de um jovem negro ser assassinado é 2,5 vezes maior do que os demais cidadãos.
Trata-se de um cenário dantesco que piorou desde a ascensão da direita ao governo com o golpe de 2016, como se pode constatar pela mera leitura dos jornais e o aumento do número de manchetes que anunciam chacinas de gente negra e pobre pelo país afora.
Esta situação tende a piorar após 2019, com a posse do direitista Jair Bolsonaro na presidência da República. Ele anunciou, desde a campanha eleitoral (no Jornal Nacional, em agosto de 2018, por exemplo), a intenção de apoiar policiais que matarem em ação: “aquele que matar com dez ou trinta tiros cada (suspeito)” deve ser condecorado, disse.
Há um genocídio da juventude negra no Brasil. E não se trata da freqüente denúncia feita pelo movimento negro. Ela aparece nos relatórios de duas Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs) do Congresso Nacional, feitas em 2015. A conclusão delas é amarga: o Brasil é uma nação racista e violenta.
Esta é a contradição atroz que exige reflexão neste 20 de novembro – Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra – quando a homenagem feita a Zumbi vai se tornar realidade no Brasil?
O avanço da direita, observado nos últimos tempos, reforça a urgência da democratização efetiva do Brasil, na qual o respeito às diferenças (sobretudo étnicas) seja seu sesteio simbólico mais forte. Democratização que supere a realidade cruel da cidadania tratada a tiros de fuzil. É urgente romper o silêncio da sociedade, principalmente o das camadas de renda alta e maior prestígio social, que parecem assistir a essa violência como a uma rotina ou o custo da luta contra a criminalidade. É urgente transformar a homenagem a Zumbi em realidade prática e existencial entre todos os brasileiros.
Texto em português do Brasil
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