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Domingo, Dezembro 22, 2024

O grevismo oligarca

Carlos de Matos Gomes
Carlos de Matos Gomes
Militar, investigador de história contemporânea, escritor com o pseudónimo Carlos Vale Ferraz

A actual onda de greves de funcionários públicos percebe-se à primeira vista – tempo de orçamento é ocasião de abocanhar a melhor parte e vésperas de eleições atiçam contestações. É o grevismo trabalhista, num contexto de luta partidária e eleitoral. Tem como finalidade abater ou desgastar um governo antes de eleições, faz parte do jogo. Mas as greves de juízes e enfermeiros são de outro tipo político e civilizacional, têm como objectivo não declarado subverter um regime e inserem-se na actual onde ideológica de populismos que se desenvolve na Europa e Américas, que recria as que há exactamente um século conduziram ao nazismo e ao fascismo. Aquilo que foi apresentado como uma Nova Ordem! Inserem-se, mesmo que modestamente, num ciclo de desastres civilizacionais.

Estes movimentos grevistas de grupos profissionais com um papel especial na sociedade e na prestação de serviços do Estado colocam em causa a organização do Estado e os poderes que a sociedade nele delega. Visam apropriar-se do poder democrático dos cidadãos em seu proveito.

As democracias liberais assentam num contrato entre direitos e deveres, entre o bem particular e o geral. Fundam-se no princípio ético de que o bem particular não pode colocar em causa o bem comum, ou sobrepor-se a ele. E assentam ainda na soberania dos cidadãos através de órgãos de poder político eleitos por voto universal. Estas greves são contra este tipo de organização política, o menos mau de todos. Pretendem estabelecer o poder de oligarquias, neste caso corporativas. Um “governo de poucos”, em que um pequeno grupo controla as políticas sociais e económicas em benefício de interesses próprios.

O populismo, uma das formas de impor um regime de ditadura (a outra é a força bruta), desenvolve-se utilizando a exploração do sentimento de conquista ou de defesa de um estatuto privilegiado para um grupo particular, invocando e falaciosamente a lei geral dos direitos para avocar direitos exclusivos. É o caso do grevismo dos enfermeiros e dos juízes.

As greves de “longo curso” de juízes e de enfermeiros rompem, como o trumpismo ou o bolsonarismo, com um contrato social e têm por objectivo alterar um regime. São um ato golpista que a opinião pública democrática sente pudor em distinguir e, menos ainda, enfrentar, porque ela se apresenta com a lenga-lenga embaladora e mistificadora de uma “justa luta de trabalhadores pelo direito à melhoria das suas condições de trabalho” e sempre, sempre a bem dos ditos utentes!

Ora, o grevismo destes grupos corporativos não é uma manifestação legítima do direito à greve. Não se trata exercerem do direito à greve, trata-se sim da utilização de um poder – no caso dos enfermeiros de vida ou de morte e no caso dos juízes de garantir a aplicação da lei em nome de uma certa justiça, que inclui a possibilidade de retirar a liberdade, para obter vantagens particulares que excedem em muito o que os outros membros da sociedade usufruem. Trata-se de instaurar um regime político de excepção que exerça o poder em nome de uma clique oligárquica que governe de modo a assegurar-lhes a acumulação de riqueza pela força.

Juízes e enfermeiros afirmam que têm o direito a melhorias nas suas retribuições. É uma falácia. Todos os membros da sociedade o têm, do sem-abrigo ao distribuidor de pizzas precário com a sua motoreta, do reformado à caixa de um supermercado. Todos têm direito a serem tratados quando estão doentes, a serem julgados em tempo e a não terem um enfermeiro, o último elo que o liga à vida, que lhes responda que só o trata se o Estado, que age em nome de todos, lhe pagar mais do que ao electricista que assegura a energia, ou ao motorista que o transporta ou à cozinheira que prepara a refeição. Ou a enfrentar um juiz que se recusa a aplicara lei se não for aumentado! Face à lei todos os grupos profissionais e todos os cidadãos em geral têm direito a uma vida digna e a justo pagamento. O que os populistas afirmam  é que o seu direito tem o direito de se sobrepor ao direito dos outros grupos e de impor a sujeição em vez de promover a cooperação. A definirem por si o que para si é justo e digno.

O direito à greve é um direito político que resulta de um contrato social, não é um direito natural. Um dado Estado (o representante político da sociedade), em determinados regimes políticos, entende que grupos laborais – classes profissionais ou de empresas – têm o direito legal de se recusarem colectiva e organizadamente a executarem as suas tarefas. O Estado exige que essa manifestação não ponha em causa os direitos superiores, o da vida, o da justiça, por exemplo. Os membros das organizações sindicais, por sua vez, aceitam a regulação do seu direito à greve e a não colocar em causa os direitos fundamentais que asseguram a vida em sociedade.

É este contrato do direito à greve que vigora nos regimes de democracia liberal que greves como as dos enfermeiros e as dos juízes violam. Estas greves não são contra o Estado-patrão (já de si uma figura anómala), mas sim contra o regime que o regula, porque impõem um poder particular. Impõem que um direito menor se sobreponha ao direito maior.

Este grevismo contem a perversidade do populismo. É demagógico: assenta na ideia que todos podem ter tudo e que têm mais os que estão em posição mais forte, porque esses são os melhores. É totalitário: impõe o poder de uma minoria a um todo.

Mas, acima de tudo, é ignóbil por exigir que direitos subordinados se sobreponham a direitos essenciais. O receio de acusação de “Ai que o governo e o Estado estão a colocar em causa o sagrado direito à greve!” não pode tolher a denúncia do veneno que estas greves políticas introduzem no regime democrático.

 

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