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Domingo, Dezembro 22, 2024

Todos os caminhos vão dar ao Orçamento do Estado

Nuno Ivo Gonçalves
Nuno Ivo Gonçalves
Economista, Mestre em Administração e Políticas Públicas, Doutor em Sociologia Política. Exerceu actividade em Gestão Pública, Recuperação de Empresas, Auditoria e Fiscalização e foi docente no ISE e no ISG. Investiga em História Contemporânea.

Depois de um bombardeamento noticioso segundo o qual as propostas de alteração na especialidade ao Orçamento do Estado para 2019, emanadas quer do próprio Partido Socialista, quer dos partidos à sua esquerda e à sua direita eram cerca de mil – mais precisamente 993 – , e representavam em perda de receita ou em aumento de despesas 5, 7 mil milhões de euros, tudo sossegou com uma “escassas” 217 aprovadas, as quais em diversos casos até vão permitir aumentos de receita. Manipulação de valores? Possivelmente, não vimos os detalhes desta estimativa divulgados. E, de qualquer forma, por que razão a Assembleia da República parece concentrar em três dias de votação o que é incapaz de discutir e votar no resto do ano?

O que se vota na Lei do Orçamento do Estado?

Deveriam votar-se regimes de receitas – mantendo em vigor os já existentes, alterando-os ou criando novas receitas – e uma previsão do seu montante, na parte relativa ao Orçamento do Estado propriamente dito, indicativa quanto à generalidade das receitas, mas vinculativa quanto ao recurso ao crédito – e limites superiores das despesas do Orçamento do Estado propriamente dito, nos últimos anos acompanhados por frequentes modificações dos regimes de realização de despesas, designamente em matéria de pessoal, e em geral tudo o que tenha impacto orçamental, sob a forma de “autorizações legislativas” ou de “medidas directas”. Deixando até espaço para a inclusão dos chamados cavaliers budgétaires, isto é, de medidas completamente estranhas ao orçamento mas que nele são incluídas por facilidade de aprovação ou como condição de certos interlocutores para deixar passar medidas orçamentais propriamente ditas.

Dispositivos que reforçam o papel do Orçamento do Estado

Com carácter mais significativo, temos:

  • a circunstância de as autorizações legislativas concedidas com a aprovação da Lei do Orçamento do Estado não caducarem com a exoneração do Governo ao qual foram concedidas – o que começou por ser uma tese do juiz conselheiro do Tribunal Constitucional Cardoso da Costa, uma vez que seriam indispensáveis à execução do Orçamento do Estado anual, e veio a ser acolhido em sede de revisão constitucional;
  • a existência do mecanismo conhecido como lei – travão, impossibilitando, fora do processo anual relativo à aprovação do Orçamento do Estado, a apresentação de iniciativas que se traduzam na redução de receitas ou no aumento de despesas, num caso e no outro,  previstas no Orçamento vigente;
  • em caso de recusa ou de não aprovação tempestiva do Orçamento  prorrogação dos regimes de autorização de cobrança de receitas constantes do Orçamento anterior e autorização de execução por duodécimos de um orçamento de despesa equivalente ao do Orçamento anterior;
  • muito recentemente, reconhecimento de valor reforçado às Leis do Orçamento anuais (valor reforçado que anteriormente era apenas reconhecido às Leis de Enquadramento).

Nestas condições, percebe-se que os grupos parlamentares tentem aproveitar ao máximo a sua única possibilidade de proporem alterações significativas em matéria de receitas e de despesas, ou com impacto nestas, que ocorre na discussão na especialidade da proposta de lei do Orçamento já aprovada na generalidade. Cabe aliás dizer que na Constituição de 1933 vigorava uma versão muito mais restritiva da lei-travão, uma vez que, por um lado, as Leis de Meios não eram quantificadas e que, por outro, era vedado aos deputados à Assembleia Nacional, na própria discussão e votação das Leis de Meios, proporem aumentos de despesa ou supressão de receitas criadas por diplomas preexistentes.

Diria mesmo que, neste contexto, serem propostas apenas 993 alterações denota falta de imaginação ou de iniciativa…

Problemas envolvidos na propositura de alterações na especialidade

Por estranho que possa parecer, os grupos parlamentares que suportam os Governos também propõem alterações em sede de votação na especialidade da proposta de lei do Orçamento do Estado,

  • como forma de concretizar acordos entretanto celebrados entre o Governo e outros interlocutores;
  • como forma de manifestar a sua autonomia.

No entanto também pode suceder que as propostas que apresentam visem desbloquear soluções perfilhadas pelos Primeiros-Ministros e Ministros das Finanças mas que seria complexo fazer passar formalmente em Conselho de Ministros ou em concertação com alguns dos outros Ministros. Tivemos o exemplo, com Cavaco Silva:

  • em propostas emanadas do grupo parlamentar do PSD no sentido de retirada automática da autonomia financeira a organismos que por força da então aprovada Lei de Bases da Reforma da Contabilidade Pública iriam tendencialmente perdê-la num processo que normalmente envolveria uma reestruturação negociada caso a caso;
  • idem, numa proposta de abertura à celebração de contratos individuais de trabalho para pessoal menos qualificado..

Mais recentemente vimos os grupos parlamentares do PSD e do CDS introduzirem na lei do Orçamento do Estado de 2012 uma proibição geral de promoções que não fora negociada pelo seu Governo com os sindicatos da função pública e que no ano seguinte teve de ser revertida no que se referia aos docentes do ensino superior que realizassem o doutoramento, o qual lhes garantia a vinculação como professores auxiliares, no universitário, ou como professores adjuntos, no politécnico.

A apresentação de propostas de alteração na especialidade é susceptível de envolver também, sobretudo quando os seus autores não beneficiam no momento de ligações, formais ou informais, com o Governo ou a Administração Pública, alguns melindres:

  • por um lado, a quantificação dos efeitos financeiros de eventuais propostas de supressão – ou não criação / não modificação de regime de determinadas receitas –  ou de realização de despesas não será pacífica, sendo que a melhor solução talvez fosse cometer à Unidade de Apoio Técnico-Orçamental (UTAO) do Parlamento a fixação do seu valor oficial, em contacto com a Administração Pública que teria a obrigação de lhe dar resposta e sem a intervenção, não exactamente desinteressada, do Governo;
  • por outro, a informação sobre a abrangência das medidas e a sua correcta formulação jurídica pode não ser a melhor.

Para não falar da formulação de uma das medidas aprovadas há dias – não quero criar dificuldades aos seus destinatários – recordo que na votação na especialidade da proposta de lei do Orçamento de 2013, tendo sido consensualizado que seria o Grupo Parlamentar dos Verdes que iria propor a correcção da medida que no ano anterior atingira os doutorandos, a proposta de alteração apresentada por aquele Grupo e votada em Comissão – abrangia os assistentes universitários (deixando de lado os assistentes convidados) e os equiparados a assistentes do Politécnico, deixando de lado os assistentes.

Entretanto a votação do Orçamento do Estado para 2019 trouxe uma situação creio que inédita, com a inclusão directa de três vacinas no Plano Nacional de Vacinação. O nosso Orçamento ainda é muito um orçamento de meios, que fixa os limites superiores das despesas, e não um orçamento-programa, que fixa as actuações. Como as vacinas estão no mercado, devidamente autorizadas, a questão era essencialmente, ou assim pareceu aos deputados, financeira.

A seguir, em todo o caso.

Um quadro legal estável vs  um reforço da disciplina orçamental

Num dos Orçamentos que apresentou em tempo de Governo minoritário Cavaco Silva fez uma “fita” semelhante à de António Costa quando a votação na especialidade agravou muito ligeiramente o défice implícito no Orçamento já aprovado na generalidade.

Já tem sido proposto que a Lei de Enquadramento Orçamental torne este défice implícito vinculativo para efeitos de admissibilidade das votações na especialidade, mas por um lado talvez tal estipulação não seja constitucional, por outro a manipulação do valor do défice da proposta de lei (descontando-lhe as cativações) e a dificuldade de estabelecer uma avaliação juridicamente vinculativa dos efeitos financeiros das propostas de alteração dificultam que se vá por essa via.

Existe aliás sempre uma escapatória que as oposições já têm utlizado, que é a de apresentar projectos de lei que só produzem efeitos financeiros no princípio do ano seguinte, mas a evolução em termos de construção de uma  programação financeira plurianual crescentemente vinculativa por razões de ordem externa também tenderá a restringir essa possibilidade.

De forma que poderemos facilmente ser empurrados para situações – limite:

  • ou um Governo minoritário é insuportavelmente desfeiteado pelo Parlamento na votação do Orçamento do Estado restando-lhe pedir a  declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade da Lei que o aprovou ou ao Presidente da República o veto do Decreto da Assembleia que lhe é enviado para promulgação;
  • ou o Parlamento decide tudo a contento do Governo na altura da votação do Orçamento e passa o resto do ano a votar “Recomendações”.

A nossa experiência das últimas décadas, em que têm predominado Governos maioritários, tem-nos colocado mais perto deste segundo cenário.

 

Sábado de 29.11 a 5.12.2018.
Na prática se o Governo informar que a aprovação de uma determinada iniciativa legislativa tem um impacto que pode ser acomodado, a iniciativa pode continuar a sua tramitação, no entanto o actual governo invocou esta disposição em conjunto com uma alegada violação do princípio da igualdade para tentar obter a declaração de inconstitucionalidade de uma decisão do Parlamento que em 2017 obrigou a pôr a concurso postos de trabalho de professores que só permitiriam colocações em tempo parcial.
Inclusive, como se viu recentemente, a sua autonomia tauromáquica.
Neste caso, não tenho absoluta certeza de que tenha havido prévia combinação com o Governo, aliás a autorização incluída na lei do Orçamento não chegou a ser aproveitada.
Presto aqui a minha homenagem ao então deputado Michael Seufert, do CDS-PP, que subscreveu  a proposta para o OE 2012 e que não sossegou enquanto no ano seguinte o erro não foi corrigido.
O erro de origem não era dos Verdes, mas da Federação Sindical que presumivelmente estava na origem da formulação da proposta de alteração…
Reitero a minha homenagem ao deputado Michael Seufert, que, alertado, conseguiu evitar este novo disparate.

 

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