Diário
Director

Independente
João de Sousa

Segunda-feira, Novembro 4, 2024

Lei de Bases da Saúde: Salvar o SNS ou embrulhar o «Sistema» em celofane?

Teresa Gago
Teresa Gago
Médica dentista; desempenhou diversos cargos autárquicos, incluindo o de vereação em Cascais entre 2013-2017. Dirigente Associativa do Movimento Não Apaguem a Memória e membro da Plataforma Cascais-movimento cívico. Militante do PS.

“A ênfase colocada no conceito sistema de saúde pretende desvalorizar o SNS”
(PS no debate da AR em 1990)[1]


A Lei do Serviço Nacional de Saúde (Lei n.º56/79), conhecida como a “Lei Arnaut”, foi substituída, em 1990, pela Lei de Bases da Saúde. Nessa ocasião o propósito do PSD/CDS foi incrementar a iniciativa privada à custa (e às custas) do SNS recorrendo, para tanto, à ambiguidade do conceito de “sistema de saúde”, como, aliás, foi explicado:

com esta concepção de sistema de saúde estamos a inverter a filosofia subjacente à Lei do Serviço Nacional de Saúde[2].

Com efeito, a denominada Lei de Bases subverteu deliberadamente o SNS enquanto instrumento público de protecção da saúde. A intenção do PSD/CDS foi manifesta e clara:

acabar com o crescimento do Serviço Nacional de Saúde, como meio de satisfação do direito à saúde, e passar para entidades não públicas a satisfação desses cuidados, pagando-lhes os custos dos seus serviços”[3].

Escusado será referir que os grandes grupos económicos da saúde aplaudiram esta perspectiva de investimentos sem risco e com lucro certo. O negócio antevia-se florescente.

Hoje percebe-se claramente qual foi a táctica da direita em 1990:

  1. impor, com a sua maioria parlamentar, uma Lei de Bases da Saúde vaga quanto ao SNS;
  2. confiar ao governo que legislasse (Decreto-Lei do “Estatuto do SNS”) os aspectos estruturantes do SNS, entre os quais o travejamento da estrutura orgânica e
  3. inserir “princípios” que contribuíssem para confundir e estimular a licenciosidade entre os sectores público e o privado, nomeadamente a gestão privada de unidades de saúde do SNS (as PPP) e o financiamento dos grandes grupos económicos da saúde por via do orçamento de Estado.

No actual momento, quando se debate uma nova Lei de Bases da Saúde, parece importante acentuar que é tão fundamental “separar águas” entre os sectores público e privado (financiamento, gestão e prestação), como estabelecer alicerces resilientes para o SNS. Importa que, na nova Lei de Bases da Saúde, esteja contemplada a arquitectura organizacional do SNS, definindo-se os órgãos essenciais, as competências vitais e um esboço circunstanciado das formas de participação dos cidadãos e dos profissionais.

A omissão de tais princípios organizacionais, na futura Lei de Bases, poderá indiciar o intento de instituir uma lei-quadro invertebrada, propositadamente à mercê da ‘mão invisível’ do clube permanente dos interesses económico-financeiros. Comprovadamente, esta via de “desossamento” (por acção ou omissão) do SNS tem correspondido a um dos eixos de persistente intervenção da direita:

  • Ainda em 1982 o Governo de Pinto Balsemão, a pretexto “do desenvolvimento da política de regionalização da saúde” (Dec-Lei nº254/82) propôs a “revogação de toda a parte institucional e organizatória da lei , a qual ficou reduzida a um pequeno conjunto de princípios materiais orientadores da política de saúde e dos serviços de saúde em geral, mas não do Serviço Nacional de Saúde, pois esse deixou de existir [4].

 Naquela altura a intenção do governo foi gorada por intervenção do Tribunal Constitucional que a caracterizou como “mais ou menos ‘clandestina’ e a despropósito[4]. 

  • Porém, mais recentemente, em 1990, o então Ministro da Saúde, em estreita consonância com a referida ‘mão invisível’, esclareceu que na Lei de Bases da Saúde houve o cuidado de não pormenorizar[5] porquea cada momento da evolução histórica cabe a responsabilidade de exprimir legislativamente os credos ideológicos, as convicções políticas, os princípios de governação (…)” (Arlindo de Carvalho, 1990)[5].

Nessa altura os intentos foram realizados, pese embora os protestos dos defensores do SNS.

Ao excluírem-se da Lei de Bases da Saúde os aspectos estruturantes do SNS criaram-se (e criam-se) as condições para que o “Estatuto do SNS” ficasse (e fique) refém de circunstâncias conjunturais e das diversas “permeabilidades” governativas. Recorde-se que o ‘Estatuto’ sofreu 15 alterações em 22 anos. Consequentemente parece razoável defender-se que a racionalidade organizacional que confere estruturação e operacionalidade ao SNS se encontre salvaguardada na nova Lei de Bases da Saúde reservando-se para um seu Estatuto normas de especificação e de pormenorização de funcionamento.

Apenas através de uma Lei de Bases da Saúde consistente estará o “Estatuto do SNS” salvaguardado da “arreigada tradição de uma intervenção constante e discricionária do Ministério da Saúde na gestão do SNS” (Sakellarides, 2018, pg. 134)[6]. A desgovernamentalização, com a consequente emancipação das influências voláteis e desestabilizadoras de uma gestão ditada por “modas” ou “credos ideológicos”, deverá estar prevista na legislação da Lei de Bases.

Será, certamente, perigoso se os defensores do SNS não obstarem às manobras daqueles que querem destruir a coesão do serviço público de prestação de saúde. Concomitantemente a nova Lei de Bases da Saúde não pode ser uma mera colecção de disposições gerais que apenas valem como princípios (de tradução prática relativa) ou normas genéricas aplicáveis aos serviços de saúde ou ao conjunto das prestações de saúde. A nova Lei de Bases não deverá ser apenas o repositório teórico dos valores da ética republicana aplicada à saúde, é indispensável que os concretize. Que operacionalize, de facto, o SNS.

E o PS, o que fará?

Será consequente com o legado de António Arnaut e com as posições que defendeu em 1990?:

Lembremo-las:

  • Nesta importante área, o Governo optou ainda pela habilidade de· omitir a forma de constituição e de designação dos órgãos que compõem a estrutura orgânica do SNS, tudo indiciando (…) que o Governo vai também nesta matéria manter a fórmula errada”?[7]
  • Será afinal o Governo que reserva para si a direcção exclusiva do SNS, distribuindo os recursos por critérios da sua conveniência”?[7]
  • o Governo «pisca o olho» à iniciativa privada, abrindo as portas à privatização injustificada de estabelecimentos oficiais e oferecendo-lhe condições de vantagem em relação ao sector público, na corrida ao magro orçamento da saúde”.[7]

Afinal, o PS vai contribuir para salvar o SNS ou vai apenas embrulhá-lo no celofane do “sistema de saúde”?

 

[1] Rui Cunha (PS). Diário da Assembleia da República de 23 de Fevereiro de 1990, Iª Série, n.47, pg. 1646.
[2] Arlindo de Carvalho (PSD). Diário da Assembleia da República de 23 de Fevereiro de 1990, Iª Série, n.47, pg. 1643.
[3] Luís Filipe Menezes (PSD). Diário da Assembleia da República de 23 de Fevereiro, Iª Série, n.47, Pg. 1661.
[4] Tribunal Constitucional (1984). Diário da República n.º 104/1984, Série I de 1984-05-05, pg 1458.
[5] Arlindo de Carvalho (PSD). Diário da Assembleia da República de 23 de Fevereiro de 1990, Iª Série, n.47, pg. 1642.
[6] Constantino Sakellarides (2018) O Serviço Nacional de Saúde: o futuro aos 40 anos. In O Referencial. Revista da Associação 25 de Abril, pg 130-136.
[7] João Rui de Almeida (PS). Diário da Assembleia da República de 23 de Fevereiro, Iª Série, n.47, Pg. 1672.

 

Receba a nossa newsletter

Contorne o cinzentismo dominante subscrevendo a Newsletter do Jornal Tornado. Oferecemos-lhe ângulos de visão e análise que não encontrará disponíveis na imprensa mainstream.

Receba a nossa newsletter

Contorne o cinzentismo dominante subscrevendo a nossa Newsletter. Oferecemos-lhe ângulos de visão e análise que não encontrará disponíveis na imprensa mainstream.

- Publicidade -

Outros artigos

- Publicidade -

Últimas notícias

Mais lidos

- Publicidade -