A anedota é antiga, de antes dos testes de ADN e da procriação artificial, uma jovem engravidou e deu à luz um filho depois de uma noite de bacanal e sexo tipo bufet. Não havia pai responsável. A criança foi considerada “filha da malta”.
Também não há responsáveis para o resultado do referendo que deu origem ao Brexit. É “filho da malta”. Dos eleitores cada um por si. Um voto num referendo é como uma folha de papel higiénico, usa-se e deita-se fora. Quem o utiliza não é responsável pelo que lá colocou. Vai desaguar sabe-se lá onde.
O conflito do qual os ingleses não sabem e não têm como sair é que a “malta” é governada por um governo que responde perante os deputados eleitos para um parlamento e não perante a “massa da malta”. Nos referendos os eleitores não delegam a sua representação nem as suas responsabilidades num deputado que os represente, mas são os deputados que têm de resolver a irresponsabilidade geral.
Em Inglaterra, para dificultar as coisas, esses deputados são eleitos por círculos uninominais, respondem nominalmente perante eleitores.Ora estes eleitores agora já não são a “malta” que votou a saída. O “filho da malta” é agora rejeitado pelos pais putativos, mas tem de seguir o seu caminho,não pode ser retrovertido ao estado do antes do bacanal. Está feito, está feito. Os organizadores do bacanal tiraram o corpinho de fora. Cobardolas como o Boris Johnson e o Nigel Farage assobiam para o lado. A Theresa May tem pouco jeito até para danças, mas ninguém lhe pode exigir que faça círculos quadrados, que é o que os irresponsáveis do referendo, desde logo o irresponsável e snob Cameron, lhe exigem que faça.
O resultado de referendar questões de regime tem elevadas probabilidades de produzir um “filho da malta” pelo qual ninguém se quererá responsabilizar. A vontade da “malta” foi aquela, naquele momento, mas agora, que chegou o momento de lhe dar de mamar, de mudar as fraldas, de cuidar dele são aqueles que foram deixados de fora da decisão da malta – os partidos e os membros do parlamento – os chamados a decidir. E decidir implica enfrentar os eleitores que estiveram com a “malta” enquanto aquilo foi um bacanal, mas já não estão para assumir a paternidade do resultado.
Os populistas, dos evangélicos bolsonaristas aos jaquetas amarelos são adeptos do referendo para uso geral e em todas as circunstâncias. A malta reza, berra e destrói, os que se passeiam de limousine investem em offshores e empresas de armamento. Quando nasce o menino, não há quem lhe pegue, todos o rejeitam, a “malta” é chamada para a próxima guerra e os mandantes engordam. Há cem anos já foi assim.
Voltando ao quebra-cabeças inglês: Entre o momento do bacanal, o do referendo, e o momento da maternidade, o da saída, os ingleses e os seus políticos nunca entenderam necessário confrontar a “malta referendária” com os instrumentos formais de representação da “malta”, com umas eleições para eleger deputados que se responsabilizassem pelas decisões da “malta”. O Partido Conservador não queria perder o poder. Os outros não tinham força para impor eleições, nem as desejavam, por não quererem enfrentar a “malta”. E todos tiveram tempo de confrontarem a “malta” com os resultados do referendo até entregarem o pedido oficial de saída da União Europeia!
E agora? Agora, malta das ilhas, é ter vergonha na cara, assumir as consequências e minimizar os estragos. Essa atitude exige humildade e a humildade não é um produto muito abundante naquelas Ilhas, mas o filho da “malta” foi parido e tem de ser assumido. É certo que a Theresa May tem mais cara de ama-seca do que de mãe, ou até de patroa de bordel (o que não seria mau, na ocasião), mas foi o melhor que conseguiram…
Para os monárquicos sejam os indígenas, sejam os lusos: podem explicar para que serve a monarquia em situação de aperto? Para nada!
Também há pela Inglaterra – ou havia – sindicatos, trade unions. O que pensa e o que faz, o que fez neste imbróglio o movimento dos trabalhadores, o movimento sindicalherdeiros dos proletários das minas, da metalurgia? Nada. O mesmo que a família real.
Em Inglaterra a aristocracia e os proletários sindicalizados foram os primeiros a abandonar o barco. Sinais dos tempos, nem os nobres comandam as batalhas, nem o povo se bate. E ainda vociferam contra a Santa Theresa May…
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