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Sexta-feira, Novembro 22, 2024

A globalização e a sua liderança

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

Uma das muitas coisas que me impressionou quando comecei a conhecer um pouco melhor o que se chama de Ásia do Sul, mas que poderíamos geograficamente designar como subcontinente indiano ou ainda a antiga Índia britânica (menos a Birmânia) foi ver as relações luso-indianas como um filme rodado em sentido inverso àquele que tinha aprendido.

O regime salazarista fez da Índia um alvo preferencial em resultado da ocupação da Índia portuguesa e, mesmo para quem como eu ganhou distância da mensagem desse tempo, seria difícil imaginar que Goa fosse a antiga colónia portuguesa que conheço onde a imagem, a herança e mesmo a onomástica portuguesa são mais respeitados e encarados de forma mais positiva. 

1. A importância da globalização

Se Vasco da Gama é a figura maior em Goa e dá mesmo o nome à maior cidade do território, é interessante verificar que no Bengala – onde a presença portuguesa também se fez sentir – Portugal é sobretudo conhecido pelas várias plantas que trouxe de outros continentes e latitudes do mesmo continente e mesmo, pasme-se, pela introdução das especiarias que eu pensava estarem disseminadas pelo subcontinente quando os descobridores lá chegaram.

O ponto onde eu aqui queria chegar é a que a expansão portuguesa consistiu numa clara globalização entendida nas suas várias dimensões. A globalização dos tempos das naus – onde a chegada de notícias de Portugal para a Índia demorava meses – está naturalmente longe do mundo da informação instantânea dos nossos dias, mas é necessário reconhecer que estamos sempre no quadro de um mundo globalizado.

A globalização tornou-se mesmo o âmago dos ritmos da humanidade e a crise 1914-1945, que destruiu a Europa e muito afectou o mundo inteiro, é essencialmente uma crise da globalização, da mesma forma que os anos áureos que se seguiram a 1945 podem ser também objectivamente classificados como os da reconstrução da globalização.

Tudo isto para dizer que a globalização é parte essencial do mundo em que vivemos de há séculos a esta parte. Mais que a uma revolta contra a ‘globalização’, creio antes que estamos a assistir a sinais de profunda crise do modelo e liderança da globalização em que nos encontramos.

2. A globalização e os Estados

Historicamente, a globalização não se fez contra os Estados-Nação mas em larga medida a emergência de ambos foi concomitante, pelo que me parece sem sentido a dicotomia que se nos apresenta hoje entre as duas possíveis formas de organização da humanidade.

Paralelamente à globalização e à afirmação de Estados Nação tivemos também o declínio e a afirmação de novos impérios bem como de associações de Estados, feitas por vezes por via pacífica e por expansão imperial (como é o caso dos EUA) ou por via puramente pacífica como é o caso da União Europeia, a afirmação de novos Estados-Nação e ainda o desaparecimento ou diluição de Estados, ou o processo de formação de Estados-falhados.

A ideia de governação supranacional, com fonte e legitimidade próprios existe em especial na União Europeia e nas Nações Unidas, e em menor grau noutras associações regionais ou instituições aparentadas às Nações Unidas, e é essa noção que tem sido fortemente debatida. 

Existem muitas matérias onde é virtualmente impossível pensar sem uma governação global, como o transporte aéreo ou a internet, e outras onde as vantagens são claras, como as da normalização, havendo muitas outras onde essas vantagens são mais ou menos discutíveis.

O debate sobre a dimensão territorial da tomada de decisão – e mais ainda o tipo de tomada de decisão – é vivo e importante a todos os níveis, local, regional, estadual, nacional e supranacional, mas em qualquer caso não creio que se possa falar aí de questionar a ‘globalização’ da mesma forma que me pareceria excessivo dizer que se questiona Portugal quando se discute a regionalização ou localização da tomada de decisão.

3. A governação mundial em roda livre

Aquilo a que eu acho que estamos a assistir é uma clara mudança do centro de gravidade mundial (medido em termos económicos, humanos ou mesmo militares) do eixo atlântico euro-americano – onde sobressaem os EUA – para o ‘Indo-Pacífico’ uma região localizada no Índico Oriental / Pacífico Ocidental onde sobressai a China.

Aliada a essa mudança de centro de gravidade existe igualmente uma crise de auto-estima ocidental, com o Ocidente a ser invadido por múltiplas fórmulas de niilismo, e com os regimes autocráticos a reforçar a sua posição, nomeadamente os regimes de um crescente jihadista, do neo-sovietismo russo e da China imperial.

Aliada a esta profunda convulsão do tabuleiro geoestratégico temos as organizações internacionais a alhear-se das realidades que justificam a sua existência, embrenhando-se cada vez mais num universo de fantasia que funciona na base da sofística declaratória e cuidando apenas dos seus interesses mundanos.

É neste quadro que podemos entender a nova estratégia anunciada pelas autoridades americanas de desinvestimento na arquitectura multinacional existente e da sua retirada para organismos multinacionais de âmbito mais limitado no espaço ou no âmbito.

Seria no entanto um erro dramático confundir isto com uma substituição da globalização por um mundo partilhado em Estados ou o alheamento pelas instâncias internacionais por serem – por ora – ineficazes.

A presente situação de vácuo e deriva de poder global é transitória e não poderá ser vista como mais do que transitória. O simples alheamento pelo que se passa nos palcos das Nações Unidas seria um erro de enormes dimensões, com consequências potenciais dramáticas.

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