«…o ataque ao parlamento e aos deputados, excessivamente numerosos, escolhidos pelos directórios partidários, desconhecidos dos eleitores, inúteis, privilegiados, etc., obtém frequentemente ecos na opinião pública.»
Nos dois últimos artigos no Jornal Tornado tratei, respectivamente, dos cenários do regresso do fascismo e do modo de eleição de deputados para a Assembleia da República, questões de algum modo conexas porque a experiência mostra que o não se sentirem os cidadãos adequadamente representados mina as bases de apoio ao próprio regime democrático, porque o ataque ao parlamento e aos deputados, excessivamente numerosos, escolhidos pelos directórios partidários, desconhecidos dos eleitores, inúteis, privilegiados, etc., obtém frequentemente ecos na opinião pública.
Na discussão da reforma das instituições políticas seríamos aliás ingénuos se não atentássemos tanto no conteúdo concreto das propostas como nas motivações e nos argumentos dos proponentes. As manifestações de coletes amarelos sem ideologia definida não têm mostrado até agora capacidade para minar a democracia, mas haverá que estar atento às insídias dos coletes cinzentos.
Aliás, se atendermos às experiências parlamentares dos países que para nós constituem uma mais forte referência, o sistema de eleição por círculos uninominais vigora no Reino Unido onde é tradicional (e cujos eleitores rejeitaram há anos a introdução do sistema proporcional) mas levou séculos a consolidar-se, emergindo o sistema de partidos e a ascensão e declínio históricos dos vários partidos de movimentos de longa duração, em França, com alguns períodos de aplicação do sistema proporcional, mas com uma peculiaridade da V República que consiste em o Presidente eleito moldar a Assembleia Nacional às suas necessidades através de uma dissolução consecutiva à eleição presidencial, nos Estados Unidos mas sem que a eleição das Câmaras tenha repercussões no Poder Executivo, e na Alemanha em que um círculo nacional de compensação é adicionado do número de lugares necessário à observância da proporcionalidade.
Em Portugal vigora a representação proporcional, que por um lado não garante a perfeita correspondência entre número de votos e número de mandatos por se continuarem a utilizar círculos eleitorais correspondentes aos distritos “condenados” em 1976 e assim se prejudicarem os partidos pequenos e médios, e que por outro leva à eleição pelos dois grandes partidos de um número de deputados que neles fazem carreira política e são pouco conhecidos dos eleitores, mesmo dos seus próprios partidos, o que também, ao que se diz, sucede com os eleitos pelo círculo nacional de compensação na Alemanha.
Aparentemente a justificação da iniciativa “Legislar para os cidadãos poderem escolher e eleger os seus deputados” de José Duarte Ribeiro e Castro e outros, a que me referi no segundo dos artigos citados, quer conciliar representação da corrente de opinião com a representação do território e do eleitor: “… cada eleitor, ao exercer o direito de voto,tem a garantia de que, por um lado, terá um Parlamento que representará, de forma fiel, o peso percentual das diferentes correntes políticas concorrentes e, por outro, será composto por deputados cuja eleição efetivamente influenciou ou determinou.” no entanto, tanto quanto me é dado perceber, não garante a representação proporcional integral e, permite, apesar de tentar introduzir certas balizas, arbitrariedades na definição dos círculos uninominais e dos círculos plurinominais que continuam, sem necessidade, a ser delimitados com referência à divisão distrital.
Por isso prefiro a representação proporcional em círculos plurinominais com base geográfica no Continente correspondente às NUTS 2 ou 3, articulados com um circulo nacional de compensação, a preencher exclusivamente os lugares deste por candidatos `repescados de entre os candidatos não directamente eleitos nos círculos plurinominais de base geográfica.
Isto sem pôr em dúvida a bondade das intenções dos proponentes da iniciativa anunciada, no entanto não pude deixar de reparar que no mesmo dia em que saiu o meu segundo artigo um “Empresário e Gestor de Empresas, Subscritor do Manifesto “Por uma Democracia de Qualidade” publicou no Jornal i, junto com referências a José Duarte Ribeiro e Castro, Rui Rio e Margarida Balseiro Lopes, um apelo à subscrição da iniciativa “Legislar para os cidadãos…” de que é um dos membros da Comissão de Subscritores, cujo alcance é apresentado de forma muito diferente da enunciada na Petição, acompanhado por argumentos que revelam outras preocupações:
Como é que este “Empresário e Gestor de Empresas”, dirigente de uma associação empresarial que desde o início teve um papel muito relevante na CIP e que se apresenta como a voz da “Sociedade Civil”, vende a proposta ? Assim:
“Círculos uninominais cobrem todo o território. Apenas o candidato mais votado é escolhido. Só assim se passarão a discutir na AR os assuntos que interessam aos cidadãos.”
Quer dizer que a AR não discute os assuntos que interessam aos cidadãos porque são escolhidos candidatos que não os que seriam os mais votados em círculos uninominais que cobrem todo o território? Fala-se e propõe-se de mais na Assembleia da República? Mas não se quer que nesta esteja representado de forma fiel, o peso percentual das diferentes correntes políticas concorrentes, o que implicará muito provavelmente que pelo menos o PCP e o BE vejam a sua representação reforçada e entrarão alguns pequenos partidos? Ou os mecanismos de compensação distrital e nacional que a iniciativa prevê não asseguram efectivamente esse resultado e terá uma agenda escondida que se traduzirá na redução do pluralismo do Parlamento?
O que teríamos provavelmente em consequência da adopção da Iniciativa Legislativa seria uma Assembleia cinzenta, de coletes cinzentos, de maioria PSD e CDS com os independentes que aceitassem ser arrebanhados para o efeito, uma vez que, como alguns dos defensores da proposta têm admitido no Facebook, o monopólio partidário de apresentação de candidaturas se manteria, porque previsto na Constituição.
Prossegue o propagandista da Iniciativa Legislativa:
A Sociedade Civil está de forma generalizada de acordo em que é preciso encetar um processo de melhoria da nossa classe política.”
Exemplificando com políticos que “devem ser avaliados e escrutinados de outra forma pelos eleitores”:
Políticos que aceitam de ânimo leve que os portugueses sejam obrigados a colocar quase 20.000 M€ num sistema bancário onde foram feitas negociatas hediondas.”
No entanto este “membro da Sociedade Civil” com discurso de “elemento das massas”, não pode deixar de saber, com a sua experiência de “empresário” e “gestor de empresas”, que os 20.000 M € de que fala foram colocados pelos clientes no sistema bancário e daí voaram ou foram investidos em activos sem valor ou cujo valor se deteriorou, sem intervenção dos políticos (a não ser dos que foram nomeados para a administração do banco público ou dos cooptados para as administrações dos bancos privados) e dos deputados, sendo irrelevante que estes tivessem sido eleitos por sistema proporcional ou uninominal.
Políticos que gerem um Estado que não protege os cidadãos e que seguem uma filosofia de ‘’maior Estado pior Estado’’
Aqui este “membro da Sociedade Civil” recicla o discurso cavaquista contra os políticos, muitos deles cavaquistas, que desarmaram e desmantelaram o Estado em nome do “menos Estado, melhor Estado.
Políticos que legislam criando um Sistema Elétrico Nacional muito ineficiente e com tarifas altíssimas para os consumidores de um bem indispensável como a electricidade.
Espero que não seja uma piada a Luís Filipe Pereira, a cuja acção como Secretário de Estado da Energia se deve no essencial a actual configuração do SEN, e que certamente não a merece, como este “membro da Sociedade Civil” e “empresário”que exerce a sua actividade em estreita relação com o sector eléctrico, muito bem sabe, sendo estranho que se revista aqui da pele de consumidor.
Repare-se entretanto que a Assembleia tem tido nisto pouca intervenção, salvo na legislatura ainda em curso em que os deputados de esquerda têm feito, honra lhes seja feita, uma grande pressão no sentido da redução de preços e em que pela primeira vez se está a fazer um inquérito parlamentar para esclarecer desenvolvimentos com mais de dez anos.
Políticos que não implementam as muitas sinergias possíveis através de uma reengenharia a nível do Estado, mais conhecida por Reforma do Estado.
À Reforma Administrativa lançada nos anos 1950 por Águedo de Oliveira e Pinto Barbosa, continuada nos anos 1960 por Mota Veiga e Marcelo Caetano e após o 25 de Abril pelos governos da altura, sucedeu a Modernização Administrativa de Isabel Corte Real, a Reforma do Estado e da Administração Publica de Alberto Martins e Vital Moreira, a Reforma da Administração Pública de Durão Barroso e Luis Filipe Pereira, a Modernização da Administração Pública de João Figueiredo e Gonçalo Castilho dos Santos.
Tudo rótulos de marketing político envolvendo nomes diferentes para as várias panaceias a que se foi recorrendo: organização e métodos, qualidade, reengenharias, inovação. Não é por falta de reformas que estamos mal.
Curiosamente quando os devotos do movimento Compromisso Portugal, ao qual este membro da Sociedade Civil talvez não tenha sido estranho, se viram com Pedro Passos Coelho e Paulo Portas num contexto político que lhes permitiu fazer tudo do Estado, apenas conseguiram fazer um power point para este novo rótulo de Reforma do Estado ou sugerir que para aproveitar sinergias entre a Segurança Social e o IEFP, se procedesse a junção física dos respectivos serviços, como se nunca tivessem ouvido falar em reengenharia de processos.
Políticos que se queixam muito do défice Orçamental como argumentação para o tradicional aumento da fiscalidade sobre tudo e todos.
Grande ataque deste membro da Sociedade Civil ao ministro Vítor Gaspar e ao enorme aumento de impostos…
Talvez com eleições por sistema uninominal estes desçam, quem sabe?
É um tanto penoso ver os velhos protagonistas da CIP e do Compromisso Portugal, coletes cinzentos, a forçarem-se a adoptar um estilo pseudo jovem e popularucho, procurando fabricar “reivindicações” para que outros que tenham coragem de vestir coletes amarelos / verdes saltem para a rua, fazendo-as suas.
E é claro estão contra a corrupção, aliás toda a gente está contra a corrupção. Mas será que uma eleição do Parlamento por sistema uninominal criaria mais condições para combater a corrupção? Se quisermos levar esta Iniciativa Legislativa a sério deveríamos completá-la com a abertura à candidatura de independentes, a imposição de um maior recurso a votações nominais e a possibilidade de revogação do mandato dos eleitos.
O fascismo irá regressar a Portugal?
A eleição dos deputados à Assembleia da República
Fernando Teixeira Mendes, “Reforma do Sistema Eleitoral – Um desafio urgente e imperioso para benefício de todos”.
Não me obriguem a falar do que, no exercício de funções como membro do Gabinete de Coordenação para a Recuperação de Empresas (GACRE) fui sabendo sobre empresas na altura em dificuldades e sobre bancos.