Por via de vários acordos de comércio e investimento, as grandes empresas multinacionais têm acesso a mecanismos de arbitragem e outros similares que lhes permitem curto-circuitar os sistemas de Justiça nacionais e processar os estados quando estes procuram regular para proteger o ambiente, a saúde, o trabalho, os serviços públicos, os direitos dos consumidores, entre outros.
Por outro lado, quando as mesmas multinacionais violam os direitos humanos ou provocam desastres ambientais avassaladores, elas conseguem usar «lacunas de jurisdição» para ficarem impunes. No entanto, mais de mil associações em toda a Europa vão juntar-se para pôr cobro a esta situação. A campanha europeia contra um sistema de Justiça ao serviço das multinacionais arranca em Janeiro de 2019.
Episódios com muito em comum
A cerca de 30 km da capital de El Salvador existe uma pequena povoação chamada Sitio del Niño. Uma fábrica local, por negligência, provocou em 2004 um desastre ambiental que levou ao envenenamento dos habitantes locais, matando parte da população, incluindo crianças. Quando o governo acusou a empresa de violar a legislação ambiental, os advogados desta empresa responderam com uma ameaça de queixa ISDS (sigla inglesa para “Resolução de Disputas Investidor-Estado”), evitando assim qualquer condenação criminal para a gestão de topo da empresa. O ISDS é o exemplo de um dos mecanismos previstos nos tratados de comércio e investimento que permitem às multinacionais evitar os tribunais nacionais e usufruir de uma justiça “à la carte”. Na Roménia, a empresa de mineração Rosia Montana Gold Corporation avançou com uma acção contra o governo porque este não evitou a ocorrência de uma greve dos mineiros, alegando que isso representaria uma “expropriação indirecta” por pôr em causa as suas “legítimas expectativas de lucro”. O número de casos ISDS por ano está em ascensão, aumentou muito mais de 600% desde as primeiras décadas de implementação do sistema e frequentemente as indemnizações atribuídas às empresas ultrapassam vários milhares de milhões de euros, tendo já chegado a atingir os cinquenta mil milhões de euros.
Em 2013, no Peru, a multinacional suíça Glencore comprou Xstrata Tintaya S.A. que detinha a mina de cobre Tintaya Antapaccay. As operações desenvolvidas nessa mina provocaram danos ambientais graves (tais como a contaminação da água da região) que resultaram em contestação social incluindo protestos muito participados. A repressão policial dos protestos foi excessivamente violenta e resultou em dois mortos. Uma coligação de associações da sociedade civil fez queixa, quer pelos danos ambientais, quer pelos danos humanos, tanto no Peru como na Suíça. Na Suíça, a Glencore alegou não ter responsabilidades, afirmando que a sua subsidiária no Peru é uma entidade jurídica independente. Os queixosos, além de mostrarem que tinha sido a gestão da Xstrata Tintaya a pedir a actuação policial, apresentaram também documentos que demonstravam que a empresa tinha organizado uma rede de recolha de informação que pagava a elementos da polícia peruana por actividades de vigilância e espionagem dos manifestantes. Apesar disso, a multinacional Glenncore ficou impune. Um acidente recente (em Abril de 2018) mostrou que a empresa mantém as suas práticas: cerca de 40 agentes policiais e funcionários da Glenncore atacaram a comunidade indígena Alto Huarca procurando desalojá-los, novamente com brutalidade policial. Casos como o da subsidiária da BP na Nigéria que provocou um derrame de petróleo devastador ou da fábrica paquistanesa pertencente à cadeia produtiva de uma multinacional alemã que, por violar a legislação de segurança e prevenção de incêndios, acabou por permitir a morte de 260 trabalhadores num incêndio, são outras ilustrações de como as “lacunas de jurisdição” no contexto internacional são usadas pelas multinacionais para garantir a sua impunidade.
Todos estes episódios têm muito em comum. Em todos eles as multinacionais não estão sujeitas ao mesmo sistema de justiça que o resto da sociedade. Têm privilégios especiais no momento de acusar os estados e impôr a legislação que desejam, mas também os têm no momento de escapar às suas responsabilidades, fugindo pela complexidade do sistema jurídico internacional às violações dos Direitos Humanos que provocam directa ou indirectamente.
Os alicerces da globalização
O processo que hoje designamos por “globalização” teve consequências sociais e ambientais profundas. Do ponto de vista da distribuição de riqueza e do património, o trabalho de Piketty evidencia o acentuar de desigualdades em todos os países analisados (este trabalho foca principalmente os EUA e os países da UE, mas o autor afirma ter dados que sugerem o mesmo fenómeno na Índia, China e Brasil) a partir da década de 80. Associado a este processo, verifica-se também a estagnação dos salários reais médios, que correspondem a uma proporção sucessivamente menor da produtividade nos EUA e na Europa. Existe um consenso entre economistas de diferentes perspectivas de que o fenómeno da globalização explica uma parte substancial desta queda.
De facto, na Europa e nos Estados Unidos, os níveis de desigualdade atingem valores semelhantes aos que existiam quando se deu a ascensão da extrema direita nos anos 20 e 30 do século passado. O “esvaziamento” da democracia que se tem verificado também pode resultar num aumento do cinismo e revolta que é aproveitado por líderes demagógicos para promoverem o ódio num contexto social que se torna propício ao seu surgimento.
Do ponto de vista ambiental, o desafio das alterações climáticas, cujos danos materiais e humanos podem superar os da segunda guerra mundial em cerca de uma ordem de grandeza, de acordo com o relatório Stern, não é o único que testemunha a insustentabilidade do actual sistema. As florestas tropicais ocupavam cerca de 15% da superfície terrestre há poucas décadas e ocupam hoje cerca de 7%, sendo que o ritmo da sua desflorestação não abrandou. Em poucos anos, o peso dos plásticos nos oceanos pode superar o peso dos peixes, trazendo consequências devastadoras para a nossa saúde.
Tendo em conta que, a nível mundial, estas alterações começam a acentuar-se no início da década de 80, vale a pena atentar nas alterações ao quadro legal que regula o comércio internacional que tiveram lugar desde então. Os vários milhares de acordos de comércio e investimento assinados a partir dessa altura, bem como os mecanismos de resolução de disputas que incluem, são uma parte importante desta equação. Por outro lado, o boicote activo por parte das potências ocidentais a qualquer esforço para acabar com a impunidade das multinacionais só terá agravado este problema.
A campanha contra o TTIP e o CETA
Quando, nos finais dos anos 60, surgiram pela primeira vez os mecanismos de resolução de disputas no âmbito de acordos de comércio e investimento, a justificação apresentada para a sua implementação assentava no receio da falta de independência dos sistemas de Justiça dos países menos desenvolvidos. Alegava-se que, se o governo de um destes países expropriasse de forma arbitrária e injusta algum investidor estrangeiro, este último não poderia contar com os sistemas de Justiça destes países para receber a indemnização a que teria direito. Se os países em vias de desenvolvimento quisessem assegurar investimento externo, teriam de abdicar parcialmente da sua soberania para dar garantias acrescidas aos investidores.
Não é claro que estes tratados de comércio e investimento tenham resultado em maior investimento directo estrangeiro. A investigação científica na área conta com vários estudos que indicam que estes acordos não atraem investimento ou que não existem provas de que atraem. Mesmo que existisse uma relação positiva entre estes acordos e o investimento directo estrangeiro, a própria relação entre investimento directo estrangeiro e o produto interno bruto não é linear, sendo que certos tipos de investimento podem lesar a economia, e que muitas vezes os acordos de comércio e investimento impedem os estados de “filtrar” este tipo de investimento, pelo que podem ter um impacto económico agregado negativo sobre o produto interno bruto. Por outro lado, a relação entre os acordos de comércio e investimento e os danos ambientais, o aumento das desigualdades, a desvalorização dos salários, entre outros tem sido amplamente documentada.
Numa fase posterior, os mecanismos de resolução de disputas foram introduzidos em acordos como o Tratado Carta da Energia (TCN) ou o célebre NAFTA (acordo entre o Canadá, os EUA e o México). Se até então apenas países em vias de desenvolvimento tinham sido obrigados a pagar centenas ou milhares de milhões de euros às grandes multinacionais, estes últimos tratados vieram mostrar que nenhum país estava a salvo. A Alemanha sofreu duas queixas da multinacional sueca Vattenfall, uma das quais obrigando-a a enfraquecer a legislação ambiental que protegia o rio Elba, e outra, ainda a decorrer, que poderá forçá-la ao pagamento de centenas ou milhares de milhões de euros pelo abandono da energia nuclear. A Espanha e a Itália, bem como vários outros países da União Europeia, foram obrigadas a pagar pesadas indemnizações também ao abrigo do TCN, e até Portugal já foi ameaçado em Setembro de 2018 pelos accionistas da EDP. O Canadá, por seu lado, colocou uma moratória ao processo de exploração de petróleo por via da fracturação hidráulica, e viu-se confrontado com o facto de a companhia Lone Pine mudar a sua sede para os Estados Unidos, com o objectivo de pedir uma indemnização ao abrigo dos mecanismos de resolução de disputas do NAFTA. A falta de transparência e os perniciosos conflitos de interesse subjacentes a estes processos tornaram-se particularmente claros para a sociedade civil com estes e outros episódios.
Por essa razão, quando, ao fim de vários de anos de negociações secretas, a Comissão Europeia propôs a celebração do TTIP (o chamado “Tratado Transatlântico” entre a UE e os Estados Unidos) e do CETA (o acordo entre a UE e o Canadá), encontrou uma oposição inesperada por parte dos cidadãos europeus. Entre muitos outros problemas considerados graves por numerosas associações da sociedade civil, estes acordos, constituiriam a maior expansão destes sistemas de resolução de disputas. Eles também representaram a derradeira admissão de que nunca esteve em causa o receio face à independência do sistema judicial, mas sim uma forma de permitir às multinacionais não serem condicionadas pelas escolhas democráticas dos países onde operam.
Formou-se então a Plataforma «STOP TTIP», composta por mais de 500 associações da sociedade civil em toda a Europa, a que se juntaram organizações ambientalistas, sindicatos, associações de defesa dos direitos humanos, de defesa do consumidor, de defesa da privacidade, dos serviços públicos e até de pequenos agricultores e pequenos e médios empresários. Esta plataforma submeteu uma Iniciativa de Cidadania Europeia (ICE) para que a Comissão Europeia recomendasse ao Conselho da UE a revogação do mandato que este lhe tinha outorgado para negociar o TTIP e, em última análise, que se abstivesse de celebrar o Acordo Económico e Comercial Global (CETA) com o Canadá. A Comissão Europeia recusou-se a registar a proposta, alegando que a mesma estava fora das suas atribuições.
Além de recorrer ao Tribunal de Justiça da União Europeia, a «STOP TTIP» passou a recolher assinaturas de forma independente, cumprindo escrupulosamente todas as regras e regulamentos associados às ICEs. A petição atingiu mais de 3 milhões de assinaturas, valor que ultrapassa o obtido por qualquer outra ICE até à data, resultado de uma campanha mobilizadora dos cidadãos em toda a Europa. Na Bélgica, na França e na Alemanha várias manifestações de rua muito participadas puseram o TTIP na agenda mediática. O Tribunal de Justiça da União Europeia acabou por dar razão à «STOP TTIP», declarando que a Comissão Europeia não tinha legitimidade para recusar esta iniciativa. Se por um lado, em parte como resultado desta mobilização, o TTIP não chegou a ser assinado, por outro lado a própria ratificação do CETA está em risco. Depois de várias décadas durante as quais o sistema de comércio internacional foi aumentando cada vez mais os privilégios para as multinacionais, a sociedade civil teve, nos últimos anos, importantes vitórias defensivas.
A campanha contra a impunidade empresarial
Após uma forte luta de vários anos, em 2015 foi aprovada em França legislação contra a impunidade empresarial (“devoir de vigilance”). Se é verdade que esta legislação se encontra muito aquém daquilo por que vários grupos activistas se debateram e exigiam, também é verdade que se trata da legislação mais avançada a nível mundial nesta matéria.
Esta alteração da legislação francesa também mudou significativamente a posição do governo no panorama mundial. Nas Nações Unidas, em Genebra, na 26ª sessão do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas que teve lugar em Junho de 2014, foi adoptada uma resolução conjunta da África do Sul e do Equador . Esta resolução mandatava um grupo de trabalho intergovernamental para elaborar um instrumento internacional vinculativo que regulasse as empresas transnacionais e outras empresas em relação aos Direitos Humanos, com vista a evitar “lacunas de jurisdição” que resultassem na sua violação. Depois de intensas discussões ao longo de três anos, que envolveram os estados e a sociedade civil, a terceira sessão deste grupo de trabalho, realizada em Outubro de 2017, culminou com a decisão de que as negociações relativas ao tratado deveriam começar. Ao longo deste processo verificou-se o empenho dos governos de vários países da América Central, da América do Sul e do continente africano, sendo que o governo norte-americano abandonou as negociações. Os representantes dos estados que compõem a União Europeia estiveram também para abandonar as negociações (o que na prática iria inviabilizar este processo), mas a pressão da sociedade civil impediu que tal acontecesse. Os representantes dos estados da União Europeia têm apresentado uma atitude pouco construtiva e pouco cooperante, com excepção do representante da França, que desde 2015 se tem mostrado muito mais favorável a esta solução.
Duas grandes redes de associações da sociedade civil têm lutado a favor deste tratado: a “Treaty Alliance” (Aliança do Tratado), composta por mais de mil organizações, e a “Global Campaign”, composta por cerca de 250. No entanto, a alteração substancial da posição do governo francês após ter aprovado legislação contra a impunidade das multinacionais mostrou que duas lutas diferentes são na verdade complementares: pelejar por implementar legislação deste tipo a nível nacional ou europeu, ou bater-se por um tratado internacional à escala das Nações Unidas são duas faces da mesma moeda. Isto conduziu a uma maior união dos movimentos que lutam nestas diferentes frentes. Neste momento, o “rascunho zero” deste tratado já está disponível e a sua aprovação está agendada para 2019.
Uma campanha unida contra privilégios para as Multinacionais
Compreendendo a oportunidade histórica que o ano de 2019 representa para ambas as causas (pela forma como os sistemas de resolução de disputas ficaram severamente fragilizados pela campanha contra o CETA e TTIP por um lado, e pela agenda da ONU para o próximo ano, por outro), o movimento que lutou contra o TTIP e o CETA e o movimento que lutou contra a impunidade empresarial juntaram-se para planear e levar a cabo uma campanha conjunta.
A campanha terá início no dia 22 de Janeiro próximo e terá como objectivo acabar com os privilégios das multinacionais e com o sistema de justiça paralelo para os reclamar (ISDS ou similares), exigindo à UE e seus estados membros a retirada dos acordos comerciais que os incluem. Tem também como objectivo apoiar a criação de um tratado vinculativo da ONU para responsabilizar as empresas transnacionais por violações dos direitos humanos e exigir à UE e seus estados membros legislação contra a impunidade empresarial. Além de uma petição que se propõe recolher vários milhões de assinaturas, estão previstas manifestações, acções de rua e outras formas de luta.
por João Vasco Gama, Membro TROCA Plataforma, por um Comércio Internacional Justo