Às vésperas de cada aniversário de São Paulo (SP), descobrimos, sem espanto, que mais e mais moradores querem deixar a cidade em definitivo. Neste ano, a tradicional pesquisa Ibope, encomendada pela Rede Nossa São Paulo e curiosamente batizada de “Qualidade de Vida”, até aponta “uma melhora no humor do paulistano em relação à cidade e às instituições”.
Ainda assim, 63% declaram que, “se pudessem, sairiam de São Paulo para viver em outra cidade”. Em 2018, eram 61%.
É o primeiro levantamento realizado desde o fim da breve (e desastrosa) passagem de João Doria (PSDB) pela Prefeitura de São Paulo. Eleito em 2016 ainda no primeiro turno, com a promessa de ser não um político convencional, mas um gestor de excelência, o tucano frustrou as elevadas expectativas que sua própria campanha ajudou a criar.
Para 51% dos entrevistados, a atuação da Prefeitura junto à rede municipal de ensino educação é “ruim ou péssima”. Na saúde, o índice de reprovação sobe para 56%. Apenas 28% da população diz confiar na administração municipal.
Não à toa, apesar de Doria ter sido eleito governador nas eleições de outubro passado, seu desempenho foi vexatório na capital, onde ele perdeu para Márcio França (PSB), no segundo turno, por 58% a 42%. O “prefeito-gestor”, depois apelidado de “prefake”, não deixou saudade.
Migrantes e imigrantes
São Paulo, historicamente, é uma terra aberta a gente de fora, a começar por seus fundadores – o português Manuel da Nóbrega e o espanhol José de Anchieta. Coube a eles, em 25 de janeiro de 1554, dar a largada para a sina de cidade-destino da qual São Paulo jamais se livrou.
Ao completar 465 anos, a capital paulista acolhe estrangeiros de nada menos que 72 nacionalidades e mais de cem etnias – incluindo as maiores comunidades de coreanos, espanhóis, italianos, japoneses, libaneses e portugueses fora de seus países de origem. No conjunto de sua região metropolitana, convivem 5,5 milhões de moradores vindos de outros estados, em especial Bahia, Minas Gerais, Pernambuco, Ceará e Paraná.
Os migrantes e imigrantes, de ontem e de hoje, mereciam gestores mais generosos, eficientes e confiáveis, à altura das contribuições que esses povos deram a São Paulo. Faltam à administração pública nomes como o escritor modernista Mário de Andrade, talvez o mais brilhante de todos os paulistanos, responsável na década de 1930 pela implantação do Departamento Municipal de Cultura e Recreação (percursor da atual Secretaria de Cultura).
Democratizar a cultura
É verdade que a gestão de Mário teve condições privilegiadas, tantos foram os recursos do Departamento e tamanha foi sua autonomia político-administrativa. Nada disso, porém, diminui o peso da audácia, de criatividade e da sensibilidade do poeta, romancista e agitador modernista nomeado para o serviço público.
Em apenas três anos à frente do Departamento, Mário democratizou a cultura em São Paulo. O Teatro Municipal, fundado em 1911 e voltado até então às elites, finalmente abriu suas portas para setores mais pobres e periféricos da população, graças a uma programação cada vez mais gratuita e acessível. Nos “bairros operários”, os parques infantis garantiam aos filhos dos trabalhadores o acesso à educação, ao lazer, à assistência social e à saúde mais básica. As casas de cultura saíam do papel, a exemplo das bibliotecas circulantes.
Na São Paulo daquela época inspirada, não faltavam concursos e projetos de inclusão, excursões e intercâmbio, festas típicas e populares, exposições e seminários, cursos e oficinas. Pela primeira vez no Brasil, um órgão público dava uma dimensão política e sociológica às suas iniciativas culturais. Com o Departamento de Cultura, Mário foi muito mais efetivo em seu ideário modernista (embora menos estridente) do que na “aristocrática” Semana de 22.
É impossível dissociar o êxito administrativo de Mário de sua paixão genuína por São Paulo, à qual se referiu dubiamente, é verdade, como “Pauliceia desvairada das minhas sensações” ou “agressiva e misteriosa como seus heróis”. Mas o poeta também a chamou, em seus versos, de “enorme cidade”, “minha terra”, “minha noiva”, “comoção da minha vida”, “minha Londres das neblinas finas”, “fonte dum estilo brasileiro”, “berço duma fórmula de arte brasileira”. Sua conclusão: “Eu sei de coisas lindas, singulares, que a Pauliceia mostra só a mim, que dela sou o amoroso incorrigível”.
Telê Ancona Lopez, a maior estudiosa da obra marioandradiana, enxerga aí a “invocação da cidade musa e dama do trovador do século XX”. O poema-testamento de Mário avança nessa significação:
“Quando eu morrer quero ficar,
Não contem aos meus inimigos,
Sepultado em minha cidade,
Saudade.
Meus pés enterrem na rua Aurora,
No Paissandu deixem meu sexo,
Na Lopes Chaves a cabeça
Esqueçam.
No Pátio do Colégio afundem
O meu coração paulistano:
Um coração vivo e um defunto
Bem juntos.
Escondam no Correio o ouvido
Direito, o esquerdo nos Telégrafos,
Quero saber da vida alheia,
Sereia.
O nariz guardem nos rosais,
A língua no alto do Ipiranga
Para cantar a liberdade.
Saudade…
Os olhos lá no Jaraguá
Assistirão ao que há de vir,
O joelho na Universidade,
Saudade…
As mãos atirem por aí,
Que desvivam como viveram,
As tripas atirem pro Diabo,
Que o espírito será de Deus.
Adeus.”
Antes e depois de “Sampa”
A São Paulo que chega hoje aos 465 anos em pouco lembra Mário de Andrade, seja pela hostilidade crescente das pessoas à cidade (e da cidade ao povo), seja pelo descompromisso de seus governantes. Está mais para a “Sampa” de Caetano Veloso, uma estranha e contraditória declaração de amor, eivada de impressões mal resolvidas. Ele já cantou que “São Paulo é como um mundo todo” e até a qualificou como “a melhor cidade da América do Sul”. Sua mensagem mais enérgica, porém, está em “Sampa” mesmo.
O compositor baiano conheceu São Paulo em 1964, ao acompanhar a viagem da irmã, Maria Bethânia, que apresentaria o show “Opinião”, no Teatro Oficina. A principio, o estranhamento foi de tal ordem que Caetano dizia “não morar, mas simplesmente estar” em São Paulo.
Quatro anos depois, porém, como tantos e quantos brasileiros que buscam oportunidades longe da terra natal, Caetano decidiu ficar na capital paulista, ao lado da mulher Idelzuíte Gadelha, a Dedé. Instalaram-se num apartamento no 20° andar do Edifício Santa Virgília, no número 43 da Avenida São Luís, a menos de 100 metros da Praça da República.
Durante a morada em São Paulo, Caetano recebeu a maior vaia de sua carreira. Em 15 de setembro de 1968, os estudantes que lotaram o Tuca, o teatro da PUC-SP, não o deixaram terminar a música “É Proibido Proibir” na final paulista do 3° Festival Internacional da Canção, da TV Globo. Caetano reagiu com um discurso memorável, mas a mágoa ficou.
No mesmo ano, na madrugada de 27 de dezembro, apenas duas semanas após o anúncio do AI-5, a relação direta entre o notório migrante e sua nova cidade chegou ao fim. Mesmo sem mandado contra ele, Caetano foi retirado de casa pela polícia e posto em uma caminhonete com o amigo e parceiro Gilberto Gil, rumo à imediata prisão no Rio de Janeiro. Era o início de uma escalada que o levaria, meses depois, ao exílio em Londres. Nunca mais ele voltou a entrar em sua residência paulistana.
Dez anos depois, já morando no Rio de Janeiro, Caetano foi convidado por uma emissora de TV a compor uma música sobre São Paulo. A cidade pode não ter sido tão generosa com Caetano, mas “Sampa”, de pronto, virou o hino paulistano por aclamação. O cantor já reconheceu que não esperava o sucesso da música, cuja letra é recheada de referências e ambiguidades. “É que quando eu cheguei por aqui eu nada entendi”, explica-se ali Caetano, que vê em São Paulo “mau gosto”, “um difícil começo”, “o avesso do avesso do avesso”.
Mas não é só. Nenhum outra cidade brasileira lhe permitiria um retrato tão multifacetado e dinâmico, que inclui citações, diretas ou indiretas, a diversos expoentes da cultura brasileira. A própria melodia de “Sampa” se baseia em acordes de “Ronda”, obra-prima do grande sambista paulista Paulo Vanzolini, da qual se extraiu também a imagem do cruzamento das avenidas Ipiranga e São João.
Há menções, ainda, à poesia dos irmãos Augusto e Haroldo de Campos (“da dura poesia concreta de tuas esquinas”, “eu vejo surgir teus poetas de campos e espaços”); a ícones originalíssimos da MPB nos anos 60/70 (Rita Lee, Mutantes e Novos Baianos); ao mito de Narciso; ao Teatro do Oprimido de Augusto Boal (“do povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas”) e ao Teatro de Oficina de Zé Celso Martinez (“tuas oficinas de florestas”); à obra de Jorge Mautner (“teus deuses da chuva”) e de José Agrippino de Paula (“Pan-Américas de Áfricas utópicas”); a Vinicius de Morais (“túmulo do samba”); e ao quilombo de Zumbi dos Palmares. Coisa de gênio!
Convenhamos: nestes dias, São Paulo realmente parece mais a homenagem ziguezagueante de Caetano Veloso do que a projeção idílica de Mário de Andrade. Aos que aqui nascem e vivem, aos que aqui chegam e ficam, aos que aqui passam e se vão, São Paulo está em falta — e já não é sequer necessário fazer pesquisas para detectar.
Ou talvez São Paulo, aos olhos de seus filhos e acolhidos, seja hoje apenas um eco daquilo que Mário de Andrade assinalou no “Prefácio Interessantíssimo”: “Alguns dados. Nem todos. Sem conclusões. Para quem me aceita são inúteis ambos. Os curiosos terão o prazer em descobrir minhas conclusões, confrontando obra e dados. Para quem me rejeita, trabalho perdido explicar o que, antes de ler, já não aceitou”.
por André Cintra, Jornalista | Texto em português do Brasil
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