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Domingo, Dezembro 22, 2024

Revolução democrática na Venezuela

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

Quanto mais depressa nos desembaraçarmos desta pseudoesquerda mais rapidamente poderemos pensar em formas alternativas de governo às oligarquias que dominam o Ocidente.

Hugo Chávez falhou primeiro o seu golpe militar em 1992 para ascender depois ao poder por via democrática em 1998, com o apoio popular ganho pelo cansaço com um sistema político nominalmente democrático mas realmente nas mãos de uma oligarquia corrupta.

1. Do populismo à ditadura

Apoiado nos recursos petrolíferos, instaurou uma política que se apoiou nas camadas mais pobres, erguendo em contrapartida um sistema de milícias e de controlo autoritário progressivo do poder.

O único elemento estruturante da linha política chavista foi o antiamericanismo que justificou a sua submissão à extrema-direita jihadista iraniana e em obediência ao qual coseu toda uma estratégia internacional assente no financiamento petrolífero ao terrorismo e à corrupção de elites políticas um pouco pelo mundo inteiro.

Fez da Venezuela o principal financeiro da vizinha ditadura cubana, promoveu a desestabilização em toda a região e construiu uma aliança estratégica com o regime iraniano que passou pela implantação de uma rede financeira e armada do Hezbollah libanês sediada na Venezuela e triangulações financeiras que passaram por países como Malta e fundamentalmente Portugal.

O crime e a corrupção – que eram já grandes problemas venezuelanos antes da chegada de Chávez – aumentaram com ele de forma exponencial, sendo parcialmente integrados na estrutura do regime, quer nas brigadas da morte que executam oposicionistas quer nas operações financeiras de corrupção e lavagem de dinheiro de que a banca portuguesa foi uma peça chave.

Depois da sua morte em 2013, foi substituído por Nicolás Maduro, eleito na última vez em que o regime ganhou um sufrágio eleitoral com um mínimo de condições democráticas. Com Maduro, tivemos a decadência total do regime. Enquanto os esquemas de branqueamento de capitais e de tráfico de droga já existentes no tempo de Chávez tinham tido a preocupação política de financiar a guerrilha e o terrorismo ou promover governantes amigos na América do Sul e no resto do mundo, em coordenação política com o regime iraniano, com Maduro, a Venezuela transformou-se numa plena cleptocracia disfuncional.

O colapso económico e social do país – e nomeadamente da sua principal fonte de rendimento, os hidrocarbonetos – levou à derrota nas últimas eleições minimamente livres, realizadas em 2015, à rebelião reprimida pelo sangue, à fome generalizada, à fuga de milhões de venezuelanos e à sustentação do regime por uma rede que inclui o Hezbollah, mercenários cubanos e, hoje em dia, segundo fontes credíveis, igualmente russos.

2. A proclamação do presidente do Parlamento

Embora tenha realizado eleições fantoches o ano passado, Nicolás Maduro adiou para este ano a data da sua tomada de posse num segundo mandato, e foi este o acto que justificou a declaração da sua destituição pelo Presidente do Parlamento, Juan Guaidó, o que deu de novo ânimo ao povo venezuelano para enfrentar as balas do regime em manifestações democráticas espalhadas por todo o país.

É uma proclamação que pode ser vista como tardia, dado que o poder, ignorando totalmente a voz popular que apesar de todas as condicionantes se fez ouvir em 2015 e lhe impôs uma pesada derrota, exerce o que é de qualquer ponto de vista uma ditadura. Acresce a este facto que foi a partir de 2015 que se assistiu ao total colapso económico e social do país.

É possível que o Presidente do Parlamento tenha esperado a data simbólica da tomada de posse para um novo mandato sem qualquer legitimidade democrática para o destituir por razões de circunstância política, um continente sul-americano mais claramente disposto a enfrentar a ditadura venezuelana e uma diplomacia norte-americana saída da inacção que a caracterizou durante muito tempo.

A realidade é que o regime venezuelano tem hoje apoios e interesses mais vastos do que os do jihadismo iraniano, sem capacidade política e económica para continuar a catapultar isoladamente a ditadura venezuelana.

O regime venezuelano mantém-se fundamentalmente graças a volumosos empréstimos russos e chineses, para além de, pequenos tráficos, como o de ouro para a Turquia (tendo possivelmente o Irão como destino final), a cumplicidade com o crime, a alimentação de uma pequena minoria de privilegiados e uma guarda pretoriana feita de mercenários estrangeiros.

3. A Venezuela e o colapso da pseudoesquerda

O colapso da Venezuela é também o colapso de uma ‘pseudoesquerda’ que insiste em apoiar tudo o que de pior se passa ao cimo da terra desde que, mesmo que apenas nominalmente, esse pior se reclame como anti-capitalista anti-imperialista anti-ocidental e acima de tudo anti-americano.

O caso da Venezuela – talvez mais do que os dos infernos comunistas que o precederam – é especialmente caricato porque a Venezuela tem sido um dos principais promotores de lavagem de dinheiro e enriquecimento ilícito no mundo, exactamente as principais razões invocadas para os ‘antis’ do parágrafo anterior.

É uma esquerda que não percebeu o que iria resultar do golpe bolchevique, do controlo estalinista sobre o partido ou da revolução chinesa e que portanto poderia menos ainda perceber o que iria resultar do chavismo – que se iniciou no respeito formal do quadro democrático.

E para ir ao fundo da questão, é a mesma esquerda que se recusou a identificar o Nazismo como inimigo principal antes de este invadir a Rússia e que contemporiza ou apoia mesmo o fascismo clerical jihadista iraniano. E é também por isso que o herói britânico do antifascismo não veio da esquerda mas da direita conservadora.

É uma esquerda que perdeu a noção do ridículo; depois de duas décadas sem ver o perigo ditatorial por trás do populismo de Chávez, pretende dar lições de perspicácia e profere alertas sobre as consequências da chegada de Bolsonaro ao poder.

Trata-se de uma esquerda que para além de apoiar tudo ou quase tudo o que de pior existe à face da terra desde que lhe consiga colar um conveniente rótulo ‘anti’ se tornou o principal garante do regime plutocrático a que estamos submetidos no Ocidente; pois se a alternativa é a Venezuela, quem com lucidez e bom senso pode hesitar em escolher antes qualquer dos regimes ocidentais mais à esquerda ou à direita?

Quanto mais depressa nos desembaraçarmos desta pseudoesquerda mais rapidamente poderemos pensar em formas alternativas de governo às oligarquias que dominam o Ocidente.


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