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Domingo, Dezembro 22, 2024

Os tabuleiros de jogo da extrema-direita

Nuno Ivo Gonçalves
Nuno Ivo Gonçalves
Economista, Mestre em Administração e Políticas Públicas, Doutor em Sociologia Política. Exerceu actividade em Gestão Pública, Recuperação de Empresas, Auditoria e Fiscalização e foi docente no ISE e no ISG. Investiga em História Contemporânea.

O presente artigo visa, em continuação dos anteriores, alertar para alguns tabuleiros em que a extrema-direita nos “países ocidentais” (curioso o renascimento do conceito) vem procurando jogar, e discutir em que medida eles são utilizáveis em Portugal.

Numa breve enumeração vemos o questionar da legitimidade do sistema político (em relação ao nosso país já falei dos coletes cinzentos e das justificações que avançam para a introdução do sistema uninominal nas eleições para a Assembleia da República, mas está aí também de novo a questão do número de deputados), o nacionalismo e o orgulho nacional ou nacional-religioso, a insegurança, e, por si só, ou em conjugação com os já referidos,  o ódio: o ódio aos costumes “desviantes”, o ódio racial ou aos estrangeiros, o ódio aos muçulmanos… potenciados estes ódios pelo medo e, por vezes, pela inveja.

Estas plataformas têm sido geralmente denunciadas como oportunistas – os que agitam estes temas não acreditarão verdadeiramente no que veiculam, mas utilizam-nos para tentar alcançar / reforçar o seu poder – e apenas em alguns casos (mas estes não devem ser menosprezados) colocam na agenda o bloqueio de conquistas sociais, que esteve subjacente na altura de forma mais generalizada à onda de fascismos nos anos 1920 e 1930, ou a retirada das existentes.

Os argumentos em favor de “restaurar a grandeza” de alguns dos países ocidentais parecem relevar do wishful thinking, como no caso do Brexit. Não abordarei aqui a questão dos movimentos de extrema-direita nos países árabes e em geral no mundo muçulmano (é assim que devem ser vistos a Al Queda e o Daesh), no entanto assinalo que a presente agitação anti-muçulmana nos países europeus apenas os pode reforçar e prejudicar os esforços pacificadores da Igreja Católica e a manutenção da presença histórica de comunidades cristãs em  zonas como o Médio Oriente.

Excepção portuguesa?

A última grande pulsão nacionalista em Portugal, aliás canalizada pela propaganda republicana, esteve ligada à expansão colonial e ao Ultimato britânico. Com a descolonização, é pouco provável que o levantar “hoje de novo o esplendor de Portugal” e o marchar “contra os bretões” ainda que o hino fosse todas as manhãs cantado em todas as escolas e acompanhado do hastear da bandeira, venham a ser inspiradores de qualquer novo movimento. Valha-nos o futebol onde é invariavelmente entoado. No plano estritamente político, Portugal foi integrado na Europa para garantir a democracia, ou pelo menos, uma certa forma de democracia, e para beneficiar dos fundos estruturais, e a direita portuguesa pendurou-se no período da troika nas orientações comunitárias. Não me parece que nada seja de esperar daí.

Nas questões ligadas aos costumes, este país ainda hoje dado como católico foi abatendo as barreiras que afastavam ou dificultavam o divórcio, o reconhecimento das uniões de facto, a interrupção voluntária da gravidez, a união entre pessoas do mesmo sexo, no que me parece reflectir sobretudo um maior respeito pela autonomia de decisão dos outros e pela respectiva privacidade, em atitude que a experiência vem mostrando ser transversal aos vários partidos, uma vez as decisões iniciais tomadas. Mostrou-se que as “causas fracturantes” não fracturavam a opinião  tanto quanto  se dizia. Também não me parece que alguma coisa seja de esperar desse lado.

Já quanto às questões de segurança, estas serão sempre, em qualquer sociedade, um terreno de agitação potencial, sobretudo na medida em que possam ser tomados como responsáveis / alvo de retaliação grupos específicos. Não deixo de ver com inquietação o uso e abuso de legislação anti-terrorista em situações para as quais não terá sido inicialmente pensada, quando, por felicidade, não têm ocorrido em território português factos semelhantes aos de outros países. E fico a pensar como reagiremos se ocorrerem, e como se comportará uma economia que depende cada vez mais dos fluxos turísticos. Resistirá a “excepção portuguesa” ?

Antes de passar à questão dos grupos específicos que a extrema-direita portuguesa, orgânica ou inorgânica, tem sinalizado como alvo, anoto que em torno das políticas de legalização da entrada de imigrantes para exercício de actividades profissionais se regista habitualmente alguma controvérsia derivada da pressão sobre os salários inerente à entrada de imigrantes dispostos a aceitarem piores condições que os nacionais, respondendo-se muitas vezes que os ditos nacionais não estão dispostos a exercerem as mesmas actividades  – à semelhança do padrão que noutros países permite aos emigrantes portugueses encontrarem trabalho …  – ainda que atingidos pelo encerramento dos estabelecimentos em que laboram.

Impõe-se por um lado, reforçar a eficácia dos esforços de colocação dos residentes que procuram emprego, por outro lado garantir que aos imigrantes são aplicadas as normas de contratação e de remuneração legalmente estabelecidas. Se tal não for feito, facilmente se assacará aos imigrantes uma concorrência desleal que na realidade é da responsabilidade dos empregadores nacionais.

Os “Outros”

A atitude hostil de grande parte da população portuguesa em relação aos ciganos, que em rigor não podem ser “reenviados para a terra deles”, vem de há muito tempo, radica na existência de modos de vida muito diferentes, e num sentimento mais recente de que, apesar de se manterem à margem, beneficiam de apoios garantidos à generalidade da população, mas pensados para outras situações.  Também se alega que estarão por vezes envolvidos enquanto famílias ou grupos em conflitos violentos com outros sectores da população e até com serviços públicos. O raramente a comunicação social identificar etnias dos participantes limita a repercussão destes acontecimentos, mas as histórias circulam independentemente da sua publicação.

Para quem desvalorize o potencial explosivo destas situações, recordo que nos últimos anos de Primeiro Ministro de Cavaco Silva, cujo Governo não era considerado como sem autoridade, se chegou a admitir a criação de milícias, que mais recentemente se realizou uma vasta mobilização em  defesa de um elemento da GNR que fora condenado por disparo sobre um veículo do qual resultara a morte de um miúdo, e obrigado ao pagamento de uma indemnização (chegando a escrever-se que o pai tinha levado o miúdo consigo  para aprender a roubar e era muito  bem feito), e, nas últimas eleições municipais de Loures, a bem sucedida, em termos de votação, candidatura de André Ventura à vereação, da qual o CDS se desvinculou mas que Pedro Passos Coelho patrocinou sem problemas.

Em relação aos africanos e afro-descendentes, de cuja existência viemos a ser “recordados” pelos últimos acontecimentos, sempre direi que os países colonizadores abriram inevitavelmente a porta para os seus ex-colonizados se radicarem nas metrópoles e aí procurarem soluções de vida, uma vez que a língua e a organização profissional não lhes eram estranhas. Tal sucedeu com os países da América Latina e Espanha, com os países da Comunidade Britânica e a Grã Bretanha (apesar dos esforços de contenção desta última), com as ex-colónias francesas e a França, e também com a Itália e três das suas antigas possessões, aliás detidas por pouco tempo, a saber, a Albânia, a Eritreia e a Líbia. 

Porque não haveria de suceder o mesmo com as ex-colónias portuguesas e Portugal, sendo que a potência colonizadora deveria até ter garantido livre acesso, por um lado aos cabo-verdianos, que desempenharam um papel historicamente relevante nas administrações públicas da Guiné e de Angola, por outro aos comandos guineenses e outros que se bateram a seu lado?

Aliás para quem se admire de o Reino Unido e a França disporem ainda de “territórios ultramarinos” recomendo um exercício de história contrafactual: como seria a evolução de Portugal e dos seus então territórios se o regime de Salazar tivesse aceite a proposta do antigo Ministro Caeiro da Mata de atribuir a Cabo Verde o estatuto de Ilhas Adjacentes, que parece ter recebido tanta atenção com a proposta formulada décadas depois por Mário Soares no sentido de ser criada, tal como existe com o Brasil, a possibilidade de dupla cidadania luso-cabo verdiana em igualdade de direitos ?

Ultrapassada a necessidade sentida aquando da concretização das independências das ex-colónias de levar os interessados a escolher uma única nacionalidade, faria sentido ter desde logo restabelecido o jus solis para quem viesse a nascer em Portugal. Não o ter feito levou a que viessem a nascer no Portugal pós-independências muitos jovens, não apenas cabo-verdianos, que ficaram amarrados à nacionalidade dos pais e a uma “terra de origem” desconhecida (colocando-os numa situação semelhante à que viriam a encontrar-se numerosos açorianos deportados pelos Estados Unidos para uma “terra de origem” para eles estranha), sendo de louvar o trabalho de Rui Pena Pires e outros académicos e políticos que vieram a explicar, a bem da integração, a necessidade de alterações legislativas, que em termos práticos eram exigidas, por exemplo, pela necessidade de integrar estes “estrangeiros” no desporto federado.

Para a extrema-direita que confunde nacionalidade e cor da pele, e não se ensaia, como já mostrou, para assassinar um português com a cor da pele “errada”, esta regularização é indesejável. De qualquer forma o mais grave nas tensões recentes  com estas comunidades terá sido a atitude de quem se deve relacionar institucionalmente com elas, designadamente a polícia. Infelizmente mesmo quando os Comandos desta mostram manter já um discurso civilizado e atento, nas fileiras há quem destoe. No episódio de Alfragide aqueles de quem se esperava disponibilidade para colaborem com os mediadores tomaram estes como alvos. Sem querer comentar os aspectos disciplinares e criminais desse episódio e dos mais recentes, os Comandos têm de dispor da latitude necessária, numa base funcional, para reorganizar as equipas sempre que se torne necessário.

Vir criticar o discurso da polícia, chamando a este “bosta”, e o de outras organizações (presumo que o do PCP ou da associação sindical maioritária na PSP) terá sido para Mamadou Ba um gesto natural, mas o resultado foi que o PNR, que só juntou meia dúzia de gatos para uma sua manifestação, ficou confortado com o hino à polícia aprovado na Assembleia da República sob proposta do PSD e do CDS e com os votos do PS. Felizmente o BE é de “esquerda radical” e não de ”extrema-esquerda”, se fosse desta última já teria tido de expulsar Robles e Mamadou por provocação.

Finalmente, os muçulmanos. As potências europeias colonizadoras, protectoras ou mandatárias, estiveram presentes em muitos países muçulmanos, e posteriormente acomodaram bem ou mal a imigração destes, o que também veio a suceder com a Alemanha, a Bélgica e os países do Norte da Europa. Lançam-se agora culpas ao multiculturalismo, mas não seria possível a integração pura e simples. No caso de Portugal os conflitos da Reconquista, do Norte de África e da Índia de Quinhentos não deixaram sequelas no período colonial mais recente. As comunidades muçulmanas estruturadas no território nacional são cooperantes.

O país praticamente não foi demandado directamente por refugiados e o acolhimento de refugiados recolocados por instâncias internacionais tem sido reduzido. A experiência europeia tem mostrado que as infiltrações em refugiados têm uma expressão mínima, e que a “radicalização” de jovens nascidos na Europa é a ameaça. Os jovens de origem portuguesa ou mesmo “radicalizados” em Portugal não têm actuado cá, o discurso ensaiado pela extrema-direita não tem base fáctica. Mas poderá vir a tê-la.

Há, é claro, o caso das mesquitas. Entendo que o Estado não deve financiar equipamentos religiosos. No entanto a Direcção-Geral de Equipamento Regional e Urbano comparticipou durante muitos anos a construção de Igrejas através dos Investimentos do Plano Director de Serviços no então Departamento Central de Planeamento, obriguei a inscrever esses “empreendimentos” num programa próprio, com classificação funcional autónoma. Mal deixei o lugar, em 1985, voltaram a ser camufladas como “Habitação e Urbanismo”. Essa luta compro-a, mas não exclusivamente a propósito das mesquitas e apenas com base na defesa da não-confessionalidade do Estado.

Brasil e Hungria.

A grande diferença será já não existirem “frentes populares” que se oponham ao fascismo.

A aliança secular obrigou-nos a marchar contra os canhões e não contra os bretões.  

  As chamadas milícias de Francelos. Na mesma altura Augusto Santos Silva escrevia na sua coluna de opinião no Público sobre o cigano João Garcia.

Caso Ernano, que percorreu várias instâncias judiciais.

Com a impopularidade daí decorrente entre os naturais.

José Caeiro da Mata


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