Há muito tempo que é reconhecido aos académicos americanos uma invejável capacidade de análise dos fenómenos económicos, tão desapaixonada que não raras vezes chegam a contradizer as próprias teses geopolíticas dos poderes norte-americanos.
Talvez não se insira perfeitamente nesta definição, mas o mais recente trabalho de Ashoka Mody (economista, professor em Princeton, ex-Banco Mundial e ex-chefe da missão do FMI na Irlanda, próximo do Prémio Nobel George Akerlof) – EuroTragedy a drama in nine acts –, do qual tive conhecimento através de uma entrevista do autor à plataforma ATLANTICO, traz consigo a inegável vantagem de levantar questões e de nos ajudar a reflectir sobre nós próprios, a Europa e o Euro.
Defensor da ideia que a União Monetária foi desejada e gizada por sucessivos presidentes franceses (o processo ter-se-á iniciado com Georges Pompidou para se concluir com François Mitterrand; este e Jacques Delors queriam o euro que Helmut Kohl acabou por aceitar, mas nos termos por si impostos) como via para controlar o crescente poder alemão, fácil se lhe tornou concluir que o resultado final foi precisamente o oposto porque se a Alemanha se mostrou reticente no início do projecto acabou por o aceitar com a imposição dos dois pontos que hoje se reconhecem como os principais entraves a um melhor funcionamento da moeda-única: as regras orçamentais e o mandato de estabilidade de preços do Banco Central Europeu.
Assim a dominação alemã acabou por aparecer de uma forma ainda mais desagradável, porque agora, os alemães juntam às suas vantagens económicas a possibilidade de impor reformas económicas alemãs na Europa e na França. Foi exactamente isso que aconteceu nos últimos 20 anos, com ministros das Finanças alemães que, implícita ou explicitamente, tentaram dizer à França e ao resto da Europa que políticas económicas deveriam implementar.
Ashoka Mody, que de modo algum pode ser classificado como um economista heterodoxo (eufemismo para designar aqueles que não seguem os modelos liberal ou neoliberal), apresenta um interessante enquadramento histórico do problema e não perde a primeira oportunidade para lembrar as muitas advertências, produzidas pelos mais variados especialistas foram liminarmente rejeitadas pela certeza franco-alemã (que julgo mais correcto e objectivo atribuir aos dogmas neoliberais do “trickle down economics” e do equilíbrio orçamental a todo o custo) sem nunca as levar em conta, nem que o Euro inverteu os imensos benefícios dos primeiros passos da construção europeia, período em que houve alguma convergência económica.
Aceitar a ideia que a moeda única surge principalmente como um projecto político pode ajudar a entender as suas disfuncionalidades, mas o principal a reter estará no mandato exclusivo para a estabilidade dos preços pelo BCE, nas regras orçamentais – o famoso limite dos 3% – e no dogma das “reformas estruturais”, que mais não são que outra via para manter as vantagens dos países ricos sobre os países pobres. É este absurdo de regras desprovidas de qualquer racionalidade económica, que leva Mody a falar numa “bolha cognitiva” que dificulta a distinção entre a realidade e a fantasia.
Num sistema de moeda única é óbvio que uma política monetária aplicada a vários países sempre provocará uma situação que não corresponde aos interesses de todos; a política monetária será restritiva demais para os países mais frágeis e flexível demais para os países mais fortes, especialmente se não for acompanhada por mecanismos de transferência compensantórios. E isso os alemães sempre o recusaram, de pouco ou nada servindo os trabalhos elaborados sobre as condições para a criaçãode uma união fiscal que apontavam para a necessidade de cada Estado-membro contribuir com um valor entre os 5 e os 7% do seu PIB para um orçamento comum que pudesse ser utilizado em situações de crise ou recessão, pondo em causa a afirmação da sua vontade na construção de uma união política.
Com as limitações da moeda única explicadas por Ashoka Mody (entre as quais se conta a relativa subversão do conceito de democracia criado pelos mecanismos do regime de tutela) e com aquela que ele nunca aborda – a do financiamento dos estados da Zona Euro ter passado a depender exclusivamente do sector financeiro – e na ausência de uma união fiscal e de um orçamento comunitário que pudesse compensar as assimetrias internas, a Zona Euro caminha para um duplo abismo: o do agravamento das tensões políticas entre os Estados-membros, por via do agravamento da divergência entre países ricos e pobres, e o da crescente onda nacionalista, alimentada pela crise sistémica e pelo evidente fracasso das políticas escolhidas para a enfrentar.
Diz ainda Ashoka Mody que cada nova crise trará novos desafios para os quais a Europa estará cada vez menos preparada e que face à evidente dependência do crescimento do comércio mundial para assegurar o seu próprio crescimento, quando a economia europeia não revela já o mesmo dinamismo nem a necessária pujança face aos seus concorrentes (isto sente-se até nas outrora todo-poderosas indústrias farmacêutica, química e automóvel), era necessária outra visão e capacidade de inovação e eu acrescento a necessidade de recentrar o foco principal da actividade económica no bem-estar das populações em detrimento do crescimento a qualquer preço das exportações.
Em conclusão, o que traz de novo o trabalho de Ashoka Mody?
A resposta variará consoante a opinião/posição de cada leitor. Pouco ou nada, para aqueles que há muito vêm apontando as falhas e as limitações ao modelo da moeda-única europeia, alguma coisa para os que reconhecendo algumas falhas sempre classificaram de radicais as análises dos mais críticos – afinal Mody não pode ser enquadrado como mais um Piketty ou um Varoufakis – ou talvez muito para quem atribui mais importância à origem das críticas que ao seu conteúdo.