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Domingo, Dezembro 22, 2024

Crimes contra a humanidade e hipocrisia ocidental

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

A solução Guantánamo é colocar longe das vistas um problema que a sociedade prefere pensar que não existe. É uma falsa solução para um problema bem real.

Virar as costas às vítimas e às responsabilidades, esperar que uns e outros se diluam no tempo é apenas um convite a vermos repetido o mesmo drama com resultados que não serão menos lamentáveis.

1. O regresso dos jihadistas

Mercê de um dos famosos tweets de Donald Trump a Europa finalmente acordou para as suas responsabilidades nos crimes de guerra perpetrados por seus nacionais afiliados no grupo jihadista do ‘Califado ‘ (conhecido igualmente por ISIS e Daesh) na Mesopotâmia.

Na verdade, desde o princípio do afluxo de jihadistas europeus ao teatro de guerra da região que a opinião pública sempre colocou a problemática como a do seu regresso, como se os crimes entretanto praticados por eles não tivessem qualquer importância, e apenas fosse necessário evitar que eles fossem repetidos em território europeu.

A imprensa depressa fez manchetes das declarações de alguns desses potenciais retornados, secundarizando as notícias simultâneas relativas às novas descobertas de valas comuns com milhares de restos mortais das vítimas desses criminosos.

Enquanto no Iraque se têm praticado simulacros de justiça resultando em milhares de condenações à morte e o regime sírio terá assassinado mais gente que qualquer outro grupo jihadista e pouco se preocupando com essas formalidades, é com os vários grupos curdos que a questão se tem tornado mais aguda, porque existe da parte deles mais respeito pela vida humana mas uma falta de capacidade para fazer frente ao desafio.

Na verdade, há anos que as forças curdas que combateram esse grupo jihadista têm reclamado publicamente aos países de origem que estes tomem a seu cargo centenas de prisioneiros europeus sem que nem os governos nem a opinião pública dêm qualquer importância ao assunto. As respostas que agora deram são profundamente revoltantes e hipócritas.

O Reino Unido resolveu reenviar uma sua jovem jihadista para o Bangladesh por ela ter ascendência nesse país, como se este país fosse o caixote do lixo da incapacidade europeia, ignorando ou praticamente não dando qualquer resposta ao tema; a Bélgica, anunciou que preferiria um Tribunal Internacional, proposta impraticável que apenas pretende esconder que nada quer fazer, enquanto a França se limitou a declarar que não queria receber nenhum jihadista.

Na Alemanha as questões assumem proporções mais graves. Ficou a saber-se nos últimos dias que o Tesouro alemão continua a pagar pensões a colaboradores belgas nos seus crimes de guerra, em obediência a um decreto de Hitler de 1941, enquanto tem resistido ao máximo a indemnizar vítimas ou sobreviventes dos seus crimes contra a humanidade ou a devolver o espólio dos roubos nazis.

O Presidente Steinmeier felicitou pessoalmente os dirigentes da teocracia iraniana pelos quarenta anos do criminoso regime e ficou a saber-se que um dos colaboradores do ataque jihadista no mercado de Natal de 2016 tinha sido expulso em vez de ser julgado na Alemanha. O Ministro alemão dos negócios estrangeiros, Heiko Maas, disse que as coisas eram mais complicadas do que pensam os americanos, como se fosse obrigação dos outros resolver os problemas alemães e como se alguma vez a questão não estivesse presente há já muitos anos. 

2. Equidade e proporcionalidade no combate ao crime

Os crimes praticados por jihadistas podem ser classificados como crimes de guerra ou como crimes civis; pode-se considerar que a jurisdição pertinente é a do local do crime ou a da nacionalidade ou pode ainda considerar-se um quadro supranacional.

Como sugeri no livro colectivo que dirigi sobre terrorismo pode mesmo alvitrar-se a existência de uma nova dimensão entre o que foi tradicionalmente considerado o direito civil e o militar, e entre as tradicionais jurisdições definidas territorialmente quando o ciberespaço hoje dominante torna essa noção ilusória.  

Pode-se fazer o que se quiser, desde que daí resulte um quadro legal claro, eficaz, equitativo e proporcional.

Podem ainda ser consideradas agravantes no quadro penal, quer dizer que um assassínio poderá ter agravantes ou atenuantes dados pela sua lógica e motivações. Aqui creio que o suprematismo religioso, por extensão do suprematismo racial, poderia contar como agravante.

O que é essencial é tratar penalmente o assassínio como assassínio; a presença numa organização criminosa, o incitamento ao assassínio, a escravatura, violação etc., tal como são e não de outra forma.

Naturalmente que as autoridades têm de procurar compreender a lógica desses crimes. Da mesma forma que as autoridades devem investir no estudo e prevenção do crime doméstico, têm naturalmente de fazer o mesmo quanto ao crime jihadista ou de qualquer outra ideologia fanática, desde que não confundam esse exercício com o da menorização ou branqueamento do crime.

Mas a criação de quadros legais e criminais diferentes, especialmente se tratarem os crimes bem tipificados como um fenómeno que continua a não ter definição legal ou conceptual precisa, o terrorismo, só pode servir para a confusão e para a negação da justiça.

3. A síndroma de Guantánamo

Os argumentos que hoje esgrimem os dirigentes ocidentais são fundamentalmente os mesmos que levaram ao fiasco de Guantánamo, que por vários anos foi tomado pela opinião pública como o símbolo da ‘violação dos direitos humanos’, mercê de uma campanha multimilionária paga pelas ricas famílias de alguns dos jihadistas mas que violou acima de tudo os direitos das vítimas do jihadismo a ver ser feita justiça.

A solução Guantánamo é colocar longe das vistas um problema que a sociedade prefere pensar que não existe. É uma falsa solução para um problema bem real.

O argumento que nos dão de que as autoridades nada podem fazer porque não há provas é inaceitável. A verdade é que foram recrutados milhares de jihadistas em território europeu sem que as autoridades criminalizassem as organizações de destino e as suas afiliadas e sem que tomassem qualquer medida junto dos países de trânsito.

A verdade é que existem milhares de valas comuns e muitos sobreviventes prontos a testemunhar. Tudo isso dá naturalmente muito trabalho à investigação e aos tribunais, mas é um trabalho que não pode deixar de ser feito como não pode deixar de ser feito em relação a qualquer crime.

Virar as costas às vítimas e às responsabilidades, esperar que uns e outros se diluam no tempo é apenas um convite a vermos repetido o mesmo drama com resultados que não serão menos lamentáveis.


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