A cerimônia do Oscar, em Los Angeles (EUA), neste domingo (24), não foi de todo frustrante. Ao apostar na diversidade e na pulverização do conjunto dos prêmios, a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas prestigiou como nunca as “minorias” de Hollywood, como negros, latinos e mulheres. Porém, em um decepcionante anticlímax, a escolha do polêmico e convencional Green Book – O Guiacomo melhor filme ofuscou a festa do Oscar 2019.
Em janeiro, Green Book, de Peter Farrelly, já havia vencido o Globo de Ouro de melhor musical ou comédia, bem como o prêmio do Sindicato dos Produtores (PGA). Historicamente, as duas premiações, especialmente a segunda, têm funcionado como uma prévia para a principal estatueta do Oscar – a de melhor filme.
Só que o favoritismo de Green Book foi abalado, nas últimas semanas, por uma contrapropaganda furiosa. Baseado numa história verídica, o longa aborda a amizade, em plena década de 1960, do pianista negro Don Shirley (Mahershala Ali) com seu motorista italiano Tony Lip (Viggo Mortensen), um imigrante racista. A família de Don Shirley acusou a produção de inventar passagens sobre o artista, quase todas depreciativas. Espectadores e críticos, com base em ambiguidades no roteiro, ainda tacharam o filme de “racista”.
Ao mesmo tempo, cresceu, na reta final, o lobby por dois filmaços – Roma, do mexicano Alfonso Cuarón, e Infiltrado na Klan, de Spike Lee, referência no cinema negro norte-americano. A vitória de qualquer um deles representaria não apenas um sopro de renovação e abertura ao cinema mundial. Seria também uma derrota simbólica para Donald Trump – o líder da Casa Branca que leva a cabo uma cruzada contra a imigração, mas é tolerante com a Ku Klux Klan.
Spike Lee comemora o Oscar de melhor roteiro por Infiltrado na Klan com Will Smith, Wesley Snipes, Denzel Washington e Samuel L. Jackson
Por fora, corria o drama biográfico Bohemian Rhapsody, sobre a lendária banda Queen e seu vocalista Freddie Mercury, além da refilmagem de Nasce uma Estrela, produzida, dirigida e estrelada por Bradley Cooper, mas impulsionada, sobretudo, pela surpreendente e carismática atuação da cantora Lady Gaga.
A derrapada da Academia na premiação máxima não chegou a estragar a festa, Mas deixou no ar a sensação de que o estoque de ousadia de Holywwod, àquela altura da noite, já estava esgotado, a ponto de Spike Lee não ter escondido o semblante de desapontamento.
Pontos altos
Coube ao próprio Spike Lee e também a Lady Gaga os pontos altos da cerimônia. Aos 32 anos, a cantora e compositora norte-americana esbanjou talento e afinação no dueto com Bradley Cooper no palco do Dolby Theatre. Protagonistas de Nasce uma Estrela, eles apresentaram ao vivo a música-tema do filme Shallow, pela qual Gaga levou o Oscar de melhor canção original.
Ao agradecer pela conquista, a artista, aos prantos, comparou-se com sua personagem: “Trabalhei duro por muito tempo para chegar até aqui. Não tem a ver com ganhar – tem a ver com não desistir”, afirmou a cantora.
Se você tem um sonho, lute por ele. Existe uma disciplina na paixão. Não é sobre quantas vezes você foi rejeitado, caiu e teve que levantar. É sobre quantas vezes você fica em pé, levanta a cabeça e segue em frente.”
Spike Lee, indicado pela primeira vez ao Oscar – e, de quebra, como roteirista e diretor –, levou a troféu de melhor roteiro adaptado por Infiltrado na Klan. Ao receber o prêmio das mãos do ator Samuel L. Jackson, o cineasta quebrou o protocolo, pulou no colo do amigo e proporcionou o momento mais irreverente da noite. Foi aplaudido de pé.
Não bastasse isso, Lee fez um discurso memorável. Lembrou que, em 2019, a escravidão nos Estados Unidos completa 400 anos. “A palavra hoje é ironia. No ano de 1619, nossos ancestrais foram roubados da África e trazidos para Jamestown, Virgínia. Foram escravizados”, declarou. “Agradeço à minha avó, que economizou 50 anos de aposentadoria para colocar seu primeiro neto na Faculdade de Cinema de Nova York.”
No arremate, Lee evocou o título de sua obra-prima, Faça a Coisa Certa, de 1989, para criticar Donald Trump.
Em 2020, vai haver eleição [à Presidência dos Estados Unidos]. Vamos todos nos mobilizar. Vamos todos ficar do lado certo da história, fazer a escolha moral do amor contra o ódio. Vamos fazer a coisa certa! Vocês sabem que eu tinha que colocar essa frase.”
Negros, latinos e mulheres
Nenhuma edição do Oscar supera esta de 2019 em número de premiações a mulheres e negros – dois segmentos que vinham sendo esnobados, mas reagiram e dobraram a Academia. As mulheres totalizaram 15 troféus na noite, superando o recorde de 12 estatuetas, alcançado em 2007 e 2015. Já os artistas afro-americanos, graças a filmes como Green Book, Infiltrado na Klan, Se a Rua Beale Falasse e Pantera Negra, saíram da cerimônia sete Oscars.
Foi o caso de Mahershala Ali. Apenas dois anos depois de ganhar, em 2017, o Oscar de melhor ator principal por Moonlight – Sob a Luz do Luar, agora ele ficou com o prêmio de melhor coadjuvante por Green Book. É o primeiro ator negro na história do Oscar a vencer nas duas categorias.
Há três nomes que aparecem nas duas listas – a de vencedores negros e de ganhadoras do sexo feminino. Por Pantera Negra, Ruth E. Carter levou o Oscar de melhor figurino, enquanto Hannah Beechler ficou com a estatueta de melhor direção de arte. Já Regina King (Se a Rua Beale Falasse) foi a melhor atriz coadjuvante. Nunca antes três mulheres negras foram premiadas numa mesma edição do Oscar.
Em outro feito inédito, oito mulheres triunfaram em quatro categorias ligadas à produção: Elizabeth Chai Vasarhelyi e Shannon Dill (de Free Solo, melhor documentário), Rayka Zehtabchi e Melissa Berton (Period. End of Sentence, melhor documentário em curta-metragem), Domee Shi e Becky Neiman-Cobb (Bao, melhor curta-metragem de animação) e Jaime Ray Newman (Skin, melhor curta-metragem).
Ao menos no número de prêmios, Bohemian Rhapsody foi o maior vencedor da noite, com quatro estatuetas, seguido de Green Book – O Guia, Pantera Negra e Roma, com três Oscars, cada um. O caso de Roma foi o mais chamativo. Pelo filme – que foi produzido e lançado pela Netflix –, o mexicano Alfonso Cuáron subiu três vezes ao palco, amealhando os troféus de diretor, fotografia e filme estrangeiro. As ruas da Cidade do México se encheram para celebrar, acima de tudo, o primeiro Oscar de melhor produção estrangeiro dado a um filme do país.
Cuáron já havia vencido na categoria de direção, em 2014, por Gravidade, mas jamais um latino-americano tinha acumulado tantos Oscars numa mesma edição. Desta vez, além de faturar o triplo de estatuetas, ele teve o privilégio de receber o troféu de melhor diretor diretamente das mãos de seu compatriota e amigo Guillermo Del Toro, diretor premiado no ano passado, por A Forma da Água.
O México, mais do que nunca, se firma como a vanguarda do cinema na América Latina e Caribe. Num Oscar em que mulheres e negros foram a cara da cerimônia, Alfonso Cuáron mostrou que os latino-americanos seguem em alta na Academia – mais um trunfo dessa histórica edição.
Que na próxima cerimônia, em 2020, as marcas da ousadia e da diversidade possam chegar até a derradeira e mais aguardada das premiações. Foi apenas o que faltou neste ano – e, no entanto, não foi pouco.
Por André Cintra | Texto em português do Brasil
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