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Domingo, Novembro 3, 2024

Neoliberalismo: a crise oculta da Alemanha

José Carlos Ruy, em São Paulo
José Carlos Ruy, em São Paulo
Jornalista e escritor.

Os liberais elogiam a Alemanha moderna como uma grande história de sucesso. Mas por trás do verniz da prosperidade, o ressentimento cresce entre os alemães comuns.

Entrevista com Oliver Nachtwey, por Julia Damphouse[1]

Desde a reunificação alemã em 1990, o centro político da Europa tem gravitado entre Bruxelas e Berlim. Nos confrontos sobre o futuro da zona do euro, o governo de Angela Merkel consistentemente se posicionou como defensor da ordem e estabilidade, contra o caos desencadeado pelas nações devedoras. No entanto, a situação não é tão bonita no quintal da própria Merkel. Com os dois principais partidos de centro caindo nas pesquisas e a extrema direita em alta, a atenção dos analistas se volta para os males sociais subjacentes ao verniz de sucesso.

Autor do livro recente “A crise oculta da Alemanha”, Oliver Nachtwey fala sobre o declínio na mobilidade ascendente, a queda das expectativas e as razões por que a ordem política pós-Segunda Guerra Mundial começou a rachar.

Julia Damphouse: A economia alemã é frequentemente retratada na mídia internacional como excepcionalmente estável, uma história de sucesso quando comparada a economias europeias “voláteis” ou endividadas. O que esses analistas não vêem e como você vê as coisas de maneira diferente?

Oliver Nachtwey: No mais escuro da noite, a mais brilhante as estrelas. A Alemanha vai muito bem quando comparada com outros países capitalistas avançados, e depois de 2005 também ia melhor do que fora nos primeiros quinze anos após a reunificação. Mas, em termos mais gerais, a Alemanha está no mesmo caminho de maior estagnação e crescente desigualdade, como os demais países capitalistas avançados.

A taxa média de crescimento anual, nos anos 1950 e 60, fora quase 5%, enquanto o aumento do PIB contemporâneo tem sido comparativamente muito modesto. Apesar de se falar em um boom na economia alemã, desde 2000 o que se vê é uma taxa de crescimento médio de pouco mais de 2%.

Mais significativamente as mudanças econômicas e institucionais desde o início dos anos 2000 prejudicaram substancialmente o antigo modelo alemão de capitalismo domesticado, que incluiu um nível relativamente elevado de segurança social, níveis modestos de desigualdade, e um alto nível de participação social e política.

Oliver Nachtwey, Professor de Sociologia da Universidade de Basileia

Até o início dos anos 1990 os alemães ocidentais poderiam geralmente esperar o que nos referimos como “relações trabalhistas normais.” Para os trabalhadores, isso significava um trabalho com contrato permanente, proteção contra demissão e integração no sistema de segurança social do estado, incluindo seguro de saúde e de desemprego. Muitos também tiveram a oportunidade de participar de um processo de codeterminação, que lhes deu alguns elementos rudimentares da democracia econômica. Além dos benefícios materiais óbvios, isso também proporcionou um forte senso de segurança. Os trabalhadores sentiram o que podiam esperar de sua situação de emprego e podiam planejar seu futuro com um grau de certeza elevado . No entanto, este período não deve ser pintado como uma idade de ouro. Enquanto o alemão -essencialmente masculino, da classe trabalhadora, estava subindo até a década de 1970, “trabalhadores convidados” foram trazidos para a Alemanha, mas foram rapidamente removidos novamente durante a primeira crise econômica. E naquele tempo o emprego normal era geralmente reservado a um alemão.

Agora, a desigualdade está em ascensão e o risco para as pessoas aumenta, assim como a mobilidade para baixo na escala social. A crise política levou a um alto nível de instabilidade no sistema partidário, permitindo que a extrema direita encontre um lugar.

O que causou esta mudança que levou à mobilidade social descendente?

A deterioração das relações trabalhistas é a principal causa da transição para uma sociedade caracterizada pela mobilidade descendente.

Na década de 1960, quase 90% dos empregos eram regidos pelas chamadas “relações trabalhistas normais”. Mas desde então a situação mudou drasticamente. Desde a década de 1970, as mudanças na economia e na regulação estatal levaram ao aumento das relações de trabalho precárias. Em 1991, 79% de todos os trabalhadores tinham relações de trabalho normais, número que por volta de 2014 caiu para 68%.

Em outras palavras, há um terço da força de trabalho nas chamadas relações de emprego atípicas. Nem todos esses trabalhadores são precários num sentido estrito, uma vez que alguns dos autônomos são bem pagos e estão felizes em não ter relações trabalhistas normais. Mas uma clara maioria é, de fato, precária. São trabalhadores de tempo parcial, temporários ou contratados por agências e, em geral, têm menos benefícios e segurança. Isto os deixa incapazes de planejar seus futuros.

Essas mudanças também tiveram um impacto material imediato: em particular, houve um crescimento nos setores de salários mais baixos, onde as pessoas ganham menos de 60% da média dos salários. Isto está muito próximo da definição oficial de pobreza – este setor agora tem mais de 20% da força de trabalho. Em particular, os trabalhadores em empregos de baixo salário no setor de serviços compõem um novo “proletariado de serviço”.

No livro você argumenta que a mudança resulta da precarização no local de trabalho: o que isso significa?

No passado do capitalismo o “exército industrial de reserva” era formado pelos desempregados. A procura de trabalho exerceu uma pressão estrutural externa sobre os salários e as condições de trabalho dos alemães.

O que mudou é que o aumento no emprego temporário ou de agência internalizou esta função, nas próprias empresas. Os empregados estão cada vez mais divididos em dois grupos, com um desequilíbrio de poder entre suas respectivas posições na empresa e no mercado geral de trabalho. De um lado, estão os empregados permanentes, que vêem sua relativa segurança como um privilégio; do outro lado, os precários, os trabalhadores temporários e os de agências. Os trabalhadores de agência podem estar dentro da empresa, mas com um pé fora. Assim, a sua mera presença recorda ao pessoal permanente que o seu futuro também pode se tornar menos seguro.

No passado os trabalhadores podiam esperar que suas vidas melhorariam, e que a vida de seus filhos seria ainda melhor. Mas desde a virada do século, a pobreza e a desigualdade crescem. Este aumento nos níveis de pobreza se caracteriza menos pelo incremento acentuado da mobilidade descendente do que por um “declínio na mobilidade ascendente”. Para colocar isso de outra forma, a mobilidade descendente assume a forma da incapacidade dos trabalhadores para melhorar a sua condição. Aqueles que estão no fundo acham cada vez mais difícil recolocar-se em pé.

Uma observação importante que você faz é que a mudança para a precariedade no local de trabalho não afeta a todos igualmente. Como é que esta mudança afeta particularmente os jovens?

Se quisermos entender como a situação mudou para os jovens, é útil um pouco de perspectiva histórica. No imediato pós-guerra os filhos da classe trabalhadora tiveram oportunidades significativas para a mobilidade ascendente, e muitos se tornaram trabalhadores técnicos qualificados, de colarinho branco ou funcionários públicos.

Seus filhos, que cresceram nos anos 1970 e 80, tinham uma mentalidade diferente e visavam diferentes tipos de emprego. Eles cresceram em circunstâncias materiais relativamente seguras, e adotaram valores “pós-materialistas”. Em contraste com seus pais, que se esforçaram para obter conforto material e estabilidade depois do período da segunda guerra mundial, e esta esperada realização pessoal e reconhecimento social. Muitos se tornaram (ou visaram se tornar) freelancers com trabalhos de prestígio (como arquitetos ou advogados, cientistas, jornalistas), ou trabalhadores culturais.

Hoje, inversamente, os jovens experimentam um aumento da precaridade desde o início da vida profissional, e isso mudou suas atitudes face ao trabalho. Se tornaram mais sérios, e enquanto compartilham alguns dos mesmos valores que a geração de seus pais, procuram mais estabilidade no futuro. Este é especialmente o caso entre os alemães que tentam sair da classe trabalhadora e da baixa classe média. Procuram uma maneira fora da precariedade e da competição.

Afinal, é uma imagem fragmentada. Aqueles cujos pais conseguiriam uma verdadeira prosperidade nos anos 1970 e 80 poderiam ter outro estilo de vida. Vê-se entre as pessoas com seus trinta anos vivendo uma vida estilo hipster, boêmio cool, em algum bairro badalado de Berlim, trabalhando longas horas, mudando de emprego o tempo todo, mas também glorificando este tipo de existência. Muitas vezes, no entanto, eles são protegidos do stress real e do perigo que vem com a precariedade, porque seus pais compraram apartamentos para eles.

A maioria dos jovens com empregos precários de famílias de classe trabalhadora não será tão capaz de esperar tais confortos. Em vez disso, gerenciam suas expectativas de vida para baixo. Procuram empregos que tenham mais segurança, e cada vez mais jovens crescem céticos sob a alegação de que devem estar dispostos a pagar qualquer preço para “fazer o que eles mandam”, sendo de fato críticos de uma cultura de inicialização hiperfocada no trabalho. Eles procuram uma vida decente, com mais tempo livre. E há ainda os alugueis crescentes, significando frequentemente que os estudantes e os trabalhadores jovens ficam presos em problemas financeiros.

E quando os jovens entram no mercado de trabalho, percebem agora que os empregos seguros são poucos. Outra forma dos empregos se tornarem mais incertos é o aumento do trabalho temporário. 

Em 2009, quase um em cada dois empregos tinha contrato de duração limitada. Estas condições precárias afetam particularmente os mais jovens e menos qualificados. A duração média do emprego para os jovens diminuiu em 22% desde meados dos anos 1970, e os pouco qualificados, em particular, frequentemente esperam que serão incapazes de manter o emprego. Mesmo que encontrem um emprego seguro mais tarde, a sua experiência de insegurança permanece.

As mensagens políticas anti-imigrante, na Alemanha, como em outros lugares, baseiam-se em explorar ou gerar o medo da concorrência pelo emprego. Isto é uma realidade, ou apenas uma fantasia da direita?

Sim, há alguma competição. Mas esta ideia existe muito mais a nível do imaginário político e da sua exploração. Mesmo nos setores mais qualificados da economia, os trabalhadores têm relativamente pouco medo da concorrência dos migrantes, pois na Alemanha há geralmente escassez de mão-de-obra. Mas para entender como esse tipo de mensagem funciona, gosto de imaginar uma metáfora de uma “sociedade de elevadores”.

Ulrich Beck cunhou o conceito do “efeito do elevador” na década de 1980 para descrever uma sociedade que valoriza o crescimento econômico. De acordo com esta metáfora, todas as camadas, de trabalhadores assalariados até os ricos, estão juntos no mesmo elevador. As desigualdades entre as classes sociais não foram abolidas, mas desempenham um papel menos significativo quando todos estão cada vez mais prósperos.

Este tipo de sociedade chegou ao fim, e agora temos uma sociedade de escada rolante. Mas nem todas as escadas rolantes sobem – muitas vão para baixo. Algumas pessoas experimentam a mobilidade descendente real. Ou porque têm algum problema em sua história de emprego, como um período de desemprego, ou muitos anos passados em um trabalho sem crescimento, e têm um sentimento de vulnerabilidade.

Mais frequentemente do que a mobilidade descendente real, as pessoas têm a sensação de enfrentar o aumento da concorrência em geral. Para colocar isso nos termos de minha metáfora, sua experiência é um pouco como a de uma pessoa numa escada rolante descendente, que tenta evitar ir para baixo. A maioria das pessoas pode correr rápido o suficiente para não descer, mas sabem que têm que continuar correndo apenas para ficar paradas. Não experimentam a mobilidade descendente real, mas estão vivendo com o medo permanente dela. Os cortes de bem-estar social, as políticas de liberalização e os programas de austeridade nos últimos vinte anos intensificaram essa subjetividade, regida pela concorrência universal e pela instabilidade social.

Desde 2015, como vêem as coisas, sua situação permaneceu a mesma, e eles têm que continuar correndo para ficar no mesmo lugar e, ao mesmo tempo, mais de um milhão de migrantes chegam a cada ano. Na sua imaginação, auxiliada pelas mensagens políticas de direita, ao mesmo tempo em que correm para tentar chegar ao segundo andar, Angela Merkel está deixando os migrantes para o segundo andar pela porta dos fundos. Na realidade, os migrantes começam desde o porão. Mas as pessoas têm sido levadas a pensar que os migrantes recebem tratamento especial. Este equívoco é a base para o sucesso das mensagens antimigratórias.

Seu relato sobre ascensão da direitista Alternativa para a Alemanha (Alternative für Deutschland – AfD), é particularmente iluminando. Qual é a relação entre as mudanças econômicas e a ascensão dos “movimentos dos cidadãos” de extrema-direita, como o Pegida (sigla do direitista Patriotische Europäer gegen die Islamisierung des Abendlandes, ou Europeus Patriotas contra a Islamização do Ocidente) e partidos políticos como o AfD?

Os fatores econômicos e políticos por trás disso devem ser analisado em conjunto. A crise atual é uma crise social e política, que afeta os partidos tradicionais, que deixaram lacunas na representação política. Ao mesmo tempo, as mudanças econômicas afetam muitas pessoas, mudando sua relação com os patrões e com o estado de bem-estar.

Não há um nexo causal direto entre sentimentos de insegurança econômica ou a mobilidade descendente e a mudança para a direita. A insegurança econômica e a ansiedade levam a uma situação de insatisfação e podem levar as pessoas a fazer perguntas políticas e econômicas fundamentais sobre a sociedade em que vivem. A quem pertence a sociedade? A quem deveria pertencer? Por que as coisas são diferentes agora do que foram antes?

Se há forças no campo político que podem desenvolver uma resposta a estas perguntas, então tudo é possível. Houve respostas contrastantes a estas questões na política alemã ao longo da última década. O Die Linke (A Esquerda)surgiu em 2005 e por algum tempo articulou respostas a questões sociais-chave e se dirigiu a pessoas que tiveram a combinação crucial de insegurança econômica e alienação política.

Die Linke uniu trabalhadores e desempregados, junto com pessoas que foram afetadas com o sistema político. Muitos tinham experimentado ou temido a mobilidade descendente e sentiram-se degradados pela “Agenda 2010” de reformas no mercado de trabalho, o que permitiu a expansão do setor de baixos salários.

Estas reformas estavam no espírito daquelas realizados nos EUA sob Bill Clinton. Então, quando se toma fatores econômicos e políticos em combinação, se vê que na Alemanha houve uma forma própria do “não há alternativa” neoliberal. E isso fez as pessoas se sentirem fragilizadas e não representadas, alimentando o ressentimento. Muitos pessoas afetadas e irritadas votaram no Die Linke, e o partido pode se apresentar como uma força antiestablishment. Por um tempo foi capaz de explorar esta energia e direcionar o ressentimento das pessoas contra as elites econômicas.

Mais recentemente, assim como a vertente de direita do Partido Social Democrata abriu espaço para o Die Linke, uma mudança na União Democrata-Cristã permitiu o avanço da AfD, à direita. Ao mesmo tempo, Die Linke perdeu parte da credibilidade como força antiestablishment, devido à sua incoerência interna e a participação num governo regional, juntamente com outras forças de centro.

Qual é o papel dos partidos do centro?

Ao longo das duas últimas décadas houve uma convergência dos principais partidos da Alemanha, num movimento em direção ao centro. Enquanto o SPD deslocou-se para a direita em questões econômicas e se tornou mais neoliberal, a CDU, da direita, tomou o rumo do centro, apoiando a igualdade no casamento, abolindo a filiação obrigatória, impulsionando a participação das mulheres no mercado de trabalho, e apoiando a eliminação gradual da energia nuclear.

Ambos visavam captar o eleitor médio. Mas, ao se concentrar neles, assumiram que as alas mais radicais de seus partidários ainda teriam outras opções? Contanto que não haja alternativa, essa teoria se mantém.

Mas isso criou uma verdadeira crise de representação. Em 1969, o CDU/CSU e o SPD representavam juntos 87% do conjunto do eleitorado. Em 1972 e 1976, este número atingiu cerca de 90%. Por outro lado, o atual governo da grande coligação que combina estes partidos só representa 53% dos votos.

Não parece que esta tendência possa ser susceptível de terminar. Em dezembro, Angela Merkel, como líder da CDU, indicou outro membro da ala moderada do partido, para substituí-la, Annegret Kramp-Karrenbauer (conhecida como AKK, secretária geral e lider da CDU, indicada em 2018 – Nota da Redação). Ela se tornou líder depois de vencer a disputa contra Friedrich Merz, um advogado bilionário cuja campanha prometeu trazer o partido de volta aos seus valores “tradicionais” e abraçar do capitalismo irrestrito. O que essa decisão significaria para a futura direção do partido?

O voto de liderança foi muito apertado, com uma diferença de apenas 35 votos entre os dois primeiros colocados. Há uma divisão significativa no partido. Que, em parte, se deve ao fato de que, enquanto a retórica política alemã mudou para a direita, a ascensão da ala mais socialmente progressista da CDU representa uma mudança real nos valores do partido. Em muitas partes do país há um consenso hegemônico verde-liberal-conservador. AKK representa a maioria dos eleitores comuns e funcionários no partido.

Esta não é uma situação particularmente estável. A ala conservadora do partido pode tentar revoltar-se outra vez, em particular se AKK enfrentar reveses eleitorais. Mas, entretanto, os resultados do partido da irmã bávara da CDU, o CSU, na recente eleição estadual mostraram que fazer uma campanha eleitoral de direita também não é garantia de sucesso. Nessa disputa, a CSU perdeu terreno para a AfD e os verdes. Isto, mais do que qualquer coisa, é a razão pela qual AKK venceu. Os funcionários da CDU temem que movendo-se para a direita, perderão sua base na classe média mais consciente socialmente para os verdes, que podem se transformar num novo partido conservador.

O resultado recente do partido verde na eleição na Baviera (18,3%) pegou um monte de gente de surpresa. Como interpretar o sucesso recém-descoberto pelo partido?

As pessoas que correm o risco de mobilidade descendente, a classe média baixa, não são o eleitorado do partido verde. Podem e continuarão a ser um partido do humanitarismo liberal emergente. E, claro, têm razão em ser a favor de fronteiras abertas, posição chave para esta postura. Os eleitores descobriram que o SPD não era tão liberal, e na grande coalizão com o CDU fez um monte de negócios sujos. Como Merkel, os social-democratas também cederam à pressão da mídia exigindo o fechamento das fronteiras, e isso significa que aqueles com uma perspectiva liberal-humanista passaram do SPD e do CDU para os verdes.

É por isso que os verdes foram os verdadeiros vencedores. E certamente não estão tirando votos da AfD. Eles são o partido dos professores, funcionários públicos e da elite cultural urbana: um partido da alta classe média liberal. Assim, os verdes não tiveram qualquer problema em se posicionarem relação à crise dos refugiados. Seus eleitores são socialmente liberais e objetivamente seguros; não são suscetíveis ao medo agitado pela extrema direita. A maioria vive em áreas de classe média, muitas vezes longe de alojamentos de refugiados, e são empregados em áreas do mercado de trabalho onde não temem a concorrência dos migrantes. Isso, mesmo admitindo que as mudanças que causam “ansiedade econômica” têm fontes com muito pouco a ver com níveis objetivos de concorrência.

Naturalmente, os verdes também ganham atenção por causa da crescente consciência social das mudanças climáticas. Mas estão longe de ser uma alternativa radical. Como Loren Balhorn disse recentemente, “os verdes são agora o partido de qualquer pessoa na Alemanha que quer manter as coisas mais ou menos a maneira que têm sido nos últimos 30 anos – mas com mais carros elétricos.”

A esquerda deve ser cética sobre os verdes em geral. O partido participa em governos de nível estadual em Hessen e Baden Wurttemberg, nos quais têm apoiado mandados de deportação federais, como outros governos nominalmente de esquerda. Mas de alguma forma isso fica esquecido.

Olhando para o outro partido do centro da Alemanha , você tem escrito sobre a tentativa sem brilho do SPD em “renovar”. Um refrão comum da extrema esquerda é que “partidos social-democratas falharam porque abandonaram suas bases.” A solução para a crise é tão simples como o restabelecimento da forma anterior da política social-democrática?

Podemos ver exemplos no exterior de tentativas de renovar e revitalizar a democracia social. Que notavelmente incluem os exemplos de Jeremy Corbyn (Inglaterra) e Bernie Sanders (EUA), e até mesmo Jean-Luc Mélenchon (França). Podem ser uma espécie de renovada democracia social. Mas, e o SPD? Nem sequer tenta. Não acho que tenha alguma ideia do que estão fazendo, nem sequer têm qualquer fé em si mesmos de que uma renovação é possível. Neste momento, estão no mesmo caminho do Partido Socialista francês, e do PASOK na Grécia. Perderá seu status como grande partido e alcançará resultados entre 10 a 15%. Na Baviera, sua votação foi apenas 6%.

Há, portanto, uma boa chance de que o partido mais antigo da Alemanha, o SPD, vai se tornar menor, que se apegue à relevância histórica, continuando a participar de coalisões governamentais. Tem sua base eleitoral, que diminui, composta apenas de pessoas de classe profissional com ideias socialmente liberais, com pouco poder para mudar a sociedade para melhor. Este é um grito distante do grande partido que costumava ser.

Não há ninguém nos níveis superiores do SPD com a capacidade e a vontade de restabelecer o partido. Parte do problema é estrutural. Corbyn estava em posição para permanecer no trabalhismo, e mudá-lo. Mesmo sob Tony Blair, havia ainda socialistas no Partido Trabalhista porque não tiveram nenhuma outra opção. Mas este não é o caso na Alemanha. Não temos Corbyn porque os socialistas voltaram suas costas para o SPD e se juntaram ao Die Linke.

Pode não ser possível para o SPD “se tornar um partido da classe trabalhadora novamente.” Qual é, de fato, o estado atual da classe trabalhadora na Alemanha? Há, sem dúvida, uma classe trabalhadora num sentido objetivo, mas a antiga classe trabalhadora de metalúrgicos homens e mineiros de carvão — para escolher dois exemplos estereotipados — é coisa do passado. A classe trabalhadora foi modernizada. Não é mais possível contar com os laços tradicionais da classe trabalhadora para a democracia social. A nova classe trabalhadora precarizada do setor de salários baixos não tem os laços culturais e institucionais tradicionais com a democracia social através dos sindicatos, e a construção destes laços a partir do zero é difícil. 

Desenvolver esses laços, criar uma identidade de classe trabalhadora, e construir a consciência de classe é extremamente difícil.

O eleitorado do SPD agora é composto de mais ou menos bem educados e progressistas trabalhadores de colarinho branco e funcionários públicos, e alguns da classe trabalhadora industrial tradicional que sentem afinidade para com ele por causa de sua atividade sindical. Os estrategistas do partido estão preocupados que se o SPD se movesse corajosamente à esquerda ou adotasse a retórica anticapitalista, perderia os votos da classe média. Escolheram seu eleitorado, mas agora está difícil distingui-lo do partido verde.

Esta é uma situação instável, mas ainda há a possibilidade de haverá mais radicalização à direita, que o AfD cresça em força, mas também é possível que possam perder impulso. Por outro lado, há também, naturalmente, a possibilidade objetiva da reenergização da esquerda. A demonstração “Unteilbar” (indivisível), uma coalizão liberal-esquerda contra a direita. por uma sociedade mais aberta e inclusiva, que trouxe mais de meio milhão de pessoas para as ruas de Berlim, representa uma avenida de possibilidade. Aponta uma maneira de construir a ação política que, embora esteja fora da arena parlamentar, pode promover uma larga visão progressista.

  • Oliver Nachtwey é professor de Sociologia da Universidade de Basileia;
  • Julia Damphouse é uma ativista canadense, socialista e estudante em Berlim

Tradução de José Carlos Ruy (texto em português do Brasil)

Exclusivo Editorial PV (Fonte: Jacobin)/ Tornado


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