Ainda são poucos registros na história do Brasil que dão conta dos heróis populares, aqueles que mesmo em condições adversas ousaram se impor para defender os Direitos Humanos. Campeã do Carnaval carioca deste ano, a Estação Primeira de Mangueira levou para a avenida a “história que a história não conta” e um dos heróis esquecidos é uma mulher negra, escravizada e vítima de outras violências que trouxe esperança à luta por direitos iguais entre homens e mulheres.
Contrariando as regras de seu tempo, Esperança Garcia foi uma mulher negra escravizada que aprendeu a ler e a escrever e usou seu conhecimento para denunciar a violência sofrida por ela e suas companheiras e filhos. Em 6 de setembro de 1770 o governador da Capitania de São José do Piauí, Gonçalo Lourenço Botelho de Castro, recebeu uma carta cujo conteúdo era a denúncia dos maus tratos sofridos em uma fazenda de Algodões na região de Oeiras, cerca de 300 quilômetros da capital Teresina.
O tipo de texto do documento que denunciou a violência demandou justiça no dicionário da advocacia poderia ser considerado uma petição. Por isso, em 2017 o Conselho Estadual da Ordem dos Advogados do Brasil, secção Piauí, concedeu a Esperança o título simbólico de primeira advogada do estado. O requerimento do título foi feito pela Comissão da Verdade da Escravidão Negra da OAB-PI.
Passados dois anos de ser considerada a primeira advogada de seu estado, a coragem de Esperança brilhou na Marquês de Sapucaí. Ela foi homenageada como rainha no desfile da Mangueira, na noite de segunda-feira (4).
A história de Esperança ganhou vida através da fantasia usada pela rainha de bateria Evelyn Bastos. O samba enredo da escola vencedora pela 20ª vez homenageou os heróis que foram esquecidos ou apagados pela história oficial do Brasil. Entre eles, esta mulher que traz esperança no nome.
A Esperança Garcia hoje na minha fantasia representa o pobre, o favelado e, sobretudo, a mulher negra, porque nosso comprovante de residência já sofre um preconceito. Mas resolvemos retratá-la em forma de rainha. É uma homenagem”.
Ao longo da história, milhares de mulheres ousaram romper o silêncio, isso rendeu uma série de avanços, mas ainda há um longo caminho a ser trilhado. Se Esperança teve coragem de denunciar a violência sofrida em pleno século 18, hoje ainda são muitas as barreiras que levam uma vítima a permanecer calada.
O Ministério Público de São Paulo estima que uma mulher vítima de violência em seu relacionamento leva pelo menos dez anos para denunciar. Segundo dados do MP, 37% das mulheres que denunciam seus companheiros estavam casadas há mais de uma década. Vale destacar ainda que pouco mais de 10% dos casos são levados à justiça.
Segundo a coordenadora do Núcleo de Gênero do MP-SP, Valéria Scarance, são muitos os motivos que levam uma mulher a levar tanto tempo para denunciar, entre eles o medo, a falta de estrutura financeira e o receio de exposição. “Romper o silêncio é muito difícil, porque há um tempo para que a vítima entenda que está sofrendo violência”, explica.
Ao homenagear as “Marias, Mahins, Marielles, malês” com seu samba enredo, a Mangueira deposita mais uma dose de esperança – tão necessária – à luta das mulheres silenciadas diariamente pelo patriarcado.
por Mariana Serafini, Jornalista | Texto em português do Brasil
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