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Quarta-feira, Julho 17, 2024

Telerealidade – e o Coliseu de Roma

Carlos de Matos Gomes
Carlos de Matos Gomes
Militar, investigador de história contemporânea, escritor com o pseudónimo Carlos Vale Ferraz

O jornal El Pais titulava numa crónica  de 20 de Março: «Portugal, el último bastión sin telerrealidad, sucumbe a los ‘realities’». A primeira mistificação: tal como os jardins zoológicos não são a realidade da vida dos animais na natureza, os “realities” não são a realidade, nem uma representação da realidade, nem uma ficção.

As lutas de galos, de cães, as chegas de bois não são a realidade, são manipulações e artifícios que colocam os animais a desempenharem papéis para gozo de um público. Os espectáculos de sexo ao vivo não são a realidade das relações sexuais, são espectáculos.

Os novos programas, apresentados como nec plus ultra da modernidade televisiva e no esperanto modernaço do inglês como reality shows, são, na realidade, tão velhos como o Kama Sutra, ou indo mais longe que alguns desenhos do paleolítico impressos nas paredes de grutas. São tão velhos como as taras dos exibicionistas e dos espreitas.

Os atuais quem quer casar com um agricultor ou com o filho da mãe são espectáculos velhíssimos que qualquer manual de erotismo ou pornografia descreve: o homem ou a mulher que se satisfazem a ver o parceiro a ter relações com outro. Ou os que se masturbam nas cabinas das sex shop ao verem um ou uma artista a despir-se ou a fazer sexo com um outro ou outra parceira. Os reality shows são espectáculos para onanistas. As paredes com ilustrações de cenas em ladrilhos ou pinturas de algumas casas de Pompeia já o eram.

O erotismo e a pornografia – ou o motor de arranque do anuncio do Paulo Futre – são velhíssimas fórmulas que têm mercado. O Olympia, velho cinema de sessões contínuas na Baixa de Lisboa sempre teve clientela. Pelos vistos as estações de televisão trazem o Olympia para as casas das famílias. Não é uma evolução: é uma deslocação.

Cinema Olympia no início do Séc. XX.

Joshua Benoliel

Mas, a pornografia de massas é fruto do mercado. O que não pode ser fruto do mercado é uma outra mensagem que os ditos reality show transmitem: a coisificação das pessoas. Um espectáculo entre a feira de gado, o mercado de escravos, as exibições de alterações físicas, e, por fim, a exposição de seres humanos de outras civilizações como excentricidades zoológicas.

Os ditos reality shows tratam os seres que ali se expõem como peças de gado, como os traficantes tratavam os escravos, exactamente designando-as nas guias de transporte e nos anúncios por “peças”: peças machos, fêmeas e crias. E houve a exibição de gigantes, o de Manjacaze, por exemplo, o de anões, da mulher barbuda, de pessoas com qualidades exóticas, o comilão de Almada. Na época das descobertas, os navegadores traziam para as suas metrópoles gentios das terras onde haviam chegado, assim chegaram à Europa índios do amazonas, negros do Congo, chineses. Por fim, no período áureo do colonialismo foram exibidos em Portugal e na Bélgica, negros trazidos para serem exibidos nas exposições coloniais. Em Portugal foram apresentados num cenário criado no Jardim Colonial, a Belém, a exibirem, nus, os seus usos e costumes. A maioria acabou por morrer de doença e de frio e não regressou aos seus territórios. E não foi assim há muito tempo.

Dirão os liberais que só entra nestas exibições quem quer. Só vê quem quer. É a velha discussão do arbítrio, da livre escolha. Não é verdade, cada um escolhe sobredeterminado pelas circunstâncias. Não é por acaso que os “atores” destes espectáculos pertencem na maioria dos casos a estratos sociais médios baixos, com baixos níveis de escolaridade e de informação, logo mais vulneráveis e disponíveis para se venderem. E também seria interessante estudar o tipo de personalidades dos atores, e verificar quantos frustrados exibicionistas aí se encontram.

Os reality shows exploram vulnerabilidades e apetites. Mas, pior, demonstram que as sociedades dos países mais industrializados e ricos, as que se afirmam evoluídas, as sociedades de classes médias de televisão e IPad, que falam duas línguas e sai à rua de jeans deliberadamente rotos, continuam como as dos seus antepassados constituída por negreiros, supremacistas, apreciadores da exibição de seres exóticos colocados numa arena. O coliseu de Roma era um reality show.


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