Comitiva do governo brasileiro traz para o Brasil um saldo altamente negativo.
A vassalagem do presidente da República Jair Bolsonaro e sua comitiva nos Estados Unidos rendeu sérios revezes para o Brasil. Não há um só resultado que pode ser classificado como acordos tenha pelo menos alguma reciprocidade. O saldo da visita oficial, com os componentes do governo se comportando como se estivessem na Disneylândia, protagonizando espetáculos de vulgaridades no lugar da sobriedade exigida de representantes do Estado, tem vários pontos negativos.
Entre eles, destacam os pronunciamentos de alinhamento incondicional aos ditames da Casa Branca, como o anúncio do presidente norte-americano, Donald Trump, de que o Brasil deve se integrar à Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), um clube em que as potências belicistas se juntaram, montados em seus arsenais, e se autoproclamam os donos do mundo. Fundada em 1949, na nascente Guerra Fria, ela é o braço armado dos Estados Unidos e seus aliados.
Há ainda a questão da Venezuela, uma posição de submissão incondicional à Casa Branca que se insere nessa lógico belicista. Bolsonaro disse apoiar “quase todas” as decisões dos Estados Unidos. O presidente disse que não comentaria sobre os assuntos estratégicos debatidos em particular com Trump, mas não descartou a opção militar. “O presidente Trump afirma que todas as opções estão sobre a mesa e eu, em grande parte, apoio as decisões do povo americano”, afirmou.
Outro destaque negativo é a dispensa de visto para turistas dos Estados Unidos, da Austrália, do Canadá e do Japão — medida que favorece sobretudo os norte-americanos, 70% dos que se beneficiam com essa decisão —, sem contrapartida. Sob o pretexto de que o turismo se beneficiaria, a decisão fere o princípio básico das relações internacionais e da diplomacia brasileira que, por definição, são pautados pela reciprocidade.
Equação que não fecha
Na mesma categoria de subordinação aos ditames de Washington estão as condições para o Brasil se tornar o 37º membro da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE). Para se ter uma ideia da gravidade dessa posição, o anúncio foi feito pelo próprio presidente norte-americano. As condições para a concretização dessa ideia dependem de medidas para alinhar a economia brasileira aos interesses da organização, basicamente “reformas” neoliberais. De acordo com o chanceler Ernesto Araújo, o ingresso do Brasil na OCDE é “essencial para ajudar o país nas reformas que o governo pretende fazer”.
Outra imposição importante, segundo a declaração conjunta da visita presidencial a Washington, é o apoio do Brasil à revisão das regras da Organização Mundial do Comércio (OMC) que beneficiam países em desenvolvimento. Na prática, isso quer dizer que o Brasil precisará abandonar essa organização. O chanceler Araújo disse que o Brasil precisava aderir aos dois grandes instrumentos do Ocidente, a OCDE e a Otan, porque “o tratamento diferenciado (na OMC) nunca nos tirou de onde nós estávamos”. “Então, alguma coisa está errada”, disse ele.
A imposição dos Estados Unidos foi conformada pelo ministro da Economia, Paulo Guedes. O alvo é a lista de países de tratamento especial e diferenciado da OMC, que dá vantagens especiais como mais tempo para cumprir acordos e outras flexibilidades. Contrário à lista, a Casa Branca quer acabar com o modelo, do qual o Brasil participa, e quer ajuda do governo brasileiro. Segundo Guedes, para o governo norte-americano o Brasil precisa entender que para entrar na OCDE teria que deixar a lista de países de tratamento diferenciado. “Não tem troca, ele que está fazendo essa demanda”, disse ele.
É uma equação que não fecha e nem tem como fechar. A história recente das relações comerciais entre os dois países tem sido assim: os Estados Unidos bradam contra o “protecionismo” dos países “em desenvolvimento”; o Brasil brada contra o protecionismo dos Estados Unidos. Não faz tempo, por exemplo, o então governador da Flórida, Jeb Bush — irmão do ex-presidente George W. Bush —, acusou o Brasil de ser um “parceiro injusto” no cenário mundial por “inundar” o mercado norte-americano com suco de laranja barato.
O à época embaixador brasileiro junto à Casa Branca, Rubens Barbosa, desmentiu as acusações do governador. Em uma carta, ele disse que o Brasil não vendia exportava abaixo do custo. Tampouco tinha um “recorde de sanções por dumping na OMC”. “São os Estados Unidos, e não o Brasil, que têm um passado constante de sanções na OMC por recorrer abusivamente à sua legislação doméstica antidumping, usada não como uma ferramenta para proteger os produtores domésticos contra concorrência injusta do exterior, mas como uma medida protecionista disfarçada”, afirmou o embaixador.
Confronto na OMC
Esse confronto no âmbito da OMC foi particularmente acirrado no governo Luiz Inácio Lula da Silva. O então presidente da República disse que a fase “Brasil coitadinho” havia terminado. Essa posição altiva também foi manifestada pelo então ministro das relações exteriores, Celso Amorim, com uma política externa voltada para a perspectiva de fortalecimento das relações entre os países em desenvolvimento. Com essa política, o governo brasileiro enfrentou com altivez a ofensiva comercial dos Estados Unidos.
O governo norte-americano conta uma agência — o Escritório do Representante de Comércio dos EUA (USTR) — criada pelo Congresso norte-americano em 1962, instalada num prédio de seis andares nas imediações da Casa Branca, com status ministerial. Suas atribuições básicas são as de cuidar dos acordos internacionais de comércio e atuar na resolução de litígios. A organização administra um orçamento anual de 29,6 milhões de dólares. Sob seu controle, trabalham 185 funcionários, 20 dos quais lotados em Genebra num prédio vizinho à OMC. Trata-se de um corpo técnico que conhece bem as minúcias do comércio internacional e, se necessário, mobiliza um exército de advogados, consultores e economistas para defender os interesses norte-americanos.
Nessa questão, é importante considerar o histórico da OMC. Em 1948, os países signatários da Conferência de Bretton Woods firmaram um contrato com o intuito de estabelecer diretrizes para o comércio exterior – o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (Gatt). O Gatt tratava apenas de bens industriais, e suas primeiras rodadas de negociação abordavam basicamente a redução de tarifas de importação. Com o tempo, as discussões englobaram também políticas antidumping e barreiras não-tarifárias e confluíram para a criação da OMC. O último capítulo do Gatt foi escrito na Rodada do Uruguai, entre 1986 e 1994, que, entre outras coisas, definiu a criação da OMC.
Erro estratégico
O triunfo da ideia da OMC quase 50 anos depois de ter sido aventada pela primeira vez, no entanto, não mudou a forma de pensar dos Estados Unidos. Em Seattle, em 1999, enquanto manifestantes protestavam nas ruas contra as medidas propostas pela organização, governos de diferentes rincões do planeta tratavam de uma pendenga – a tentativa dos países centrais, especialmente os Estados Unidos, de impor sua agenda de negociações para a chamada Rodada do Milênio. Havia um antagonismo: os países ricos querendo a queda das tarifas, das barreiras não-tarifárias e dos subsídios a exportações de bens industriais e ao mesmo tempo esperneando diante da proposta dos países pobres de baixar as tarifas, as barreiras não-tarifárias e os subsídios à exportação de produtos agrícolas.
O Brasil se saiu muito bem nesse conflito, aliando-se à China, à Índia e a outros países de peso na economia mundial para enfrentar o poderio dos Estados Unidos e da União Europeia — os centros irradiadores da atual crise econômica global. A China, a economia de maior peso do lado de cá dessa disputa, tem adotado a postura de quanto mais puder ajudar outras nações pobres a se fortalecerem, melhor será o mundo para ela — só com a soma de forças é possível enfrentar o poderio do outro lado.
O mundo em desenvolvimento sempre olhou com grande interesse para os movimentos que o Brasil e seus aliados fez nas negociações na OMC. O enorme mercado brasileiro — mesmo que em grande parte potencial, devido ao poder aquisitivo baixo de larga fatia da população — pesa, e muito, a nosso favor em uma mesa de negociações. Poucos países têm mais a oferecer ao Brasil do que o contrário. Ignorar essa realidade, como faz o governo Bolsonaro, é um grave erro estratégico.
Texto em português do Brasil
Exclusivo Editorial PV / Tornado