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Domingo, Novembro 17, 2024

Como retirar R$ 2 trilhões da saúde

Uma nova desvinculação de receitas, como propõe Paulo Guedes, pode causar perda superior a R$ 2 trilhões para o SUS, que hoje já consegue proezas no serviço à população, como oferta de medicamentos, transplantes e SAMU a R$ 3,5 por dia para cada habitante.

O SUS é um sistema subfinanciado, conforme atestado por um conjunto tradicional de indicadores. Um sistema universal em que a despesa pública corresponde a menos da metade das despesas totais de saúde é caso único no mundo. Haja eficiência para transformar, considerando todos os entes da federação, R$ 3,5 por dia para cada habitante em serviços ofertados a toda a população, incluindo vacina, SAMU, medicamentos de alto custo, transplantes, entre outros. Uma coca-cola paga o valor diário investido no SUS!

Apesar dos recursos insuficientes, o SUS coleciona feitos nos seus mais de 30 anos. Entre eles, a redução da mortalidade infantil, o maior sistema público de transplantes do mundo e programas de referência internacional como o de Imunizações e HIV/Aids. Mas também é preciso reconhecer que, frente a velhas e novas questões, há grandes desafios: a prevenção e o controle de doenças infecciosas, a transição epidemiológica, demográfica e nutricional, o acesso a consultas, exames e procedimentos especializados, entre outros.

Diante do quadro orçamentário atual e dos fatores que pressionam os custos do sistema, nenhum dos desafios citados pode ser enfrentado com piora das condições de financiamento. E o que propõe o ministro da Economia, Paulo Guedes? Encaminhar ao Congresso Nacional PEC para desvincular recursos da União, estados e municípios. Segundo informações da imprensa, o ministro falou em “desobrigar” o gasto. Em termos de despesas obrigatórias, é certo que salários e benefícios previdenciários, em princípio, não poderiam deixar de ser pagos, considerando apenas a desvinculação de receitas. Sobrariam, então, áreas como educação e saúde, que seriam afetadas pela PEC.

Vejamos o caso do SUS. A EC 93/2016 estabelece que a desvinculação de receitas dos estados e municípios não alcança a saúde. Estados e municípios, nos termos da LC 141/2012, devem ter como piso de aplicação no setor, respectivamente, 12% e 15% da arrecadação de impostos. Na prática, muitos entes aplicam mais do que o mínimo, diante dos custos crescentes e da queda relativa de despesas federais de saúde (passaram de 58% das despesas públicas em 2000 para 43% em 2017).

Um exercício simples pode ajudar a estimar os impactos sobre as despesas de saúde. Para a União, a EC 95 obriga que o piso anual de aplicação de saúde seja de 15% da RCL de 2017, mais a inflação do período. Uma nova “desobrigação”, na melhor das hipóteses, determinaria a observância dos valores atualmente aplicados (R$ 120,4 bilhões). No caso de estados e municípios, sendo excessivamente otimista (do ponto de vista do SUS), a PEC poderia prever apenas a reposição da inflação (haveria desvinculação com indexação). Por outro lado, mantido o cenário atual, estimamos as despesas públicas de saúde da seguinte forma: para a União, seguiria vigente o piso da EC 95, que já implica uma desvinculação em relação à RCL do ano corrente, causando prejuízo de quase R$ 7 bilhões ao SUS em 2019, conforme demonstrado em artigo anterior. Para estados e municípios, a despesa cresceria à mesma média anual do período 2014-2017 (6% para estados e 7% para municípios).

Comparando-se os dois cenários (com e sem a PEC da desvinculação ou da “desobrigação”), estima-se, entre 2020 e 2036 (tomado como referência por ser o último exercício da EC 95), uma perda superior a R$ 2 trilhões para o SUS, conforme o gráfico a seguir.

Uma informação relevante é que a iniciativa tem sido chamada na imprensa de PEC do Pacto Federativo. Mais um sinal de que, conforme lembra o sociólogo Pierre Bourdieu, o nome oficial que se atribui às coisas procura constituir sua identidade, tratando-a como algo público. No caso em tela, este processo seria uma espécie de magia operada pela linguagem econômica convencional, capaz até de reunir contrários. De um lado, a população deseja mais saúde, conforme atestam as pesquisas. De outro, associa-se a desobrigação das despesas de saúde ao aprimoramento do pacto federativo. Naturalmente, os dois enunciados só se articulam com uma operação adicional: excluir do pacto federativo o representado, o cidadão, que deseja do setor público mais saúde, para que os representantes não sejam obrigados a aplicar recursos no setor. E aí, subtraída a saúde pública em R$ 2 trilhões, um SUS poderá já não ser suficiente para uma coca-cola.


por Bruno Moretti, Economista pela UFF, mestre em economia pela UFRJ, doutor e pós-doutor em sociologia pela UnB | Texto em português do Brasil

Exclusivo Editorial PV / Tornado


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