Neste dia 31 de março de 2019, próximo domingo, a esquerda brasileira e o presidente Jair Bolsonaro se encontrarão com seu passado e com seu destino.
Pela primeira vez em 34 anos, talvez mais, há fortes indícios de que o golpe militar de 31 de março de 1964, que deflagrou 21 anos de ditadura, será comemorado abertamente na sociedade, oficial ou extraoficialmente, a despeito dos crimes que causou.
Desde a redemocratização o senso comum brasileiro sempre foi de repúdio à ditadura militar, mesmo em governos de centro e de direita. O período que vai de 1964 a 1985 é tido como um dos mais macabros, um erro histórico, apreciado apenas por grupelhos fanáticos.
Mas, tal é a bizarrice do momento que expoentes destes grupos diminutos alcançaram o poder máximo da política e agora tudo o que conhecemos parece virado do avesso.
Intervenção dos EUA
O golpe militar impôs um regime baseado no atraso político, no arrocho salarial, na dependência econômica, na desigualdade social, na censura aos meios de comunicação e na violenta repressão aos seus opositores. Esta é a narrativa que nenhum pesquisador sério contesta.
Sabe-se que, por trás da reação conservadora ao governo de João Goulart, havia, não apenas um dedo, mas o braço inteiro dos Estados Unidos da América. Era guerra fria, ordem bipolar, e o temor de que a revolução Cubana, de 1959, respinga-se por aqui, atiçou os americanos, que não quiseram nem saber se o governo ia bem ou mal.
Hoje conhecemos gravações de falas do ex-presidente dos EUA, Lyndon Johnson, afirmando que seria possível agir no Brasil para instituir a ditadura e assegurar o afastamento de Jango. As gravações podem ser ouvidas nos filmes “O Dia que Durou 21 anos” e “Dossiê Jango”.
Na prática, o governo estadunidense financiou campanhas eleitorais de políticos simpatizantes à sua economia, patrocinou uma intensa campanha anticomunista na grande imprensa e orientou deliberadamente militares brasileiros a promoverem o golpe, posicionando a Quarta Frota em direção ao Brasil, caso Jango resistisse e houvesse a necessidade de intervir militarmente.
Ainda na linha da intervenção estadunidense, em 2018 foi revelado um memorando secreto da CIA que mostra que o general Ernesto Geisel, presidente do Brasil entre 1974 e 1979, sabia e autorizou a execução de opositores durante a ditadura militar. O documento, de 11 de abril de 1974, foi elaborado pelo então diretor da CIA, William Egan Colby, e endereçado ao secretário de Estado dos EUA Henry Kissinger. Ele foi revelado pelo pesquisador Matias Spektor, da Fundação Getulio Vargas (FGV).
Esse é um lado da história. O lado que releva que o golpe não se deu pelo anseio da sociedade brasileira em barrar a “ameaça comunista”.
Outro lado é a violência arbitrária que o regime implementou, a pretexto do combate ao comunismo.
Violações aos direitos humanos
O relatório da Comissão Nacional da Verdade, apresentado em dezembro de 2014, mostrou que os militares disseminavam o terror como forma de intimidação, uma vez que se sabia que a tortura não produziria informação significativa.
Tal prática resultou em detenções ilegais e arbitrárias, tortura em larga escala, execuções, desaparecimentos forçados e ocultação de cadáveres por agentes do Estado brasileiro. No relatório são apontadas 434 mortes e desaparecimentos de vítimas no país, e mais de 300 pessoas, entre militares, agentes do Estado e até mesmo ex-presidentes da República, foram responsabilizadas.
Tortura e assassinatos como política de Estado
No programa Roda Viva do dia 30 de julho de 2018, o então candidato à presidência Jair Bolsonaro, foi questionado sobre seu apoio à ditadura militar e à torturadores como Carlos Alberto Brilhante Ustra (ex-chefe do DOI-CODI do II Exército, o primeiro oficial condenado em ação declaratória por sequestro e tortura ocorridos durante a ditadura militar). Bolsonaro respondeu acusando os grupos de guerrilha de esquerda de também terem assassinado militares.
É um grande cinismo dele comparar o incomparável. No poder os militares usaram a repressão, tortura e assassinatos como política de Estado. Deram um “banho de sangue” que, ao contrário do que o ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni deve imaginar, não resultou em prosperidade e harmonia, muito menos em soberania nacional.
Na verdade, os resultados econômicos e sociais da ditadura militar, foram uma economia dependente, com avassaladora força do capital externo, disseminada através de multinacionais que se instalavam por aqui, além de altas taxas de desemprego, subemprego ou ao emprego informal.
O país só voltou a crescer e a se organizar com o advento de governos democráticos, sob vigência da constituição de 1988, sobretudo com Fernando Henrique Cardoso e Luís Inácio Lula da Silva.
Inconsciência histórica
Espanta a todos que tenham o mínimo de consciência e conhecimento histórico o fato de, após mais de trinta anos de construção da democracia, a famigerada ditadura pudesse ser celebrada.
Mas isso parece ser menos espantoso quando avaliamos o quadro geral. No Brasil o desprezo pela educação é um velho conhecido. E, se a educação, de um modo geral, é depreciada, o conhecimento histórico é terra arrasada, sustentado por abnegados e idealistas. Afinal, a história não é a matéria preferida do mercado e as gratificações materiais não estão na linha de frente de quem a escolhe como profissão.
Em uma sociedade, entretanto, o desprezo pela história tem consequências graves, com preços altíssimos, até mesmo financeiramente, como, por exemplo, a escolha de governantes incompetentes e desastrosos.
Isso é uma coisa. É o pano de fundo, o contexto geral.
Outra coisa, que pode ajudar a entender porque o repúdio à ditadura militar não é óbvio e cristalino para todos os brasileiros, são as recentes as oportunidades perdidas de acertar as contas com o passado.
Refiro-me à já mencionada neste artigo, Comissão Nacional da Verdade.
Na prática, a Comissão se limitou a detalhar e registrar os episódios obscuros dos porões da ditadura. O coordenador da CNV, o jurista e professor de direito da Universidade de São Paulo (USP) Pedro Dallari, disse em 2016, ao Jornal Estado de Minas que “O Estado brasileiro optou por não produzir consequências institucionais ao estudo que foi feito sobre tudo que se passou naquele período. Embora a lei determinasse que fossem feitas recomendações após as apurações, tanto o governo Dilma, quanto o atual governo de Temer , escolheram não dar andamento”.
Ao contrário do que aconteceu no Brasil, em países como a Argentina e o Chile, que viveram sob ditaduras militares na mesma época, a restauração da democracia estimulou oficiais de alto escalão a se desculparem por erros do passado e abriu caminho para investigar e punir violações de direitos humanos.
Por aqui, a Comissão Nacional da Verdade, instalada por Dilma Rousseff em 2013, gerou grandes expectativas entre militantes de esquerda. Mas a ausência de julgamentos ou punições efetivas se tornou motivo frustração. A Comissão, enfim, produziu vasto material para estudo, mas sem consequências práticas. Hoje vemos que se perdeu uma grande oportunidade.
Desde as manifestações de junho de 2013 uma até então envergonhada extrema direita tem crescido assombrosamente.
Dos rincões do Brasil surgiu uma massa de eleitores direitistas, alheios às mazelas da história. Por descasos, pragmatismos, e imediatismos de toda a ordem, retrocedemos. Hoje lidamos com questões que pareciam superadas. Talvez, em anos passados, nem Jair Bolsonaro imaginasse que celebraria os 55 anos do golpe em grande estilo, pautando a sociedade com esta macabra efeméride.
Os descaminhos nos trouxeram, entretanto a este doloroso encontro como passado. Ou será destino?
Texto em português do Brasil