Não há momento mais oportuno para o lançamento de Tebas – Um Negro Arquiteto na São Paulo Escravocrata (2019). Apesar dos Bolsonaros e dos Holidays da vida, é tempo pródigo à valorização da história e da cultura afro-brasileiras. O pensamento reacionário e racista tem cada vez mais visibilidade, sim. Em contrapartida, sobram exemplos de reparações a personalidades negras – e o ótimo livro sobre Tebas, organizado pelo jornalista Abilio Ferreira, vai nessa direção.
Antes de falar do ressurgimento de Joaquim Pinto de Oliveira (1721-1811), o “mestre pedreiro” Tebas, voltemos a um e outro episódio destes anos recentes. A lembrança mais significativa é a do escravo liberto e líder abolicionista Luiz Gama (1830-1882), que, embora nascido na Bahia, viveu e lutou em São Paulo na maior parte da vida. Sua história andava apagada, esquecida – até ser, aos poucos, recuperada.
Na década de 1850, por ser negro, Gama foi proibido de se matricular na Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Conseguiu, porém, frequentar as aulas como ouvinte. Mesmo sem o registro de advogado, empenhou-se mais pela causa abolicionista nos tribunais do que qualquer profissional da Justiça de São Paulo, tendo ajudado a libertar ao menos 500 escravos pelas vias legais.
A despeito dessas proezas, foi apenas em 2015 – ou seja, 133 anos após a morte do “apóstolo negro da Abolição” – que a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) lhe concedeu o título de “advogado”. Dois anos depois, a Faculdade do Largo São Francisco batizou uma de suas salas com o nome de Luiz Gama – uma deferência que, até então, a instituição prestava exclusivamente a ex-professores. Já em 2018, por lei, Luiz Gama foi declarado “patrono da abolição da escravatura no Brasil”, além de ter seu nome inscrito no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria.
As mulheres negras tampouco ficaram para trás. Na semana passada, o Senado aprovou a inclusão dos nomes de Dandara dos Palmares e Luísa Mahin no livro Heróis e Heroínas da Pátria. Companheira de Zumbi, Dandara foi uma das grandes líderes quilombolas do século 17. Já a escrava alforriada Luísa Mahin, mãe de Luiz Gama, participou da principal rebelião antiescravista na Bahia, a Revolta do Malês (1835). Ainda em março, a Mangueira venceu o Carnaval 2019 no Rio de Janeiro com o enredo História pra Ninar Gente Grande – que homenageia, entre outros ícones esquecidos, “Marias, Mahins, Marielles, Malês”.
Não são eventos fortuitos. Universidades tradicionais passaram a adotar obras de autoras negras como livros obrigatórias no vestibular. Quarto de Despejo – Diário de uma Favelada (1960), da catadora de lixo Carolina Maria de Jesus (1914-1977), está na lista da Unicamp desde 2018. Na UFRGS, além do livro de Carolina, é cobrada a leitura de Úrsula (1859), da professora negra Maria Firmina dos Reis (1822-1917). Trata-se do primeiro romance a ser escrito por uma mulher no Brasil – e, de quebra, o primeiro a defender abertamente o abolicionismo.
Legado africano
É nesse contexto fecundo que Tebas volta a ganhar proeminência – e que seus projetos passam a ser observados com mais curiosidade e reverência. Quais projetos? Só na cidade de São Paulo, a torre da primeira Catedral da Sé, o Chafariz da Misericórdia, o frontispício da Igreja da Ordem Terceira do Carmo, a pedra de fundação do Mosteiro São Bento – tudo isso passou pelas mãos e pela engenhosidade de Tebas. Em Itu, no interior paulista, esse ilustre “oficial de cantaria de pedra” ergueu o monumento Cruzeiro Franciscano, de nove metros de altura.
Dos cinco artigos que compõem Tebas – Um Negro Arquiteto na São Paulo Escravocrata, convém tratarmos inicialmente do excepcional texto de Ramatis Jacino, doutor em História Econômica pela USP. É ele quem assinala o elo entre África e Brasil presente nas construções de Tebas – mas não só. Segundo Ramatis, “já não é possível ignorar totalmente a contribuição civilizatória do continente africano”, em especial “os avanços tecnológicos e científicos desenvolvidos por nações africanas antes da chegada dos europeus”. Tebas seria, portanto, uma evidência – e não um desvio – dessa cultura singular:
Assim, a quantidade de mão de obra especializada introduzida no Brasil através da escravidão teria sido imensa e fundamental para os diversos momentos da economia brasileira considerando que aqui chegaram escravizados especialistas em plantação, colheita e beneficiamento da cana de açúcar e do café, construtores de barcos e técnicos em navegação, mineradores, vaqueiros e profissionais no abate de animais e na utilização de seu couro e carne; artesãos têxteis e químicos com conhecimento de tintas, ourives, fabricantes de sabão e marceneiros, entre outros. Estes profissionais eram classificados de “artífices mulatos” e sua presença foi grande em Minas, Rio, Bahia e Pernambuco, deixando vestígios muito evidentes de seu trabalho na música, na escultura e na pintura. Até mesmo na produção cultural erudita, como na música clássica, no teatro e nas artes plásticas os africanos e seus descendentes estiveram presentes, como ilustram expoentes que representavam a regra e não a exceção, como Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, os “mestres mulatos” de Minas Gerais, o Frei Jesuíno de Monte Carmelo, de São Paulo e incontáveis anônimos, como os descritos em documentos recentemente descobertos.
Natural de Santos (SP), onde nasceu em 1721, Tebas tem uma biografia repleta de lacunas e imprecisões, a ponto de ter virado tema de um samba de Geraldo Filme (1928-1995). Fatos e mitos se alternam na letra da música – o próprio compositor paulista admitiu que não conhecia tudo que já tinha sido publicado a respeito de seu homenageado.
Em textos de sua época, Tebas é descrito como “mulato”, ainda que, por mais de um século, não pudemos cravar, com segurança, que ele passou pelo cativeiro. O fato de ter sobrenome – coisa incomum entre os negros no período colonial – seria um indício forte de que Tebas nasceu livre. Hoje, de qualquer maneira, é quase certo que Tebas foi escravizado em Santos e em São Paulo por nada menos que 57 anos – ele morreu aos 90.
Carlos Gutierrez Cerqueira, pesquisador do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), detona a dúvida. Em seu artigo para o livro, com base em fontes originais, Cerqueira demonstra que Tebas pertencia ao mestre pedreiro português Bento de Oliveira Lima, que morava em Santos. Ao se mudarem para São Paulo, senhor e cativo tinham um trunfo: sabiam usar a pedra como material de construção. Até aquele momento, “o sistema construtivo típico de serra acima era o da taipa de pilão”.
Os documentos comprobatórios da participação de Tebas em obras como a da Igreja da Ordem Terceira do Carmo indicam também o destino de nosso personagem. Com a morte de Bento, Tebas fica sob as ordens da viúva, D. Antonia Maria Pinto. Mas, “embora ainda cativo”, desfrutou “de uma situação algo diferente, favorável sobretudo ao exercício de sua profissão. Assim, o vemos contratando obras, dando garantias e, mais ainda, ele próprio recebendo os pagamentos combinados”.
Àquela altura, Tebas já era um escravo com mais autonomia. Curiosamente, sabia ler e escrever, enquanto a patroa enviuvada era analfabeta. Depois, já alforriado, ele “terá também escravos: João e Joaquim, ambos negros. Tebas, de cativo, tornara-se senhor. A sociedade escravocrata tinha lá a sua lógica e as relações escravistas se reproduziam até por suas próprias e antigas vítimas”. Cerqueira questiona: “Teria Tebas outra alternativa?”.
O profissional
A preocupação de Tebas – Um Negro Arquiteto na São Paulo Escravocrata não é, exatamente, a de reconstituir uma vida. Fruto de uma parceria entre a Idea (Instituto para o Desenho Avançado) e o CAU-SP (Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Estado de São Paulo), o livro prioriza a faceta profissional desse “especialista na arte e na técnica de talhar e aparelhar pedras”. Razoavelmente afamado em vida, Tebas acabou por ficar “esquecido na metrópole de concreto”, conforme as palavras do arquiteto Carlos Lemos, destacadas no livro.
Uma metrópole que em quase nada faz lembrar a cidade provinciana e desinteressante do século 18, onde Tebas viveu, forjou-se “mestre pedreiro”, batalhou, foi reconhecido como “grande construtor” e deixou sua marca. A cidade detinha pouco peso econômico no País – e até mesmo no estado. Em 1780, sua zona urbana se limitava a 18 ruas e três pátios, a crer nos registros de Basílio Machado. Daí a sensação do historiador Afonso Antonio de Freitas (1870-1930) de que, após a construção da torre da Catedral da Sé, não havia em São Paulo nada que “deixasse de ser por Tebas executado”.
Este e outros depoimentos são citados no artigo inaugural do livro, assinado por Abilio Ferreira, com o título “Tebas e o tempo”. É um caprichado e minucioso levantamento cronológico das publicações e das referências mais relevantes sobre o negro arquiteto. Didático, Abilio mostra como, de 1899 a 2018, as informações sobre Tebas foram ditas e desditas, expostas e ocultadas, reiteradas e corrigidas.
É um capítulo fartamente documentado. Ao chegar aos anos recentes, o autor dá a entender que o reconhecimento a Tebas, ao menos em São Paulo, tem alicerces mais sólidos, como suas construções de pedra. Dois exemplos: 1) em 2015, foi aprovada a lei municipal que incluiu no Calendário Oficial da Cidade a “Festa de Tebas”, a ser celebrada anualmente, em 25 de janeiro; e 2) em 2018, o construtor negro passou a integrar, postumamente, o quadro associativo do Sindicato dos Arquitetos no Estado São Paulo (Sasp), o que ratifica sua condição de arquiteto.
Presidente do Sasp, Maurílio Chiaretti frisa, em seu artigo, “a necessária revisão da profissão de arquiteto e urbanista”. A seu ver, o caso do escravo que se tornou um expoente da arquitetura serve como paradigma: “Há milhões de Tebas na construção civil – pedreiros, serventes, encanadores, eletricistas, carpinteiros, marceneiros, vidraceiros e muitos outros – que permanecem esquecidos tanto nos patrimônios arquitetônicos tombados como no debate da produção urbana”.
Mas o negro arquiteto, posto tudo isso, não deixa de ter peculiaridades. “Tebas foi um dos poucos escravizados a se alfabetizar e a conquistar a alforria pelo reconhecimento do valor do seu trabalho. Seu preço não era mensurado pela sua força física, mas pelo domínio de uma técnica”, enaltece Chiaretti. Ao endossar a opinião do arquiteto Benedito Lima de Toledo, o sindicalista afirma que Tebas “aprimorou, nas cidades de São Paulo e de Itu, tecnologias que lhe possibilitaram captar a religiosidade da época”. Foi justamente essa “expressão da religiosidade” que “o transformou em arquiteto e suas obras, em arte”.
Como isso foi possível? O presidente do Sasp arrisca uma resposta: “A formação (…) que Joaquim Pinto de Oliveira Tebas recebeu do seu primeiro senhor, o mestre-pedreiro Bento de Oliveira Lima, além de representar uma contradição do regime escravista, pode também ser vista como a sua faculdade. Mas ele foi além: não apenas se tornou um juiz de ofício de sua especialidade, membro de uma espécie de Conselho de Arquitetura e Urbanismo da época, como também compreendeu a realidade complexa do seu tempo lutando por liberdade. Miremo-nos no exemplo”.
O “mito” e a “figura histórica”
Cabe sublinhar, por fim, que documentos do século 18 e 19 carecem, volta e meia, de fidedignidade – o que ajudou a postergar as reparações a Tebas. O capítulo sobre o Chafariz da Memória, da lavra de Emma Young, doutoranda em História do Meio Ambiente pela Universidade de Nova York, aposta nessa tese. A obra, feita de pedra e inaugurada em 1792, no Largo da Misericórdia, foi um sistema pioneiro de abastecimento público de água na cidade e, ainda, “o primeiro monumento a embelezar São Paulo”.
Segundo a autora, há vários documentos disponíveis sobre o “Chafariz do Tebas” – de ordens e correspondências do governador até estudos sobre a qualidade das águas do Rio Anhangabaú. Nessa papelada, porém, falta a contribuição do negro arquiteto. “O mito em torno da vida de Tebas revela e reforça a co-construção de processos socioculturais e ambientais que desvalorizam a vida negra há muito tempo em São Paulo”, denuncia Emma. “A desconstrução de narrativas mitificadoras e de negação histórica torna visível a violência que tornou Tebas um mito, e não uma figura histórica.”
Para nossa sorte, iniciativas como Tebas – Um Negro Arquiteto na São Paulo Escravocrata facilitam a tarefa de separar realidade e mistificação. De resto, está na hora de a CAU-SP formalizar o registro de Tebas como arquiteto, à semelhança do que a OAB fez com Luiz Gama. Como a grande mídia segue oligopolizada e conservadora, é preciso que mais e mais universidades se abram ao estudo das contribuições dessas inúmeras, valorosas e inspiradoras personalidades negras. Abertura para isso existe. E, se faltava motivação ou pretexto, o bolsonarismo está aí para provar que conhecer a História nunca é demais.
por André Cintra | Texto original em português do Brasil
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