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Quarta-feira, Julho 17, 2024

O mito das “ajudas” às empresas públicas e aos bancos

Nuno Ivo Gonçalves
Nuno Ivo Gonçalves
Economista, Mestre em Administração e Políticas Públicas, Doutor em Sociologia Política. Exerceu actividade em Gestão Pública, Recuperação de Empresas, Auditoria e Fiscalização e foi docente no ISE e no ISG. Investiga em História Contemporânea.

Quando a dimensão do sector público empresarial era muito maior, criticavam-se as empresas públicas por terem prejuízos, evidenciarem passivos elevados nos seus balanços, ou pesarem muito no Orçamento do Estado.

Essa crítica pressionava no sentido da privatização pura e simples, por vezes com venda ao desbarato. Pouco importava por exemplo se os passivos da EDP resultavam do investimento, sendo o activo muito superior ao passivo, ou se os CTT foram em 1969 convertidos em empresa pública sem que administrações, fiscais, e até revisores de contas, tenham cuidado de promover o registo em  nome da empresa dos respectivos activos imobiliários, descuido que, apesar de corrigido, já indiciava que a empresa estaria vulnerável a vendas especulativas de imobiliário e como se viu, a uma subavaliação da própria empresa aquando da sua privatização.

A própria forma de contabilização dos fluxos financeiros entre o Estado e as empresas públicas suscitou dúvidas e conheceu flutuações, sendo que os próprios manuais académicos de Finanças Públicas eram parcos de referências, quando não induziam confusões. A partir do momento em que se tornou claro que as saídas de fundos para as empresas públicas visavam ou compensar a imposição de obrigações que não seguiam uma lógica estritamente comercial falando-se de indemnizações compensatórias, ou reforçar o capital, geralmente como contrapartida da realização de investimentos, falando-se de dotações de capital, passaram estas últimas a ser descritas como “despesas – activos financeiros”, tal como aliás sucedia com a concessão de empréstimos.

Este tratamento merece contudo algumas observações e qualificações:

  • existe a ideia que, se no caso dos empréstimos as “despesas -activos financeiros” dão lugar a “receitas – activos financeiros” aquando do seu reembolso, no caso das empresas públicas tal só sucede aquando da privatização; todavia nada obsta à redução / devolução do capital que deixou de ser necessário ou que se reproduziu para além das necessidades:  o Fundo de Apoio ao Investimento da Habitação (FAIH) criado em 1982 cedo terá proposto a devolução do capital entregue pelo Estado, tendo obtido apenas uma reacção de perplexidade por parte da tutela;
  • as dotações de capital para investimento podem ser aplicadas em investimentos adequados ou inadequados em si, mas que podem ser prejudicados por a empresa ter uma estrutura financeira inadequada, ou até contribuir para criar tensões nessa estrutura, sendo que em certas circunstâncias é correcto classificá-los como transferências, portanto como despesas “acima da linha”, com repercussões nos défices públicos, o que tanto quanto tenho presente resultou em Portugal inicialmente dos trabalhos da primeira Comissão Constâncio e é hoje prática corrente no Eurostat;
  • um investimento adequado e rentável pode sempre ser afectado por uma repartição capitais próprios / capitais alheios inadequada, o que numa empresa pública que receba dotações de capital insuficientes significa recurso excessivo ao crédito, serviço de dívida excessiva, e eventualmente excessiva exposição ao risco de taxa de juro, criando a tentação de realizar operações swap cuja mecânica não é bem apreendida pelos decisores;
  • finalmente, dotações de capital existem  que têm por única justificação repor ou elevar rácios financeiros, designadamente no caso de acumulação de prejuízos, e é aqui e não nas chamadas ajudas à Banca que neste artigo insiro o caso da Caixa Geral de Depósitos.

A irresponsabilidade da quase totalidade dos Ministros das Finanças que, para maquilharem o montante efectivo das despesas orçamentais, diferiam a realização dos aumentos de capital previstos para os últimos dias do ano financeiro, ou até efectuavam cortes nas dotações de capital previstas para exibirem “poupanças”, foram historicamente responsáveis pela degradação da situação financeira de muitas empresas públicas, empurradas para recurso ao capital alheio.

É preciso portanto saber ler os números relativos à atribuição de dotações do Orçamento do Estado  às empresas públicas, exigir explicações,  e combater a demagogia que volta a tentar  a ganhar espaço.

Há todavia uma situação em que a contabilidade parece sugerir a existência de um modelo de gestão inadequado, e que tem a ver com os Hospitais Públicos empresarializados sob a forma de Sociedade Anónima por Luís Filipe Pereira, no que foi quase a única realização da “Reforma da Administração Pública” de Durão Barroso, forma depois corrigida para a de Entidade Pública Empresarial. O capital inicialmente definido como capital social cedo se corroeu pela acumulação de prejuízos contabilísticos. Por seu turno, a contabilidade geral dos Hospitais regista, e muito correctamente, os bens encomendados e postos à disposição por fornecedores que não são pagos. A situação tende a ser reeditada  sucessivamente e nos últimos anos parece ter-se construído um modelo original, consistindo na atribuição de dotações de capital para repor os valores do capital considerados como contabilísticamente adequados, e, com a realização dessas dotações, os  Hospitais reduzem a dívida para com os credores. Um modelo de “défices gémeos” ! Será isto gestão empresarial?

Pior que a demagogia sobre as ajudas a empresas públicas, é agora moeda corrente a suposta prioridade às ajudas a bancos, quando o Serviço Nacional de Saúde precisa de investimentos, os professores, etc, precisam de progredir nas remunerações, etc.

Acontece é que – e isso não é de agora – que a cessação de actividades de um banco cria dificuldades aos seus clientes – depositantes e devedores – e ao giro comercial, que é susceptível de provocar situações de cessação de actividade em cadeia, e repare-se que não falo sequer dos trabalhadores do próprio banco e dos das empresas afectadas. A intervenção do Estado não deve ser vista necessariamente como uma ajuda aos bancos, que poderão ser liquidados ou, pelo menos, cujos accionistas ou stakeholders privilegiados poderão perder o capital, as obrigações subscritas, e até os próprios depósitos por força das regras da figura da resolução entretanto consagrada.

A crise bancária portuguesa posterior à eclosão da grande crise de 1929 – que revelou igualmente situações de má gestão e de fraude – traduziu-se em múltiplas cessações de pagamentos, com prejuízo dos depositantes. Filipe S. Fernandes contabiliza a existência  de 45 bancos e casas bancárias e de 28 caixas económicas e de crédito, assinalando o impacto da crise em termos de cessações  de pagamentos e de fusões forçadas, sobretudo na Madeira, mas também de apoios do Tesouro decididos pelo Governo com intervenção na gestão (Banco Nacional Ultramarino, Crédito Predial Português) ou que não mobilizando directamente o Tesouro, são decididos pelo Governo (Casa Bancária Totta, em que Alfredo da Silva já detém posição, a qual beneficia de apoios que são articulados com os apoios à CUF).

As nacionalizações de bancos no pós 25 de Abril  terão evitado intervenções e liquidações em algumas das instituições mais frágeis do Sistema, mas por altura das privatizações houve pelo menos um caso em que uma instituição foi praticamente “dada”. Nas pequenas instituições, as liquidações das Caixas Económicas Faialense e Açoriana arrastaram-se em prejuízo dos credores e o Sistema de Crédito Agrícola Mútuo soube defender a sua credibilidade promovendo a integração de algumas instituições noutras mais robustas, mas teve de assegurar igualmente a absorção do impacto da liquidação do seu Central Banco de Investimentos, episódio que, em termos de padrão de negócios e comportamento de gestores, pertence já à actual geração de escândalos financeiros.

O que me interessa destacar aqui é que nestes casos dos Bancos too big to fail  ou pelo menos sobre os quais não há informação sobre se podem / devem ser imediatamente liquidados, o facto gerador da despesa pública ocorre antes até da assunção de um compromisso juridicamente vinculativo do Estado.  

De facto:

  • a nomeação de uma comissão de gestão para o Banco Privado Português, que mais tarde se orientou para a liquidação, parece ter sido medida inteiramente justificada e a circunstância de ter sido posteriormente considerado recuperado o valor da fiança concedida sob proposta da comissão sugere que esta actuou com prudência, mas, atento o perfil de negócios e de investidores talvez fosse  defensável que o processo tivesse sido directamente encaminhado no sentido da liquidação;
  • a nacionalização do BPN em vez da nomeação de uma comissão de gestão, que poderia até ter reconduzido os últimos administradores eleitos, cuja honorabilidade e competência não parece ter estado em causa, resultou financeiramente desastrosa sobretudo por se  ignorar, à data da nacionalização, o papel do chamado Banco Insular de Cabo Verde, que teve de ser reconhecido como integrando o perímetro do BPN, de qualquer forma ocorreu numa altura em que talvez o Sistema não estivesse preparado para a cobertura efectiva do risco dos depósitos (e será que o está agora ?)
  • a resolução do BES, centro de um grupo empresarial com a lógica de conglomerado, e que aliás tinha recusado a aplicação do programa de assistência económica e financeira da troika, visou, correctamente,  dar continuidade ao banco descartando  os respectivos accionistas, sem qualquer elemento de ajuda,  mas é hoje evidente que foi prejudicada, para efeitos de separação entre o BES-bom e o BES-mau, pela falta de informação sobre a real situação do banco e das suas operações, de qualquer forma seria ainda mais difícil assegurar a cobertura efectiva do risco dos depósitos;
  • a concessão de ajuda – remunerada a 8% – ao BCP e ao BPI,  foi um sucesso, e falhou no caso do BANIF com uma solução híbrida  que passou pela indignidade da participação do Estado no capital sem direito a voto, aí sim uma ajuda imprudente aos accionistas, e culminou noutra indignidade com a venda ao desbarato,  não competitiva,  da operação, com os activos a ela conexos, ao Santander.

Na generalidade das situações descritas, o envolvimento do Estado foi  afectado  pelo desconhecimento da real situação das instituições, fruto da falta de uma adequada supervisão prévia, e também pela preocupação de ajudar os “lesados” de diversos matizes para além do que o sistema de garantia de depósitos previa, e não pela vontade de ajudar os titulares dos bancos.

É claro que há também um controlo pouco rígido da gestão do dinheiro que já se encontra dado como perdido. Segundo a comunicação social, o Banco Efisa, do universo BPN e quase sem actividade, foi recapitalizado em 90 milhões de euros para poder continuar a operar, tendo sido e bem, denunciada a intenção de um grupo integrando Miguel Relvas o adquirir por um valor inferior a este preço. A operação malogrou-se o Efisa vai ser agora vendido a um grupo árabe por um valor ainda inferior. A  solução para recuperar dinheiro era liquidar o Efisa e recuperar o valor injectado. Mas, tal como o Governo (PSD) que criou o Fundo de Apoio ao Investimento à  Habitação não pôs a hipótese de recuperar o capital já tornado desnecessário, o actual Governo (PS) também não pôs, aparentemente, a hipótese de recuperar o valor injectado no Efisa. Mário Centeno e Mourinho Félix parecem pensar que não precisamos do dinheiro

Como tive ocasião de chamar a atenção logo em 2013 no meu post “A privatização dos CTT e a estranha tolerância dos mercados”.

Todavia chegou na altura à equipa de Finanças Públicas do Instituto Superior de Economia na qual estava integrado que esta orientação só foi adoptada em 1978, por em 1977 o então Gabinete de Estudos e Planeamento do Ministério das Finanças ter recomendado que fossem tratadas como transferências de capital, sem ter sido tido em conta que o valor da participação pública na empresa que recebia a dotação ficava acrescido pelo exacto valor da realização da  dotação,

Criado pelo Decreto-Lei nº 217/82, de 31 de Maio.

Ouvi esta história ao saudoso colega do Instituto Superior de Economia  Dr. João Coutinho Pais que aliás faleceu na estrada na altura em que se encontrava envolvido na gestão desta entidade.

No Departamento Central de Planeamento a Direcção de Serviços que tinha a seu cargo o Sector Empresarial do Estado, onde recordo o Dr. Carlos Alcobia e o Engº Rui Mil Homens, cedo se apercebeu destes problemas, tendo aliás os Governos a partir de 1979 tentado adoptar uma visão integrada cuja primeira expressão foi a  criação de uma Comissão de Financiamento do Sector Empresarial do Estado (COFISEE).

À Minha maneira, 2013, Matéria-Prima Edições.

Banco Fonsecas e Burnay.


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