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Sábado, Dezembro 21, 2024

Xeque (-mate?) à nova Lei de Bases da Saúde

Teresa Gago
Teresa Gago
Médica dentista; desempenhou diversos cargos autárquicos, incluindo o de vereação em Cascais entre 2013-2017. Dirigente Associativa do Movimento Não Apaguem a Memória e membro da Plataforma Cascais-movimento cívico. Militante do PS.

PSD/CDS 1990 vs PS 2019 vs Arnaut/Semedo.

os processos negociais são de aproximação e de afastamento. E só estão concluídos quando estão concluídos.

António Costa, 1 de Maio, 2019

A incerteza quanto ao conteúdo da nova Lei de Bases da Saúde é inquietante e as contradições no PS apenas tranquilizam (e seguramente divertem) a direita. Não há dúvida que um identificável PS colocou o Serviço Nacional de Saúde (SNS) em xeque. Importa saber se é xeque-mate.

Neste primeiro de Maio António Costa quis transmitir serenidade. O Primeiro Ministro e Secretário-Geral do PS esclareceu que:

os processos negociais são de aproximação e de afastamento. E só estão concluídos quando estão concluídos. Não sendo impossível uma redação mais clara quanto à natureza pública da gestão”.  

Recordemos que o processo de revisão da Lei de Bases da Saúde se iniciou para reverter o rumo de degradação do SNS promovido pela Lei de 1990, exclusivamente aprovada pela direita. António Arnaut e João Semedo propuseram-se a “salvar o SNS” e indicaram um conjunto de medidas fundamentais e estruturantes, cuja articulação coerente permitiria um SNS mais ágil, mais próximo, mais justo e de mais qualidade para todos.

As diferenças que existem entre o alegado documento negocial do Governo e o documento apresentado pelo Grupo Parlamentar do PS (GP-PS) estão explicitadas num artigo de João Ramos de Almeida no blogue Ladrões de Bicicletas. Porém, neste momento negocial, importa comparar a versão da bancada do PS, tanto com a Lei de 1990 como com o “testamento” de Arnaut para que, com justificação, se possa perscrutar qual o objetivo pretendido por algum PS: “salvar o SNS” ou conformar-se com o caminho da “degradação e degenerescência” iniciado pela Lei de 1990 com o PSD/CDS (?).

A comparação é realizada atendendo apenas a 8 dos parâmetros que Arnaut considerou estruturantes:

  1. a estrutura organizacional e administrativa do SNS;
  2. a possibilidade de gestão privada de unidades de saúde públicas (PPP);
  3. a dignificação dos profissionais de saúde através das carreiras;
  4. a valorização dos profissionais de saúde através do regime laboral e protecção social;
  5. a racionalidade das taxas moderadoras;
  6. o nível de responsabilidade dos seguros de saúde para com a assistência na doença;
  7. a existência de um estatuto definido para os profissionais de saúde do SNS;
  8. a garantia de existência de capacidade formativa no SNS.

1. Estrutura organizacional e administrativa do SNS

Lei de 1990

Administrações Regionais de Saúde
(Base XXVII) com funções de planeamento e coordenação por região e a existência de Comissões Concelhias de carácter consultivo
(Base XXIX)

GP-PS Arnaut/Semedo
?!  (Seria expectável que a Base 18 contivesse qualquer menção concreta à estrutura organizacional ou administrativa, porém é inexistente).Administrações Regionais de Saúde (Base XXXI) com indicação dos seus órgãos e definição de competências para os conselhos directivos

Comentário:

Com o projeto apresentado pelos deputados do PS o SNS ficará sem estrutura organizacional ou administrativa definida (sem prejuízo da crítica à capacidade de funcionamento atual das ARS). Embora sejam referidas “… outras instituições públicas nacionais, regionais e locais” não se vislumbra qualquer travejamento orgânico sobre o qual se possa alicerçar um futuro Estatuto do SNS. A menção aos sistemas locais de saúde é vaga e apenas associada às autarquias locais o que aumenta a possibilidade de cedência aos ímpetos municipalistas da direita.

A proposta do GP-PS melhora o que a Lei de 1990 permite? Parece-nos evidente que não e pode mesmo piorá-la.


2. Possibilidade de gestão privada de unidades públicas de cuidados de saúde (PPP)

Lei de 1990

“Nos termos a estabelecer em Lei, pode ser autorizada a entrega, através de contratos de gestão, de hospitais ou centros de saúde do Serviço Nacional de Saúde a outras entidades…”
(Base XXXVI; nº2)

GP-PS Arnaut/Semedo
“A gestão dos estabelecimentos prestadores de cuidados de saúde é pública, podendo ser supletiva e temporariamente assegurada por contrato com entidades privadas ou do setor social” “A administração, gestão e financiamento das instituições, estabelecimentos, serviços e unidades prestadoras de cuidados de saúde é exclusivamente pública, não podendo sob qualquer forma ser entregue a entidades privadas ou sociais, com ou sem fins lucrativos”
(Base XXXIX, n.4)

Comentário:

As PPP têm estado limitadas à gestão de hospitais, mas nada indica que assim se mantenha. De acordo com a redacção proposta pelo GP-PS, na ausência de ARS e estando apenas previstos sistemas locais de saúde (cuja abrangência territorial nem está definida) por que não entregar a gestão dos Agrupamentos de Centros de Saúde (ACES) à Quadrantes? Ou permitir a gestão de Centros de Saúde, por exemplo, pela Sonae (Wells)?

A natureza da questão pode ser resumido através de simples comparações: seria adequado permitir que empresas de segurança privadas pudessem gerir esquadras da PSP ou da GNR (ainda que, admita-se, supletiva e temporariamente)? Seria adequado que um qualquer colégio privado pudesse gerir um agrupamento de escolas? Imaginamos a Univ. Lusófona a gerir o ISCTE ou a Universidade de Coimbra?

As PPP têm sido o tema preferido da propaganda de direita. Através da mentira pretendem instalar a confusão entre a gestão privada de unidades públicas de saúde (PPP) e a “compra” de cuidados de saúde ao privado (convenções ou outra forma contratual). Tanto o BE como o PCP preveem esta segunda possibilidade de contratação nos casos em que o Estado não consegue (por enquanto) assegurar tais prestações, por exemplo na hemodiálise.

A proposta do GP-PS altera o que a Lei de 1990 permite? Não, assegura a promiscuidade.


3. Dignificação profissional dos profissionais de saúde: as carreiras

Lei 1990

“A lei regula com a mesma dignidade as carreiras médicas, independentemente de serem estruturadas de acordo com a diferenciação profissional”
(Base XXXII, n.5)

GP-PS Arnaut/Semedo
“o SNS sustenta-se numa força de trabalho planeada (…) estruturadas em carreiras (…)”
(Base 18, n.º8)
“Os profissionais de saúde que trabalham no SNS têm direito à sua carreira profissional e à consequente progressão na carreira”.
(Base XXXIII, n.º1)

Comentário:

Existe alguma melhoria na proposta de redacção da bancada socialista ao abrir a possibilidade de reconhecimento de carreiras a outras profissões de saúde não as restringindo exclusivamente à profissão médica. Por outro lado, a proposta de redação do GP-PS “peca” por potencialmente não reconhecer mecanismos de progressão nas carreiras ainda por formar.

A proposta do GP-PS altera o que a Lei de 1990 permite? Pouco.


4. Valorização dos profissionais de saúde: o regime laboral e a proteção social

Lei de 1990

Os profissionais de saúde que trabalham no Serviço Nacional de Saúde estão submetidos às regras próprias da Administração Pública e podem constituir-se em corpos especiais, sendo alargado o regime laboral aplicável, de futuro, à lei do contrato individual de trabalho e à contratação colectiva de trabalho
(Base XXXI, n.1)

GP-PS Arnaut/Semedo
?! (Não é realizada qualquer menção à vinculação pública; contratação coletiva ou à proteção social, ainda que na Base 18, nº8 se refira “(…) exercício de funções públicas”)Os profissionais de saúde que trabalham no SNS beneficiam do regime de proteção social e na doença em vigor para os trabalhadores da administração pública (…)
(Base XXXIII, n.º3)

Comentário:

A Lei de 1990 promovia, de forma assumida, a mobilidade dos profissionais de saúde entre os sectores público e o privado. A proposta do GP-PS retirou essa formulação concreta, pese embora mantenha os mecanismos que fomentam a instabilidade; a precaridade e a discriminação laboral no SNS. A manutenção das PPP é um fator gerador de desigualdade nos mecanismos de contratação, bem como a aceitação de situações de instabilidade (profissional e organizacional) asseguradas por profissionais denominados por “tarefeiros”.

A proposta do GP-PS altera o que a Lei de 1990 permite? Não, é uma oportunidade perdida.


5. Estatuto dos profissionais do Serviço Nacional de Saúde

Lei 1990

A Base XXXI consiste na definição do Estatuto dos profissionais de saúde do SNS.

GP-PSArnaut/Semedo
?!  (Não há qualquer referência ao Estatuto dos profissionais de saúde do SNS) A Base XXXIII define o Estatuto dos profissionais de saúde do SNS em 13 alíneas onde se inclui, por exemplo que “o recrutamento, ingresso e progressão nas carreiras dos profissionais de saúde do SNS realiza-se mediante concurso público (…)”

Comentário:

Não existe Estatuto dos profissionais do SNS. Será que ficará para legislação posterior? Assim como o Estatuto do SNS?

A proposta do GP-PS altera o que a Lei de 1990 permite?  Não e desvaloriza, por omissão, esses profissionais que diz pretender que assumam dedicação plena ao SNS.


6. Taxas moderadoras

Lei 1990

“…são isentos os grupos populacionais sujeitos a maiores riscos e os financeiramente mais desfavorecidos, nos termos determinados na Lei”
(Base XXXIV, nº2)

GP-PS Arnaut/Semedo
“a lei pode prever a cobrança de taxas moderadoras (…) sem prejuízo de poder determinar isenção de pagamento, nomeadamente em função da situação de recursos, de doença ou de especial vulnerabilidade” (Base20, n.1) e “a lei pode estabelecer limites ao montante total de taxas moderadoras”
(Base 20, n.2)
A lei pode prever a cobrança de taxa moderadora nas prestações de saúde realizadas em unidades do SNS ou por este convencionadas que não tenham sido prescritas ou requisitadas por médico ou outro profissional de saúde competente para o efeito.” (Base XXXVI, n1) e  “Sem prejuízo do número anterior, estão isentos de pagamento de qualquer taxa todos os cuidados prestados no domínio dos cuidados de saúde primários e nos serviços de urgência e emergência, incluindo o transporte do doente
(Base XXXVI, nº2).

Comentário:

Na prática o GP-PS mantém os requisitos de isenção existentes, mas permite a possibilidade de a Lei fixar um tecto máximo aos encargos. Na realidade isto significa manter as taxas moderadoras como co-pagamentos disfarçados pois quando um médico necessita que o doente faça uma bateria de exames é ao doente que compete pagar a taxa moderadora. Pergunta-se: as taxas estão a moderar o quê?!

A proposta do GP-PS altera o que a Lei de 1990 permite? Incompreensivelmente não.


7. Responsabilização dos seguros de saúde

Lei 1990

“a lei fixa incentivos aos seguros de saúde”
(Base XLII)

GP-PSArnaut/Semedo (BE)
“A subscrição de um seguro de saúde deve ser precedida da prestação, pelo segurador, de informação, clara e inteligível quanto às condições do contrato (….)” (Base 22, al.2) e “Os estabelecimentos de saúde informam as pessoas sobre os custos a suportar pela prestação de cuidados ao abrigo de seguros de saúde, incluindo os da totalidade da intervenção proposta, salvo quando justificadamente não dispuserem dos elementos necessários à prestação dessa informação”
(Base 22, n. 3)
“Os prestadores de cuidados de saúde são responsáveis pela continuação e conclusão de qualquer tratamento que tenham aceite iniciar sob a cobertura de seguro de saúde, não podendo o mesmo ser interrompido ou descontinuado em virtude da cobertura da respetiva apólice ser insuficiente para assegurar o pagamento da despesa realizada ou prevista”
(XLV, n.2)

Comentário:

Nesta matéria pode parecer existir um ligeiro progresso, porém… Primeiro, será suficiente acautelar que a informação consta “das letras pequeninas”? Quem se lembra de todas as exclusões do seu seguro automóvel?

Segundo, informar sobre os custos da totalidade da intervenção proposta (salvo quando justificadamente não dispuserem dos elementos necessários?!) protege a saúde do doente em quê concretamente?

Seria importante que não se confundisse o direito à proteção da saúde com os direitos do consumidor.

A proposta do GP-PS altera o que a Lei de 1990 permite? Não, falta-lhe defender efectivamente as pessoas face às conhecidas ‘limitações’ impostas pelas seguradoras, nomeadamente as exclusões por idade.


8. Garantia de capacidade formativa no SNS

Lei de 1990

“O Ministério da Saúde colabora com o Ministério da Educação nas actividades de formação que estiverem a cargo deste, designadamente facultando nos seus serviços campos de ensino prático e de estágios …” (Base XVI, n.º2).

GP-PS Arnaut/Semedo
?! (em nenhuma Base se acautela a capacidade formativa em unidades do SNS) “O ministério que tutela a saúde colabora com o Ministério da Educação e outros nas atividades de ensino e formação que estiverem a cargo deste, designadamente facultando os serviços públicos de saúde para o ensino e a formação na área das ciências da saúde (…)”
(Base XV, nº2)

O SNS é responsável por assegurar a formação geral e especializada, teórica e prática, dos seus profissionais de saúde, após a conclusão da licenciatura ou mestrado integrado, com o objetivo de os habilitar ao exercício tecnicamente diferenciado na respetiva especialidade
(…) (Base XXXIII, nº11).

Comentário:

Não prever, nem acautelar, a possibilidade de formação em saúde no SNS está objetivamente a contribuir-se para o depauperamento da qualidade da prestação de serviços através do abandono dos profissionais de saúde docentes e dos especialistas de reconhecido mérito. Muito provavelmente pretende-se abrir aporta à  formação em unidades privadas de saúde?

A proposta do GP-PS altera o que a Lei de 1990 permite? Não, piora por omissão.


Em síntese

A novela sobre a divergência de posições no PS tem alimentado a direita que sempre quis impedir a concretização do SNS.

O que importa é que as negociações entre PS, BE e PCP continuem no sentido de obtermos uma Lei de Bases da Saúde que permita inverter o caminho que a direita imprimiu ao SNS. O documento negocial do Governo constituía uma base sólida para aprofundar entendimentos, ao contrário do que acontece com o projecto do Grupo Parlamentar do PS.  Dou razão a António Costa quando este afirma: “ninguém nos perdoará se perdermos esta oportunidade (…)”. Não perdoará, (assumamos claramente) sobretudo, ao PS!


Por opção do autor, este artigo respeita o AO90


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