Lago Burnett atribuiu-me a criação do neologismo “quintanares”, alusivo aos poemas de Mário Quintana. Infelizmente não fui eu, foi Cecília Meireles que cunhou a palavra. Bem que eu gostaria não só de ter batizado como de ter escrito os quintanares de Quintana.
por Carlos Drummond de Andrade, no Correio da Manhã (31/07/1966)
Por outro lado, sei que não me seria possível escrevê-los. Só o Quintana tem a fórmula, direi melhor, a ausência de fórmula dessas cantigas: ora soneto, ora trova, ora verso livre, ora prosa enganadora, por fora; por dentro, o imponderável de um achado poético não procurado, porque foi ele, achado, que achou o achador. Não me faço entender? Não faz mal. Remeto o leitor à Antologia Poética de Mário Quintana, que a Editora do Autor acaba de publicar, com o melhor de sua produção, tirado de cinco livros, além de 60 poemas inéditos.
Gaúcho de Alegrete, Quintana imagina-se a cavalo no campo, deixando que o poema, “esse estranho animal”, encontre o rumo. “Ele não quer saber de querências, de nada, / E só descobre estranhos descaminhos…” Acaba topando com os Três Reis Magos, que perguntam ao poeta se viu a Estrela. Também lhe acontece topar com D. Quixote, o Espantalho Desconhecido, Jack o Estripador, até Jesus Cristo com o Menino Jesus ao colo.
Há encontros menores, nem por isso menos provocadores de poemas. Basta-lhe um guarda-chuva perdido, que vai formar anel em Saturno; ou um grilo, um ovo. Mitos, pessoas, coisas, situações vêm ao encontro de Mário Quintana com a naturalidade de velhos camaradas de diferentes meios que têm um amigo em comum. O poeta acolhe-os com a mesma cortesia afetuosa. Disto se faz a lírica de MQ: é uma tradução, para o simples, de muitos mistérios.
Poderia chamá-lo intérprete. Pois aqueles dos risos, o da velhinha e o da garota, nós bem os percebemos e distinguimos, sem saber defini-los. Temos de recorrer a Quintana: o riso da vovó “é um riso de cobre – surdo, velho, azinhavrado – um riso que sai custoso, aos vinténs”, ao passo que a menina “lhe dá o troco em pratinhas novas”. Há casos em que o poeta nos explica o objeto pelo objeto, em sua essencialidade:
Um lampião de esquina
Só pode ser comparado a um lampião de esquina,
De tal maneira ele é ele mesmo
na sua ardente solidão!
Também nos dá a chave de sublimes compensações gratuitas:
Não é preciso um verso… nem
Uma oração…
Basta que digas a palavra anêmona
E tudo esquecerás, enredado na sua
Fantasmagórica palpitação.
A simplicidade de meios, a cantante sequência de versos que, mesmo se esquivando ao metro fixo, estão sempre banhados numa atmosfera de música surdinada, o poder de extrair de um incidente mínimo de vida a centelha de poesia que ilumina uma extensão ilimitada, eis alguns dos segredos de bolso de Mário Quintana. Porque o segredo grande, este não se revela.
O segredo de ser o poeta que ele é, e não outro, sem embargo das influências que agiram em sua formação e das afinidades que o ligam a uma família de espíritos; a organização especial, o jeito quintanar e único, a arte de aprofundar sua experiência convertendo sua poesia num bem geral de tantos que nunca o viram e que entretanto o amam à fé destes versos. Pois esta é uma poesia que, “na sua ardente solidão”, provoca imediata empatia, e se faz objeto de amor.
por Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), escritor modernista, é considerado o maior poeta brasileiro do século 20. Este artigo de sua autoria foi publicado originalmente em Carlos Drummond Andrade – Autorretrato e Outras Crônicas (Editora Record)| Texto original em português do Brasil
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